Como garantir direitos aos trabalhadores de App?

Uma proposta crível

por Veredicto

Por Thiago Maciel Borges*

As alterações ocorridas com a globalização e o avanço tecnológico trouxeram uma nova forma de produção e de exploração da mão de obra. Isso ocorre de forma acentuada nas relações laborais empreendidas por meio das novas tecnologias digitais. Construiu-se a ideia do “empresário de si”, o trabalhador de aplicativos que presta serviço para outras empresas e se conecta com seus clientes por meio de plataformas digitais, as quais distribuem a demanda e conectam prestador e tomador, o que tornaria inaplicável o direito do trabalho.

No presente artigo, pretende-se suscitar o debate e a reflexão sobre a controversa relação laboral entre trabalhador e aplicativos, como a UBER. Com esse objetivo, apresenta-se o exemplo da regulação realizada nos portos brasileiros a partir da Lei 12.185/2013, que não exige reconhecimento de vínculo empregatício para proteção dos trabalhadores avulsos portuários. Pretende-se, com isso, questionar se a melhor forma de proteger a força de trabalho empregada em aplicativos é o reconhecimento de vínculo empregatício. Em seu lugar, propõe-se aplicar ou criar uma legislação semelhante à legislação dos trabalhadores avulsos portuários, para a regulação da relação entre aplicativos e trabalhadores.

Plataformas digitais, economia sob demanda e portos como modelo de regulação das relações neste modelo de produção

O mundo acompanha a explosão de serviços prestados por meio de plataformas digitais. Esses aplicativos são consequência das inovações tecnológicas, uma vez que o sucesso da iniciativa deriva da popularização dos smartphones.

Segundo Raianne Coutinho[i], trata-se da Revolução 4.0, ou seja, a Quarta Revolução Industrial. Nesse fenômeno, o prestador de serviço se cadastra em uma plataforma digital específica e o algoritmo faz a conexão deste profissional com algum demandante, que também foi previamente cadastrado. Serviços como faxina, transporte e entrega de um produto são exemplos de demandas que podem ser direcionadas por algoritmos a um prestador previamente cadastrado.

Espalha-se, assim, um novo modelo de produção, a “economia sob demanda”, conceito criado por Valério De Stefano[ii]. Esse conceito de economia sob demanda nos permite refletir uma solução diferente para a proteção ao trabalhador inserido no trabalho por aplicativo, que seja adequada a este novo modelo de produção, que é distinto do modelo fordista da produção em série, quando a CLT foi criada.

Observe-se a prática dos portos brasileiros, que também trabalham por demanda. Para organizar a prestação de serviço, utilizam um Órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO), que tem, naquele ambiente, a mesma função que os aplicativos têm no novo modo de produção, que é conectar prestador e tomador de serviço.

Desconfiguração do vínculo empregatício em aplicativos como Uber

Os aplicativos procuram desconfigurar a relação de emprego, como se pode observar em consulta à página inicial de cadastro de motoristas na UBER[iii]. O aludido aplicativo designa os trabalhadores como “motoristas parceiros”, que, uma vez cadastrados, escolhem a própria rotina de trabalho. A plataforma ressalta, ainda, que os motoristas decidem o quanto querem dirigir e ganhar, salientando que, quanto mais o parceiro dirigir, mais vai ganhar. A descrição existe para afastar os requisitos da subordinação e da habitualidade, necessários para caracterização da relação de emprego entre aplicativos e trabalhadores. Os apps têm sido bem-sucedidos nesse intento. De fato, os Tribunais não têm reconhecido a existência da subordinação e da habitualidade na relação existente entre aplicativo e trabalhador. Veja-se:

