Por Thamyres Alves de Resende[1]
No que tange à análise do trabalho no curso temporal, é possível observar a mudança de compreensão acerca deste objeto conforme o período histórico, de acordo com o cada povo e sua respectiva época o trabalho já fora compreendido como castigo, como purificação, como exploração, como emancipação humana e como direito, quando se alcança um padrão civilizatório convergente ao Estado de Bem- Estar social, o qual preza pela superioridade jurídica na condução de melhores condições de trabalho. Sendo assim, o Direito do Trabalho caracteriza-se enquanto uma área dinâmica, a qual evidencia o impacto das relações sociais e econômicas na estruturação das relações trabalhistas[2].
Partindo desta perspectiva e reconhecendo a evolução tecnológica semeada pela Revolução 4.0, marco do século XXI, é possível encontrar, nos dias hodiernos, o trabalho em outro cenário, qual seja, na plataforma digital. No entanto, embora a tecnologia tenha sido uma propulsora do desenvolvimento da sociedade quanto à evolução técnica e quanto à evolução científica e, sobretudo, tenha viabilizado diversas atividades por intermédio das mídias sociais ao assentar uma ponte entre o real e o virtual, tem-se a precarização como uma problemática urgente. [3]
O que se observa no que diz respeito às relações trabalhistas nas plataformas digitais, é o sucateamento de direitos fundamentais trabalhistas e o descumprimento do trabalho digno assegurado pela Constituição de 1988, norma suprema do ordenamento jurídico brasileiro.
A Constituição Federal de 1988 representou uma mudança paradigmática no âmbito jurídico, visto que se apresentou enquanto marco de redemocratização da conjuntura brasileira. Dessa forma, pela ótica constitucional são versados dois fundamentos essenciais para a interpretação do Direito do Trabalho, a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho, por meio destes, nota-se que a palavra de ordem constitucional é o reconhecimento do trabalhador partindo da dignidade e da livre iniciativa limitada pelo valor social. [4]
Não somente no campo jurídico nacional, mas também no âmbito internacional, é possível evidenciar a contribuição para a matéria trabalhista a partir da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que, em 1999, estabelece o conceito de trabalho decente, ao defender o trabalho enquanto aquele exercido em liberdade, com condições de equidade, segurança e dignidade.[5]
Dessa forma, ao tutelar pelo trabalho decente, contata-se para além da convergência com os fundamentos constitucionais, a conformidade com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), firmados pelas Nações Unidas, que em seu objetivo de número oito- ODS 8- preconiza pela promoção do crescimento econômico inclusivo e sustentável, com emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos.
Vale salientar que os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são formulados em 2015, pelos 193 Estados-membros da Organização das Nações Unidas, sendo o Brasil um dos países signatários, com o fulcro de proporcionar avanços em direitos e em bem-estar social, econômico, jurídico e ambiental para todos os povos e nações.[6]
Nesse ínterim, em contrariedade aos elementos normativos constitucionais e infraconstitucionais apresentados, é possível identificar o esvaziamento e a precarização das relações trabalhistas, em razão das mudanças tecnológicas e econômicas ocorridas na década de 2000, que seguem em curso até os dias atuais, haja vista o contexto marcado por uma exacerbada flexibilização e um elevado grau de informalidade, o que direcionou a OIT a lançar uma campanha internacional em defesa do trabalho decente, para reiterar que o trabalho não pode ser interpretado como mercadoria.
