Por José Lopes da Silva Neto*
O modelo de segurança pública adotado atualmente no Brasil, tem por base a Constituição Federal de 1988, a qual fixou um compromisso legal com a segurança individual e coletiva da população. Sem embargo, a concretização desse objetivo tem se mostrado muito penosa, uma vez que as políticas de segurança pública têm sido utilizadas como paliativo a situações emergenciais e urgentes. Muitas carecem de planejamento, articulação formal e possuem caráter abertamente punitivo, aprovadas rapidamente em contextos de forte demanda da opinião pública.
Desse modo, o que se verifica é que muitas das políticas de segurança pública adotadas no Brasil, restringem-se a uma série de intervenções espasmódicas, meramente reativas, voltadas para a solução imediata de crises que assolam a ordem pública¹. Nesse cenário, as ações em segurança pública no âmbito social têm gerado resultados insatisfatórios, já que têm como foco a conveniência imediata, ignorando as consequências de longo prazo.
Nesse contexto, o fenômeno criminal e a expansão da criminalidade violenta no Brasil nas últimas décadas foram pouco afetadas pelos índices de encarceramento massivo implementados por legislações como a Lei n. 8.072/1999 e a Lei n. 11.343/2006, popularmente conhecida como Lei de Drogas. O aumento das taxas de encarceramento são fruto de uma demanda punitiva que encontra respaldo legislativo, a chamada criminalização primária, assim como na atuação das agências de segurança pública, justiça criminal e administração penitenciária, a dita criminalização secundária.
Com a situação se tornando cada vez mais insustentável, movimentações recentes têm sido feitas no judiciário a fim de avaliar criticamente os efeitos da atual política de drogas no encarceramento da população brasileira. É evidente que a chamada guerra às drogas possui um papel central no aumento exponencial das taxas de encarceramento e mantém intactas as desigualdades baseadas em hierarquias raciais.
Ela é o argumento político de um processo de recrudescimento penal, que tem por fundamento cognitivo representações raciais, produzindo e mantendo o hiperencarceramento como fórmula de controle dos espaços urbanos e de gestão da presença de populações nos espaços da cidade². Assim como ocorre em parte significativa dos países do mundo, a política de drogas é constituída por falsas noções eivadas de estigmas que lastreiam a narrativa de conflito sobre as quais se deflagram a política criminal e as estratégias de segurança pública.
Com um modelo adotado pelas convenções internacionais e com influência estadunidense, o proibicionismo tornou-se a doutrina dominante e se estendeu por diversas esferas da vida social e política dos países, orientando não somente a produção legislativa dos Estados Nacionais, mas também dirigindo o entendimento da Magistratura, orientando as estratégias das gestão de segurança pública, ocupando espaço significativo na cobertura da mídia e presidindo as interpretações públicas sobre a matéria das substâncias psicoativas relegando-as à ilegalidade.
Desse modo, o proibicionismo se tornou sinônimo de política de “guerra às drogas” e justifica medidas belicosas e truculentas no que tange o combate à violência e contenção do aumento de usuários. Tal política tem gerado hiperencarceramento, bem como aumento nos índices de homicídios, tanto praticados pelas forças policiais quanto os decorrentes das disputas entre os grupos do tráfico na busca do domínio territorial do comércio de drogas em cada região.
Essa retórica possui um forte apelo moral, desconsiderando as dimensões culturais, antropológica, sociais e políticas do uso de drogas na história da humanidade, inviabilizando que o tema seja discutido na esfera da saúde pública, de redução de danos e sobre as condições de convivência pública menos lesivas socialmente com o consumo e comercialização de drogas.
Sob essas circunstâncias, é palpável o papel que a Lei n. 11.343/2006 no hiperencarceramento, levando o Brasil ao posto de terceira maior população carcerária do mundo. A nova legislação instituiu uma Política Nacional sobre Drogas e assumiu o lugar da lei anterior que datava de 1976. Ela inova ao distinguir o tratamento destinado a usuários e traficantes. As medidas adotadas no que tange ao usuário, se propõe, pelo menos teoricamente, a promover medidas de saúde pública, de modo que o usuário não pode ser preso em flagrante e responde em penas alternativas, bem como é formulado um termo circunstanciado.
Por outro lado, o tratamento destinado ao traficante foi recrudescido, com punição de 5 a 15 anos, assim como a impossibilidade de condenados por tráfico serem beneficiados pela extinção da pena³. O que a legislação não trouxe, foram critérios objetivos para distinguir traficantes de usuário. Nos termos do art. 28 da Lei n. 11.343/2006, caberá ao juiz decidir se determinada droga estava destinada para o consumo pessoal ou para o tráfico, tendo como norteadores da decisão a natureza, a quantidade da substância, o local, as condições em que a ação de apreensão se desenrolou, das circunstâncias sociais e pessoais, assim como da conduta e dos antecedentes da pessoa em análise.
