Por Giovanna Melgaço Barbosa*, Matheus Victor Carneiro** e Samuel Leão Marrara***
Uma concepção de Direito que emerge, transformadora, dos espaços públicos – a rua – onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participação democrática. [1]
1. Surgimento:
O movimento Pop Rua, Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades, surge como uma forma de resistência contra as injustiças sofridas pela população em situação de rua, especialmente no que concerne ao seu acesso aos órgãos públicos e aos procedimentos burocráticos. Fundamentada na defesa de direitos e na promoção da inclusão social, a iniciativa tem como objetivo central enfrentar as barreiras que essa parcela marginalizada da sociedade encara diariamente, e se desenvolve através da conscientização pública sobre as questões que afetam a população em situação de rua.
A iniciativa do Pop Rua foi instituída oficialmente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) através da resolução nº 425/2021 [2], e parte do reconhecimento da necessidade de criação de novas políticas públicas que sejam sensíveis às peculiaridades relativas à realidade dessa população mais vulnerável, priorizando um tratamento empático, simplificado e menos burocrático, visando se adaptar à realidade delicada das pessoas em situação de rua. A fundação desse movimento está vinculada a diferentes organizações da sociedade civil – defensores dos direitos humanos, ativistas sociais e até mesmo indivíduos em situação de rua que se uniram para combater a exclusão e a marginalização.
2. Relação com o Direito Achado na Rua:
O Movimento Pop Rua partilha de certa afinidade com as ideias expressas na obra “O Direito Achado na Rua” de José Geraldo de Souza Jr. [3], visto que ambos buscam promover uma compreensão mais inclusiva e participativa do direito, especialmente em relação às classes populares e àqueles que historicamente foram marginalizadas. O Direito Achado na Rua apresenta a ideia de que o direito não é algo imposto verticalmente, de cima para baixo, mas uma relação que pode ser construída coletivamente pelas comunidades, refletindo suas necessidades e demandas, questão altamente valorizada no movimento Pop Rua ao promover uma inclusão ativa da população em situação de rua na busca por seus direitos.
Contudo o movimento não se resume apenas a garantir direitos à população em situação de rua, buscando também promover a afirmação da população vulnerável como parte ativa na transformação social, valor compartilhado pelo Direito Achado na Rua, que sugere o empoderamento das classes populares e sua participação ativa na formulação do direito, rompendo com a visão tradicional de um sistema jurídico distante da realidade popular. Além disso, o movimento Pop Rua e a obra de José Geraldo de Souza Jr também se relacionam na perspectiva de justiça social e transformação – a iniciativa busca não apenas o alívio imediato para a população em situação de rua, mas também uma transformação estrutural, trabalhando ativamente na desconstrução de estigmas e preconceitos associados à essa parcela da sociedade. Não obstante, a obra propõe uma visão de justiça social na qual o direito é uma ferramenta de transformação, destacando a necessidade de mudanças estruturais para garantir a equidade, visto que que o sistema jurídico muitas vezes age em prol da perpetuação de estigmas e desigualdades.
Ao relacionar o Movimento Pop Rua com as ideias de “O Direito Achado na Rua”, percebe-se uma ligação relacionada à busca por uma justiça mais inclusiva, participativa e voltada para as necessidades reais das comunidades populares, desafiando concepções tradicionais e buscando uma transformação genuína no sistema jurídico. Essa abordagem integrada destaca a importância de uma justiça que não apenas beneficia, mas também é construída pela própria população, e valorizando a rua como o ambiente em que o Direito se forma.
3. 6° mutirão PopRuaJud:
No dia 07/12/2023, foi realizado o 6° mutirão da iniciativa Pop Rua Jud, no pavilhão de exposições do Parque da Cidade, no qual foram oferecidos diversos serviços ao público, como: Emissão de documentos essenciais (registro civil, CPF, título de eleitor, carteira de trabalho digital, certificado de reservista, certidões e afins), consulta processual, redução a termo de demandas e conciliações, cadastros nos sistemas de assistência e benefícios do Governo Federal (CadÚnico e INSS), atendimentos relacionados a benefícios sociais e FGTS, realização de cadastros e atualização em programas sociais, e atendimento geral ao público (corte de cabelo, atendimento médico e outros).