Ao analisar a realidade dos trabalhadores das plataformas digitais evidencia-se a incompatibilidade do trabalho exercido com os parâmetros legais aceitos, dado que a influência dos aparatos tecnológicos nas relações socioeconômicas criam novos padrões de organização do trabalho, com execução de atribuições virtuais e serviços presenciais, os quais negam direitos trabalhistas.³
Um dos principais esvaziamentos identificados é a ausência de reconhecimento do trabalhador, pois ao ser vinculado à plataforma, seu vínculo é considerado apenas de usuário, ainda que desempenhe serviços para uma empresa e seja submetido a diversos elementos que o qualificam como trabalhador, como a subordinação algorítmica que permite à empresa exercer a sua gestão.³
“a subordinação algorítmica, típica do modelo de gestão do trabalho por plataformas digitais, não se concretiza pelas formas tradicionais do exercício do poder diretivo, dependentes de um espaço geograficamente delimitado e de um controle rígido do horário de trabalho. É que o algoritmo se vale de um controle eficientemente difuso, que se espalha através do campo virtual em várias direções”.³
Além do não reconhecimento do vínculo justrabalhista, as empresas, ao se organizarem pelas plataformas, dispõem-se enquanto isentas de responsabilidades, ao lançarem para o trabalhador todo risco advindo do empreendimento, perpetuando o que discorrem Delgado e Carvalho:“O meio digital proporciona uma facilidade no acesso ao trabalho, assim como facilita o descarte das pessoas”.³
Desse modo, destaca-se relações trabalhistas extremamente precarizadas, as quais relegam o trabalhador ao cerceamento de seus direitos fundamentais trabalhistas, porquanto são verificadas jornadas exploratórias, terceirização de riscos, fragilidade do vínculo e o meio ambiente de trabalho alheio à segurança e à saúde, conduzindo o trabalhador à vulnerabilidade.
Tendo em vista essa conjuntura de precarização, urge a necessidade de tutela pelos direitos destes trabalhadores, que reivindicam por melhores condições de trabalho. Consequentemente, na delimitação do Distrito Federal (DF), a Câmara Legislativa sancionou a Lei nº 6.677, de 22 de setembro de 2020, a qual dispõe sobre os pontos de apoio para trabalhadores de aplicativos de entrega e de transporte individual privado de passageiros nas regiões administrativas do Distrito Federal, sendo regulamentada pelo Decreto Nº41.484 de 2020.[7]
Logo, o Governo do Distrito Federal determinou que empresas de transporte por aplicativo que desempenhem ações no DF, sejam obrigadas a garantir pontos de apoio para os trabalhadores, ambientes estes que devem proporcionar condições mínimas de segurança, saúde e conforto. Além disso, os pontos de apoio devem contar com banheiros, com espaço para refeição, com internet e com pontos de recarga do celular. Vale pontuar que as empresas são proibidas de cobrar os trabalhadores pelo uso ou construção dos espaços, ademais, a legislação distrital estabelece multas em casos de descumprimento das determinações.
Nessa toada, Fábio Félix, deputado distrital do PSol, autor da lei regulamentada, justifica que a importância da lei se perfaz tendo em vista a situação de milhões de pessoas possuírem vínculo trabalhista com as empresas de plataformas digitais e estarem sob condições de trabalho de sobremodo péssimas.
Entretanto, ainda com a previsão constitucional e infraconstitucional, somado ao panorama legal distrital, o que se observa no cotidiano do trabalhador da plataforma digital é o descumprimento das obrigatoriedades mínimas previstas na Lei 6.677/2020, a qual surge para assegurar o trabalho digno e decente, mas que, no campo do real não é seguida pelas empresas plataformizadas, visto que os pontos de apoio não apresentam a estrutura básica, sendo precário ao nível de receber o nome de “curralzinho”.
“Essa lei já está em vigor desde 2020, e ainda que se discuta a natureza da relação jurídica do vínculo entre trabalhadores de aplicativo e as plataformas digitais, não há dúvidas de que as empresas devem reduzir os riscos ocupacionais, de acordo com normas de saúde e segurança do trabalho”, disse Fábio Felix.[8]
Por conseguinte, o que se observa na realidade fática é o impasse das empresas no que diz respeito ao cumprimento das determinações convergentes ao trabalho digno defendido pelo ordenamento jurídico nacional. Tal cenário reverbera a violação dos preceitos constitucionais básicos que salvaguardam o trabalho decente, enquanto relação trabalhista que assegura direitos fundamentais com remuneração devida, vida digna, condições de segurança e saúde.
Portanto, observa-se a precarização das relações trabalhistas nas plataformas digitais, haja vista que o vínculo justrabalhista é relativizado e, consequentemente, todos os direitos trabalhistas também são. Tal conjuntura relega o trabalhador à precariedade e, proporciona mais litígios, tendo em vista o massivo descumprimento pelas empresas. Em 2024, uma empresa foi multada pelo Governo do Distrito Federal, justamente por não fornecer os pontos de apoio aos seus motoristas. Contudo, a postura das empresas é totalmente contrária ao direito do trabalho previsto constitucionalmente, pois a reação ao decreto Nº41.484 de 2020 foi de discordância.
