Por Lucas Cantarino Antunes de Oliveira[1]
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Introdução
As redes sociais mudaram o mercado fonográfico. Hoje, o objetivo do marketing musical é “viralizar” nos ambientes virtuais, em especial, no TikTok. Através da rede, músicas antigas voltam às paradas após anos, e novos artistas entram em ascensão sem orçamentos milionários ou contratos predatórios.
Entretanto, nos primeiros meses de 2024, usuários do TikTok perceberam que diversos vídeos na plataforma estavam sem música, contendo um aviso de que o áudio havia sido removido. O que parecia se tratar de um erro de sistema era, na verdade, parte de uma grande disputa sobre direitos autorais e inteligência artificial, envolvendo empresas multinacionais com interesses opostos.
A Universal Music Group, grande conglomerado do mundo da música mundial e responsável pelo catálogo de artistas como Taylor Swift e Justin Bieber, optou por não renovar seu contrato de licença com a plataforma chinesa[2]. A alegação do grupo empresarial foi de que o TikTok não remunera os artistas de forma adequada pela reprodução das canções nos conteúdos do app, pagando menos do que outras redes sociais. A UMG aponta como motivo uma tentativa da plataforma de subvalorizar criações humanas e incentivar músicas geradas por inteligência artificial, em busca de reduzir o gasto com royalties[3].
É importante ressaltar que a influência desse recurso tecnológico na música já é uma realidade. Além de ferramentas que recriam vozes de artistas[4], há também a possibilidade de músicas serem totalmente geradas sem performance humana.
Neste contexto, iremos analisar o que a legislação brasileira e de outros países diz sobre a proteção a criações musicais, e se há a previsão de obras criadas por ferramentas de inteligência artificial nos textos legais. Há também de se pensar quais os interesses na tentativa de substituição de artistas humanos por não-humanos, e a quem isso beneficia.
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O direito autoral no Brasil
A lei 9.610/1998, conhecida por ser a lei dos direitos autorais, prevê a proteção às “criações do espírito” em seu artigo 7o[5]. Segundo o artigo 11 do texto, o autor de uma obra é uma pessoa física. Não há a possibilidade de, legalmente, uma ferramenta autônoma de inteligência artificial ser criadora de uma obra artística, e além disso, de ter direitos de arrecadação e proteção de suas criações estabelecidos. É importante ressaltar o contexto temporal: na época da redação da lei, já se discutia sobre meios de distribuição digital de arte[6], como serviços de música, mas não havia possibilidade de debate sobre produção de obras por inteligência artificial.
Há uma longa cadeia na distribuição dos “royalties”, valores pagos pela exploração de direitos autorais, na música do Brasil. Para a correta remuneração, é preciso o registro de obra, ou seja, a música escrita, com cifra, letra, partitura ou gravação-teste, em uma associação de gestão coletiva musical, órgão filiado ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição responsável pela distribuição e arrecadação de direitos autorais[7]. No mesmo órgão, é registrado o fonograma, ou seja, a gravação final. Nesta etapa, já estão definidos: compositores, intérpretes, produtores e instrumentistas. O lançamento físico e digital fica a cargo de distribuidoras. A depender do artista, também estão incluídas no processo empresas editoras de direito autoral e gravadoras, como as subsidiárias do grupo UMG, atuando na distribuição e edição das canções.
Todos os atores incluídos neste processo têm a sua participação nos direitos autorais. Vê-se, portanto, que a exploração de músicas criadas por seres humanos, no Brasil, tem um custo vinculado. E os exploradores, como o TikTok, podem não estar interessados em desembolsar com isso.
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O direito autoral nos Estados Unidos
Os Estados Unidos da América são pioneiros no mercado fonográfico e possuem uma estrutura com grandes grupos empresariais e artistas. No país, o texto da lei de direitos autorais é de 1976[8]. Nesta, o termo “autor” aparece 80 vezes. Em todas, o conceito de autor está ligado a uma pessoa física. Para regular a exploração do direito autoral em mídias digitais, há a Lei dos Direitos Autorais do Milênio Digital[9], de 1998, contemporânea à atual lei brasileira sobre o mesmo assunto. No final do século XX, já se falava em software e meios de reprodução digital, mas a criação de obras por inteligência artificial estava distante de ser uma preocupação legal.
Em uma decisão de 2023, a juíza distrital estadunidense Beryl Howell foi contrária ao entendimento de que obras criadas autonomamente por inteligência artificial devem ser protegidas por inteligência artificial[10]. A magistrada decidiu em favor do Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos, adotando a visão de que apenas autores humanos tem direitos de proteção a suas obras.
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Impacto nas redes, nos artistas e na sociedade
Enquanto as redes sociais atingem recorde de faturamento[11], este crescimento não busca incentivar os artistas com mais pagamentos de royalties. Como já visto, as redes tem como objetivo a reposição dos artistas humanos por mecanismos de inteligência artificial. Este movimento é semelhante, se não intrínseco, à tendência das empresas de substituírem o trabalho humano pelo digital. Os resultados deste processo são óbvios: um faturamento ainda maior das plataformas, enquanto artistas e todo o mercado musical à sua volta terão seu faturamento reduzido, sendo necessária uma reformulação do processo de arrecadação.