A questão é que as instituições jurídicas, policiais e penitenciárias possuem inegavelmente heranças positivistas e deterministas, ainda que inconscientemente, de modo que o aparato de criminalização se foca em determinados perfis. Os processos de criminalização no que se refere ao uso, porte e comércio de drogas no país se interrelacionam com as hierarquias raciais e delimitam a construção do marco político de debate sobre o tema, assim como dita as formas de definição legal sobre quem são os consumidores e os comerciantes de entorpecentes.
De acordo com o Infopen, de 2006 a 2014, o número de encarcerados aumentou em cerca de 200 mil pessoas. Para efeito de comparação, entre 1990 e 2005, o número de pessoas encarceradas foi de 27 mil pessoas. Entre 2000 e 2016, a taxa de encarceramento no Brasil saltou de 137 pessoas presas para cada 100 mil habitantes para 352,6 pessoas presas para cada 100 mil habitantes em 2016⁴. Esse cenário favorece uma tendência jurisprudencial de aumento das prisões cautelares e de uma maior flexibilização no que tange às garantias penais e processuais na decretação de medidas privativas de liberdade⁵.
A situação é ainda mais alarmante no que tange às mulheres, que geralmente são diretamente impactadas pelas mudanças econômicas, políticas e ideológicas no sistema capitalista, bem como pela expansão do sistema prisional. Ainda que o contingente total em números absolutos seja menor (35.218), as mulheres compõem o segmento que mais cresce no encarceramento⁶. Entre os anos de 2000 e 2014, ocorreu um aumento de 567,4% no continente de mulheres encarceradas, enquanto que o aumento entre os homens foi de 220%⁷.
Apesar dos esforços recentes de combate aos criminosos de colarinho branco, a expansão penal não produziu alterações significativas no perfil da população carcerária, que segue sendo caracterizada por indivíduos com baixo grau de instrução e renda, geralmente encarcerados pela prática de crimes contra o patrimônio ou por tráfico de drogas. Dessa forma, é inegável que a política criminal de drogas no Brasil vem sendo dirigida pelo racismo enquanto sistema de poder político, econômico e cultural⁸.
É possível verificar uma grande discricionariedade para atuação policial que influencia decisivamente na tipificação do delito de tráfico e, não raro, excede no enquadramento seletivo dos acusados que prejudica majoritariamente negros, pobres e moradores de regiões urbanas socialmente discriminadas, de modo que os critérios objetivos para fixação da pena são deixados de lado, prevalecendo o subjetivismo preenchido por fortes esteriótipos de classe, raça e genero.
Ademais, uma infinidade de dispositivos legais e entendimentos jurisprudenciais afastam o Brasil de suas previsões constitucionais em termos de garantias aos acusados, de preservação de direitos fundamentais dos indivíduos e manutenção de padrões mínimos de preservação da vida e da dignidade nos presídios espalhados pelo Brasil. A política de drogas tem um impacto devastador nas pessoas negras e em suas comunidades. Sob o ângulo da segurança pública, traduz expressivos números de encarceramento e mortes decorrentes das diretrizes belicistas das ações policiais com custos econômicos colossais e custos em termos éticos de garantia da vida e de preservação do sentido de dignidade humana.
As abordagens policiais e as práticas de policiamento urbano que dão origem à representação do suspeito tem forte vinculação com o caráter estruturalmente seletivo do sistema penal. Em um cenário em que as possibilidades de criminalização são inúmeras, já que o mercado de produção, distribuição e consumo de drogas tem um número de pessoas envolvidas muito superior à capacidade geral do sistema penal de encarceramento. Do ponto de vista político, a guerra às drogas é, talvez, a demonstração mais evidente de que é insustentável qualquer discurso acerca da democracia racial no Brasil.
Pesquisas demonstram que os jovens negros estão sendo encarcerados sob acusação de tráfico de drogas ainda que estejam portando quantidade muito pequenas de substâncias ilícitas⁹. Verifica-se, ainda, maior incidência de violência física e tortura contra pessoas negras nos casos de abordagem policial¹⁰, além das reiteradas e sucessivas denúncias de seletividade racial nos julgamentos e nas abordagens de pessoas negras acusadas de tráfico de drogas no Brasil¹¹.
Há um processo de desconstituição da humanidade das pessoas negras que ampara e justifica a consecução de práticas discriminatória e violentas de prisões ilegais, torturas e extermínio da população negra. Esse processo de desumanização perpassa pela atualização permanente da experiência escravista e pela reedição de representações negativas das pessoas negras que se articulam com a dimensão hiperpunitivista da guerra às drogas para promover prisões, castigos e morte de pessoas negras¹².
O poder judiciário brasileiro, lastreado pela branquitude, ao validar uma política de segurança pública tem se equilibrado em uma estratégia ambígua. De um lado, decisões constitucionais com investimento simbólico validam políticas de ação afirmativa que foram construídas pelas disputas sociais ao mesmo tempo em que corrobora, cotidianamente, por meio de procedimentos apenas na superfície neutros, a política de segurança genocida. A gestão dos corpos negros nas cidades é um mecanismo central para reprodução das hierarquias raciais em relação ao trabalho e a riqueza¹³.