Proporcionado pela união entre vários órgãos públicos, o evento contou ainda com áreas de vacinação gratuita, cursos de qualificação social e profissional, distribuição de alimentos, atendimento odontológico, brinquedos e atividades para crianças e até uma parte destinada a cuidar dos animais de estimação. Em um esforço integrado da Justiça Federal, das Polícias Militar e Civil, e de numerosas outras entidades, o 6° mutirão do Pop Rua foi capaz de fornecer, com sucesso, assistência àqueles que necessitam dos serviços ofertados, desde a emissão de documentos essenciais até a oficialização de acordos celebrados com o INSS.
Dentre as instituições presentes no mutirão, destacou-se a Escola Meninos e Meninas do Parque, especializada na Educação de Jovens e Adultos em situação de rua. A escola procura fornecer educação formal às pessoas em situação de rua, utilizando-se de uma abordagem integradora, que busca incentivar a permanência dos alunos e a recuperação de sua autoestima, por meio de atividades que incentivam o aprendizado. A adaptação de pessoas que vivem na extrema pobreza ao ambiente escolar é um desafio, que a escola tem bravamente enfrentado pelos últimos 28 anos [4], desde sua fundação, em 1995. Contudo, apesar do sucesso que atingiram em diversos casos, a escola lida com numerosas dificuldades, como, por exemplo, a inexistência e/ou precariedade do transporte para os alunos, indisponível para a maior parte da população em situação de rua.
Em uma perspectiva geral, ao analisar o caso da escola, percebe-se que os direitos legalmente garantidos às pessoas em situação de rua – como a educação e o transporte – continuam altamente inacessíveis. Na prática, o indivíduo, que convive diariamente com a exclusão, a fome e a insegurança, quando consegue ter conhecimento de uma oportunidade raríssima, como a oferecida pela escola Meninos e Meninas do Parque, mesmo assim tem seu acesso ao serviço dificultado – nesse caso, pela dificuldade do transporte, uma vez que as tarifas do transporte público são excessivamente altas e a escola, assim como diversos outros serviços neste âmbito, não dispõe de meios para arcar com as despesas totais de transporte.
Este é só um dos milhares de exemplos que demonstram, simultaneamente, a capacidade dessas iniciativas de obter sucesso em sua abordagem inclusiva e integradora, e, contudo, a insuficiência delas diante a exclusão sistêmica das pessoas em situação de rua, vulnerabilizadas tanto pelo ambiente em que são forçadas a viver quanto pela inacessibilidade dos serviços públicos. É nesse sentido que se entende a importância de um movimento como o do Pop Rua, que consegue, efetivamente, criar uma conexão direta entre os indivíduos e os serviços de que tanto necessitam. No caso da escola, foi possível o contato entre representantes da instituição com representantes do Poder Judiciário, que acolheram suas demandas e as oficializaram, proporcionando uma forma de superar as incalculáveis dificuldades que se impõem sobre o serviço prestado por ela.
Estatisticamente, são inegáveis os resultados da iniciativa – foram distribuídas no 1° mutirão do DF, em dezembro de 2021, 940 refeições, e celebrados 14 acordos de benefícios assistenciais com o INSS [5]. Já no 5° mutirão, em maio de 2023, o número de refeições distribuídas foi de 1.300, da mesma forma que foram celebrados juntamente ao INSS 38 acordos de benefícios assistenciais [6], configurando um aumento considerável ao longo dos dois anos de projeto. Considerando que o acesso convencional à justiça para as pessoas em situação de rua é extremamente dificultoso, mesmo nos juizados especiais, percebe-se a importância do mutirão na garantia de seus direitos.
Conclusão:
Em última análise, verifica-se que iniciativas como o Pop Rua tornam-se cada vez mais necessárias, em um planejamento de justiça que envolva a defesa dos mais vulneráveis, protagonizada pela inclusão e pelo tratamento integral das necessidades daqueles que foram excluídos e marginalizados. O 6° mutirão do Pop Rua ofereceu um caminho completo de acesso à justiça – do corte de cabelo e da retirada de documentos, à celebração de acordos judiciais, serviços altamente inacessíveis no dia a dia dos assistidos. A convivência, no mesmo espaço, de desembargadores, juízes e pessoas em situação de rua nunca teria sido possível se não fosse a execução meticulosa dessa política judicial.
A Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades é nacional, e representa um grande passo em direção a um acesso à justiça mais amplo e eficiente, visando a efetiva garantia dos direitos previstos em lei para os indivíduos que mais necessitam da proteção do estado. É visível seu impacto no Distrito Federal – o número de atendimentos cresceu continuamente, partindo de 1.678 atendimentos no 1° mutirão, em 14/12/2021 [7], para 3.069 atendimentos no 5° mutirão, em 17/05/2023 [8]. Iniciativas como a do Pop Rua Jud servem para afirmar, cada vez mais, a necessidade do Poder Judiciário de exercer a jurisdição com base em uma perspectiva de Direito originada no local de vivência diária dos seus assistidos – a rua, “onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participação democrática” [9], substituindo a exclusão e a inacessibilidade que se apresentam na atuação dos órgãos judiciais pela inclusão e a integração dos mais necessitados com os serviços de que necessitam desesperadamente.
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* Graduanda em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membra do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) da Faculdade de Direito da UnB. Ex-voluntária da Defensoria Pública do Distrito Federal. Participou do 6º mutirão do PopRuaJud, em 07/12/2023.
** Graduando em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) da Faculdade de Direito da UnB.
*** Graduando em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) da Faculdade de Direito da UnB. Ex-voluntário da Defensoria Pública do Distrito Federal. Participou do 6º mutirão do PopRuaJud, em 07/12/2023. Estagiário da Justiça Federal.
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REFERÊNCIAS:
[1] SOUSA JUNIOR, José Geraldo. Et al. O Direito Achado Na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Volume 10. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2021. Página 76.
[2] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Presidência. Resolução Nº 425 de 08/10/2021. Institui, no âmbito do Poder Judiciário, a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades. Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4169.
[3] SOUSA JUNIOR, José Geraldo. Et al. O Direito Achado Na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Volume 10. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2021.
[4] AMADOR, João. Escola Meninos e Meninas do Parque celebra 24 anos. Secretaria de Estado de Educação/DF, Brasília, 25 abr. 2019. Disponível em: https://www.educacao.df.gov.br/escola-meninos-e-meninas-do-parque-celebra-24-anos/. Acesso em: 8 dez. 2023.
[5] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Relatório do 1° Mutirão PopRuaJud. Brasília: 2021. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/informacoes/cidadania/popruajud.
[6] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Relatório de Atividades do 5° Mutirão PopRuaJud-DF. Brasília: 2023. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/informacoes/cidadania/popruajud.
[7] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Relatório do 1° Mutirão PopRuaJud. Brasília: 2021. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/informacoes/cidadania/popruajud.
[8] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Relatório de Atividades do 5° Mutirão PopRuaJud-DF. Brasília: 2023. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/informacoes/cidadania/popruajud.
[9] SOUSA JUNIOR, José Geraldo. Et al. O Direito Achado Na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Volume 10. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2021. Página 76.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Relatório do 1° Mutirão PopRuaJud. Brasília: 2021. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/informacoes/cidadania/popruajud.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Relatório de Atividades do 5° Mutirão PopRuaJud-DF. Brasília: 2023. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/informacoes/cidadania/popruajud.
SOUSA JUNIOR, José Geraldo. Et al. O Direito Achado Na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Volume 10. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2021.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Presidência. Resolução Nº 425 de 08/10/2021. Institui, no âmbito do Poder Judiciário, a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades. Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4169.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Programa PopRuaJud. Brasília: 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/04/programapopruajud-trilhas-11042022.pdf.
AMADOR, João. Escola Meninos e Meninas do Parque celebra 24 anos. Secretaria de Estado de Educação/DF, Brasília, 25 abr. 2019. Disponível em: https://www.educacao.df.gov.br/escola-meninos-e-meninas-do-parque-celebra-24-anos/. Acesso em: 8 dez. 2023.