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA DO RECLAMANTE – VÍNCULO DE EMPREGO ENTRE MOTORISTA E PLATAFORMAS TECNOLÓGICAS OU APLICATIVOS CAPTADORES DE CLIENTES (UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA.) – IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DIANTE DA AUSÊNCIA DE SUBORDINAÇÃO JURÍDICA – TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA RECONHECIDA – DESPROVIMENTO. […] 3. Em relação às novas formas de trabalho e à incorporação de tecnologias digitais no trato das relações interpessoais – que estão provocando uma transformação profunda no Direito do Trabalho, mas carentes ainda de regulamentação legislativa específica – deve o Estado-Juiz, atento a essas mudanças, distinguir os novos formatos de trabalho daqueles em que se está diante de uma típica fraude à relação de emprego, de modo a não frear o desenvolvimento socioeconômico do país no afã de aplicar regras protetivas do direito laboral a toda e qualquer forma de trabalho. 4. Nesse contexto, analisando, à luz dos arts. 2º e 3º da CLT, a relação existente entre a “Uber Brasil Tecnologia Ltda.” e os motoristas que se utilizam desse aplicativo para obterem clientes dos seus serviços de transporte, tem-se que: a) quanto à habitualidade, inexiste a obrigação de uma frequência predeterminada ou mínima de labor pelo motorista para o uso do aplicativo, estando a cargo do profissional definir os dias e a constância em que irá trabalhar; b) quanto à subordinação jurídica, a par da ampla autonomia do motorista em escolher os dias, horários e forma de labor – podendo desligar o aplicativo a qualquer momento e pelo tempo que entender necessário, sem nenhuma vinculação a metas determinadas pela Reclamada ou sanções decorrentes de suas escolhas -, a necessidade de observância de cláusulas contratuais (valores a serem cobrados, código de conduta, instruções de comportamento, avaliação do motorista pelos clientes), com as correspondentes sanções no caso de descumprimento (para que se preserve a confiabilidade e a manutenção do aplicativo no mercado concorrencial), não significa que haja ingerência no modo de trabalho prestado pelo motorista, reforçando a convicção quanto ao trabalho autônomo a inclusão da categoria de motorista de aplicativo independente, como o motorista da “Uber Brasil Tecnologia Ltda.”, no rol de atividades permitidas para inscrição como Microempreendedor Individual – MEI, […] 5. Já quanto à alegada subordinação estrutural, não cabe ao Poder Judiciário ampliar conceitos jurídicos a fim de reconhecer o vínculo empregatício de profissionais que atuam em novas formas de trabalho, emergentes da dinâmica do mercado concorrencial atual e, principalmente, de desenvolvimentos tecnológicos, nas situações em que não se constata nenhuma fraude, como é o caso das empresas provedoras de aplicativos de tecnologia, que têm como finalidade conectar quem necessita da condução com o motorista credenciado, sendo o serviço prestado de motorista, em si, competência do profissional e ao trabalho autônomo a inclusão da categoria de motorista de aplicativo independente, como o motorista da “Uber Brasil Tecnologia Ltda.”, no rol de atividades permitidas para inscrição como Microempreendedor Individual – MEI, nos termos da Resolução 148/2019 do Comitê Gestor do Simples Nacional; 6. Assim sendo, não merece reforma o acórdão regional que não reconheceu o vínculo de emprego pleiteado na presente reclamação, ao fundamento de ausência de subordinação jurídica entre o motorista e a empresa provedora do aplicativo. Agravo de instrumento desprovido. (TST, AIRR-1092-82.2021.5.12.0045, Rel. Min. Ives Gandra da S. M. F., Dj. 2.12.2022, grifos adicionados).

Assim sendo, propõe-se a reflexão de que a busca pelo reconhecimento de vínculo empregatício talvez seja o caminho errado para se efetivar a proteção ao trabalhador nesse novo modelo de produção.