É preciso refletir sobre a história do Brasil, a fim de compreender seus processos com mais precisão. Uma reflexão que nos direcione para um futuro inclusivo, antirracista, antissexista e anticlassista. É necessário perceber que políticas sociais progressistas e que tenham por base os direitos humanos e a cidadania não poderão ter uma efetividade plena em uma sociedade que se mantém inerte diante do encarceramento e segregação promovidos pela Guerra às Drogas.
A Guerra às Drogas não é uma guerra contra as substâncias, é uma guerra contra pessoas, assim como toda guerra. Por ser uma guerra, tem um inimigo a ser combatido e uma direção para onde direcionar suas ações bélicas. Como aponta Maria Lúcia Karam: “Os ‘inimigos’ nessa guerra são os pobres, os marginalizados, os negros, os desprovidos de poder, como os vendedores de drogas do varejo das favelas do Rio de Janeiro, demonizado como ‘traficantes’, ou aquele sque a eles se assemelham, pela cor da pelas pelas mesmas condições de pobreza e marginalização, pelo local de moradia que, conforme o paradigma bélico não deve ser policiado como os demais locais de moradia, mas sim militarmente ‘conquistado’ e ocupado”.¹⁴
* Graduando em Direito pela Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil. Membro do Programa de Educação Tutorial do curso de Direito da Universidade de Brasília.
[1] CARVALHO, Vilibaldo Adelidio de; FÁTIMA E SILVA, Mario do Rosário de. Políticas de Segurança Pública no Brasil: avanços, limites e desafios. Katál, v. 14, n. 1, p. 59-67, 2011. p. 62.
[2] AVELAR, Laís da Silva; NOVAES, Bruna Portella. Há mais mortes anteriores a morte: politizando o genocídio negro dos meios através do controle urbano racializado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, v. 135, ano 25, p. 343-376, set. 2017.
[3] BORGES, Juliana. Encarceramento em Massa/ Juliana Borges. São Paulo: Sueli Carneiro ; Editora Jandaíra, 2021. p. 102.
[4] BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Brasília, Infopen, 2017.
[5] BOITEUX, Luciana. Tráfico de Drogas e Constituição. Um estudo jurídico-social do tipo do artigo 33 da Lei de Drogas diante dos princípios constitucionais-penais. Série Pensando o Direito. Brasília: Ministério da Justiça, mar. 2009.
[6] DEPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Info Pen Mulheres – junho de 2014, Ministério da Justiça, 2015.
[7] BORGES, Juliana. Encarceramento em Massa/ Juliana Borges. São Paulo: Sueli Carneiro ; Editora Jandaíra, 2021. p. 93.
[8] BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo. Dissertação de Mestrado em Direito. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 1989.
[9] CARVALHO, Salo de. O encarceramento seletivo da juventude negra brasileira: a decisiva contribuição do Poder Judiciário. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, n. 67, p. 623-652, 2016.
[10] BRASIL. Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial. Subsídios para o debate: III Conferência Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Brasília, 2013.
[11] DUARTE, Evandro C. Piza et al. Quem é o suspeito do crime de tráfico de drogas? Anotações sobre a dinâmica de preconceitos raciais e sociais na definição de condutas de usuários e traficantes pelos policiais militares das cidades de Brasília, Curitiba e Salvador. In. LIMA, Cristiane; BAPTISTA, Gustavo; FIGUEIREDO, Isabel (Ed.) Segurança público e direitos humanos: temas transversais. Brasília: Ministério da Justiça, 2014. p. 81-118.
[12] DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. Rio de Janeiro: Difel, 2009.
[13] DUARTE, Evandro C. Piza; QUEIROZ, Marcos V. L; COSTA, Paulo H. A. A hipótese colonial, um diálogo com Michel Foucault: a Modernidade e o Atlântico Nefro no centro do debate sobre racismo e sistema penal. Universitas Jus, v. 27, p. 1, 2016.
[14] KARAM, Maria Lúcia. Violência, militarização e ‘guerra às drogas’. In: KUCINSKI, Bernardo [et al], (org.). Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para a sua superação. 1 Ed. São Paulo: Boitempo, 2015.
Referências
AVELAR, Laís da Silva; NOVAES, Bruna Portella. Há mais mortes anteriores a morte: politizando o genocídio negro dos meios através do controle urbano racializado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, v. 135, ano 25, p. 343-376, set. 2017.
BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo. Dissertação de Mestrado em Direito. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 1989.
BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Brasília, Infopen, 2017.
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BORGES, Juliana. Encarceramento em Massa/ Juliana Borges. São Paulo: Sueli Carneiro ; Editora Jandaíra, 2021. p. 102.
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CARVALHO, Vilibaldo Adelidio de; FÁTIMA E SILVA, Mario do Rosário de. Políticas de Segurança Pública no Brasil: avanços, limites e desafios. Katál, v. 14, n. 1, p. 59-67, 2011. p. 62.
DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. Rio de Janeiro: Difel, 2009.
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_________; QUEIROZ, Marcos V. L; COSTA, Paulo H. A. A hipótese colonial, um diálogo com Michel Foucault: a Modernidade e o Atlântico Nefro no centro do debate sobre racismo e sistema penal. Universitas Jus, v. 27, p. 1, 2016.