Destarte, é possível concluir reconhecendo o cerceamento em massa dos direitos fundamentais trabalhistas, sejam eles constitucionais, infraconstitucionais ou distritais, quando se analisa as relações trabalhistas nas plataformas digitais, pois se inicia com a negação do vínculo justrabalhista até alcançar o esgotamento das garantias do trabalho decente.
[1] Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora no Programa de Educação Tutorial em Direito da Universidade de Brasília (PET Direito/UnB).
Referências
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
De Melo, Raimundo Simão. Trabalho decente: conceito, história e objetivos estratégicos. Consultor Jurídico, 2022.
Martins, Sergio P. Direito do trabalho. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2024. E-book. ISBN 9788553622627. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553622627/. Acesso em: 13 ago. 2024.
Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Nações Unidas Brasil,, 2015. Acesso em: https://brasil.un.org/pt-br/91863-agenda-2030-para-o-desenvolvimento-sustentável
DECRETO Nº 41.484, DE 17 DE NOVEMBRO DE 2020. SINJ-DF. Acesso em: https://www.sinj.df.gov.br/sinj/Norma/2456e279270a4b7e9e4bf5bdbc7957d7/Decreto_41484_17_11_2020.html
Delgado, Gabriela Neves; Carvalho, Bruna Vasconcelos. Direitos Fundamentais Trabalhistas Para Quem? Reflexões sobre o Trabalho Plataformizado na Perspectiva do Direito Constitucional do Trabalho. In: Noemia Porto; Ricardo Lourenço Filho; Luciana Paula Conforti. (Org.). Plataformas Digitais de Trabalho: aspectos materiais e processuais, 1ed. Brasília: ANAMATRA-ENAMATRA, 2021, P. 34-53.
FÁBIO FELIX. DEPUTADO DISTRITAL PSOL. Fábio Felix representa contra a Uber pela falta de estrutura no ponto de apoio do Aeroporto de Brasília – Fabio Felix. Acesso em: https://fabiofelix.com.br/fabio-felix-representa-contra-a-uber-pela-falta-de-estrutura-no-ponto-de-apoio-do-aeroporto-de-brasilia/
[2] Martins, Sergio P. Direito do trabalho. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2024. E-book. ISBN 9788553622627. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553622627/. Acesso em: 13 ago. 2024.
[3] Delgado, Gabriela Neves; Carvalho, Bruna Vasconcelos. Direitos Fundamentais Trabalhistas Para Quem? Reflexões sobre o Trabalho Plataformizado na Perspectiva do Direito Constitucional do Trabalho. In: Noemia Porto; Ricardo Lourenço Filho; Luciana Paula Conforti. (Org.). Plataformas Digitais de Trabalho: aspectos materiais e processuais, 1ed. Brasília: ANAMATRA-ENAMATRA, 2021, P. 34-53.
[4] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
[5] De Melo, Raimundo Simão. Trabalho decente: conceito, história e objetivos estratégicos. Consultor Jurídico, 2022.
[6] Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Nações Unidas Brasil,, 2015. Acesso em: https://brasil.un.org/pt-br/91863-agenda-2030-para-o-desenvolvimento-sustentável.
[7] DECRETO Nº 41.484, DE 17 DE NOVEMBRO DE 2020. SINJ-DF. Acesso em: https://www.sinj.df.gov.br/sinj/Norma/2456e279270a4b7e9e4bf5bdbc7957d7/Decreto_41484_17_11_2020.html
[8] FÁBIO FELIX. DEPUTADO DISTRITAL PSOL. Fábio Felix representa contra a Uber pela falta de estrutura no ponto de apoio do Aeroporto de Brasília – Fabio Felix. Acesso em: https://fabiofelix.com.br/fabio-felix-representa-contra-a-uber-pela-falta-de-estrutura-no-ponto-de-apoio-do-aeroporto-de-brasilia/