Mas, além dos atores de produção, exploração e faturamento da música, deve-se levar em conta o mais importante de toda a cadeia: o público. A pergunta não feita é: a sociedade tem interesse de ouvir músicas geradas por inteligência artificial? A resposta pra esse questionamento, é, ainda, negativa. Por mais que alguns conteúdos musicais produzidos por esse recurso chame a atenção do público, ainda não há um consumo expressivo de música por inteligência artificial. Na verdade, o cenário da música em sua forma atual cresce a cada dia: Nas paradas musicais ao redor do mundo, todas as canções mais ouvidas são de artistas humanos[12]. Serviços de streaming, como o o Spotify, em que artistas reais despontam, crescem ano após ano.
Não se pode esquecer, além disso, de todo o mercado de apresentações ao vivo movimentado pelos artistas. Quando se entra nesse aspecto, é visível que o público se interessa bastante por intérpretes humanos, e não por ferramentas artificiais: O consumo de música por mídias digitais, o que seria possível apenas com IA, não basta. Pessoas desejam ver seus artistas de preferência performarem ao vivo. Isso se mostra claro no período pós-pandêmico, com uma alta do número de shows e também da capacidade destes[13]. Artistas cada vez mais lotam espaços, de casas pequenas e tradicionais a grandes arenas[14].
Tomar atitudes contra a arte, em especial a música, criada por humanos, é, portanto, ir contra o interesse de quem consome esse conteúdo. A substituição pela inteligência artificial prejudicaria todo o mercado fonográfico e as atividades dele derivadas, como as apresentações ao vivo.
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Conclusão
A problemática do não-reconhecimento de direitos autorais em criações de automações digitais tem graves consequências não só no meio musical, mas em toda a cena cultural. Percebe-se, pelas atitudes de redes como o TikTok, que há uma tentativa gradual de transferir a atividade de produção artística de pessoas para ferramentas digitais, a fim de se afastar de responsabilidades das legislações sobre direito autoral.
Enquanto há esse movimento das plataformas, o público não o acompanha. O artista ainda é uma figura relevante e necessária ao público. A inteligência virtual, por mais que “escreva” músicas, não é um artista de fato, com validação do público. Deve-se pensar o que é mais relevante: O interesse cultural ou o financeiro? Além disso, a discussão do reconhecimento de direitos autorais de inteligência artificial deve ser trazida à tona nas discussões jurídicas e legislativas, para que haja consenso e esclarecimento.
[1] Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro da AdvocattA – Empresa Júnior de Direito da UnB
Referências
[2] LOPES, André. Saída de Taylor Swift, Drake e outros artistas do TikTok teve IA como tema central. Exame, 1 de fevereiro de 2024. Acesso em 7/4/2024. Disponível em: https://exame.com/inteligencia-artificial/saida-de-taylor-swift-drake-e-outros-artistas-do-tiktok-teve-ia-como-tema-central/
[3]An open letter to the artist and songwriter community – Why we must call time out on TikTok. Universal Music Group, 30 de janeiro de 2024. Acesso em 7/4/2024. Disponível em: https://www.universalmusic.com/an-open-letter-to-the-artist-and-songwriter-community-why-we-must-call-time-out-on-tiktok/
[4] CRUZ, Felipe Branco. De Sinatra a The Weeknd, IA recria vozes famosas – e assusta o showbiz. Veja, 2 de junho de 2023. Acesso em 7/4/2024. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/o-som-e-a-furia/de-sinatra-a-the-weeknd-inteligencia-artificial-recria-vozes-famosas
[5] BRASIL. Lei n° 9.610, 19 de Fevereiro de 1998.
[6] FHC SANCIONA LEI DO DIREITO AUTORAL. Agência Senado, 19 de fevereiro de 1998. Acesso em 7/4/2024. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/1998/02/19/fhc-sanciona-lei-do-direito-autoral
[7] Conheça o ECAD. ECAD. Acesso em 7/4/2024. Disponível em: https://www4.ecad.org.br/sobre/
[8] ESTADOS UNIDOS. Copyright Law of the United States and Related Laws Contained in Title 17 of the United States Code – December 2022
[9] ESTADOS UNIDOS. Dezembro de 1998. The Digital Millennium Copyright Act of 1998.
[10] Artes geradas por IA não terão direitos autorais, determina Justiça dos EUA. Estado de Minas, 22 de agosto de 2023. Acesso em 7/4/2024. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/tecnologia/2023/08/22/interna_tecnologia,1550189/artes-geradas-por-ia-nao-terao-direitos-autorais-determina-justica-dos-eua.shtml
[11] Faturamento do TikTok nos EUA bate recorde em meio ao risco de proibição. Folha de São Paulo, 15 de março de 2024. Acesso em 7/4/2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/03/faturamento-do-tiktok-nos-eua-bate-recorde-em-meio-ao-risco-de-proibicao.shtml
[12] Billboard Hot 100. Acesso em 8/4/2024. Disponível em: https://www.billboard.com/charts/hot-100/
[13] SARMENTO, Gabriela. Por que os shows pós-pandemia estão esgotando tão rápido? g1, 30 de novembro de 2021. Acesso em 8/4/2024.
[14] RODRIGUES, Ingrid. Shows de NX Zero chegam ao Allianz; Di Ferrero comemora: ‘Melhor fase como banda’. ISTOÉ, 15 de dezembro de 2023. Acesso em 8/4/2024.