Com efeito, o exercício do trabalho através de aplicativos é um trabalho por demanda, próprio de trabalhadores avulsos, os quais têm os mesmos direitos dos trabalhadores com vínculo empregatício. Trata-se de determinação constitucional, nos termos do inciso XXXIV do art. 7º da Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido, o paradigma pelo qual tem sido analisada a relação entre trabalhadores e aplicativos deve ser alterado. Não há necessidade de reconhecimento de vínculo empregatício entre aplicativos e trabalhadores para que lhes sejam garantidas as proteções inerentes aos trabalhadores com vínculo, que não é reconhecido pelos tribunais. Mutatis mutandis, o OGMO portuário faz o mesmo que os aplicativos dizem estar fazendo de forma inovadora. Assim, não é tão inovador o que a Uber e outros aplicativos fazem, pois o OGMO já exercia atividade semelhante, só que limitada ao labor portuário. O OGMO une trabalhadores e clientes para resolução do problema de vazão dos produtos que chegam aos portos brasileiros. O OGMO não presta o serviço, ele o organiza, sem ter trabalhadores contratados, nem subordinados, nem com vínculo empregatício, exatamente como os aplicativos estão fazendo.

No âmbito dos portos, o OGMO é fundamental para garantir que os trabalhadores avulsos portuários tenham seus direitos trabalhistas respeitados, como salário justo, pagamento de horas extras e benefícios sociais. Os aplicativos devem ser incumbidos da mesma atribuição. Eles devem ser colocados como parceiros na proteção ao trabalhador, pois, ao realizar o serviço de transporte, a UBER exerce um serviço público e também deve ser tratada como concessionária desse serviço, com as consequentes atribuições.

Reconhecendo que os aplicativos são gestores de mão de obra, estes passam a ser responsáveis, por força da Lei 12.185/2013, pela contribuição previdenciária, benefícios sociais e trabalhistas, previstos em lei, como férias remuneradas, 13º, adicional noturno, entre outros. A materialização dos valores adviria de parcela a ser incorporada no valor dos serviços prestados.

O atual governo está propondo algo semelhante, com estipulação de alíquota de 27% para contribuição previdenciária dividida entre trabalhador e aplicativo, mas sem mencionar outros direitos trabalhistas como FGTS, horas extras, férias. No projeto de lei, os trabalhadores seriam classificados como autônomos, o que é um impasse, pois eles não definem os valores das corridas, tampouco das entregas e ainda há resistência dos trabalhadores a essa classificação[i]. Com a maxima venia, a classificação como avulso parece ser a mais adequada à forma de exercício do labor desses trabalhadores. Os aplicativos também devem ser classificados como gestores de mão de obra na nova legislação, com deveres e direitos consequentes desta classificação.

Conclusão

Assim, propõe-se reconhecer a nova forma de produção, transformadora das relações de trabalho em atividades por demanda, sendo os envolvidos gestores de mão de obra e trabalhadores avulsos. A aplicação da legislação existente nos portos pode ser aperfeiçoada e aplicada às novas formas de exploração do trabalho por meio de apps.


* Acadêmico do 9º semestre em Direito na Universidade de Brasília, UnB. Técnico Judiciário da Justiça Federal, lotado na 3ªVara da Seção Judiciária do Distrito Federal.


[i] Balza, 2023.

[i] Coutinho, 2021.

[ii] De Stefano, 2016.

[iii] Uber, 2024.


Referências

BALZA, G. Governo busca contornar impasses entre trabalhadores e empresas na regulação de trabalho por aplicativo; veja o que pode mudar. 24 set. 2023. Disponível em: <https://www.g1.globo.com/politica/noticia/2023/09/24/governo-busca-contornar-impasses-entre-trabalhadores-e-empresas-na-regulacao-de-trabalho-por-aplicativo-veja-o-que-pode-mudar.ghtml>. Acesso em: 15 out. 2023.

COUTINHO, Raianne L. A subordinação algorítmica no arquétipo Uber: desafios para a incorporação de um sistema constitucional de proteção trabalhista. 2021. 241 f., il. Dissertação (Mestrado em Direito). Brasília: UnB, 2021.

DE STEFANO, Valerio. The rise of the “just-in-time workforce”: on-demand work, crowdwork and labour protection in the “gig-economy”. Geneva: ILO, 2016.

UBER. Página inicial para cadastro de motorista. Disponível em: <https://www.uber.com/br/pt-br/s/e/join>. Acesso em: 5 jun. 2023.

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