Por: João David e Vitor Barradas
A recente e progressiva integração entre o direito e a tecnologia se faz como uma forma de garantia e eficácia da justiça estatal. O Direito Civil se vale deste avanço – e, portanto, avança em conjunto -, na direção da readequação de garantias formais, por meio de jurisprudência dos tribunais superiores, para ampliar o acesso a determinado direito, que, antes das novas tecnologias, talvez fosse mais restrito. Um exemplo disso é a aceitação da impressão digital como assinatura válida em testamento particular.
No sistema jurídico português, a utilização da impressão digital como prova plena para a validade de um testamento foi admitida no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18/05/2017, processo n° 3442-11.2TBTVD.L1-6. No caso supracitado, da relatora Maria Teresa Pardal, se concluiu que “Constando do BI – bilhete de identidade – da testadora que esta não pode assinar e tendo sido aposta a sua impressão digital, não se verifica a nulidade do testamento por falta de assinatura”[1]. A possibilidade de admissão da impressão digital como prova plena ocorre, portanto, de forma condicional, visto que a testadora não possuía a condição física necessária para reproduzir sua característica comportamental identificadora, a assinatura.
Vale denotar que a assinatura também constitui dado biométrico[2], pois se encontra nos parâmetros definidos ao se tratar de uma ação reproduzível por uma pessoa, podendo identificá-la. No entanto, apesar de possibilitar a identificação e autenticação de pessoas por ser universal, única, permanente, acessível e qualificável[3], a assinatura não era mecanismo passível de utilização para atingir os fins previstos em ambos os casos. Dessa forma, os dados biométricos a serem utilizados no processo testamentário não foram os relativos às características comportamentais do indivíduo, mas sim os dados relativos a características físicas ou anatômicas das pessoas[4].
Da mesma forma ocorreu, recentemente, no Brasil. Isso porque a 2ª Seção do STJ, em julgado recente, decidiu pela possibilidade de se utilizar, em substituição à assinatura de próprio punho, a impressão digital como validador de testamento particular. No caso do Recurso Especial 1.633.254, de MG, a Min. Nancy Andrighi, relatora, entendeu que seja tão fundamental a preservação da manifestação de última vontade do de cujus que se possam relativizar certos requisitos formais – ou, em suas palavras, “formalistas”. É relevante mencionar que, por incapacidade física, já que estava hospitalizada, não conseguiu a testadora assinar de próprio punho o documento.
A questão se torna, portanto, saber se há ou não veracidade fática no que se entende como última vontade do testador. Isso, no entanto, requer uma análise muito mais probatória do que jurídica, de modo que, sobre tal, divergiram, inclusive, a relatora e o dissidente Min. Cueva. Este entendeu que o fato de estar a testadora hospitalizada “impede que se tenha certeza acerca da higidez da própria manifestação de vontade ali expressa.”[5], e aquela, que “embora sofrendo (a testadora) com limitações físicas, não possuía nenhuma restrição cognitiva“. Não cabe, portanto, a quem vê de fora análise senão jurídica do célebre acórdão.
O que está posto é, assim, é a controvérsia acerca de ter havido desrespeito ao disposto no Código de Processo Civil, que determina, como um dos requisitos de validade do testamento particular, a necessidade de assinatura de próprio punho. É bem verdade que alguns dos requisitos de um testamento particular são frequentemente flexibilizados, pois, conforme expusera a eminente relatora, o âmago de tal procedimento é a preservação da última vontade da testadora. Os ministros dissidentes, no entanto, entendem que esse requisito, em especial, não possa ser flexibilizado. Diz, o Min. Cueva, em seu voto, que, nessa situação, “sem a assinatura da testadora não é possível concluir, de modo seguro, que o testamento, que nem sequer foi escrito de próprio punho, exprime a sua real vontade.“.
Parece, por fim, prematuro que assumamos imediata posição a respeito de controvertida hipótese. O Código, inequivocamente, lista a assinatura como um dos requisitos de validade. O STJ, no entanto, é quem dá a última palavra sobre a legislação federal, e é quem, dialeticamente, molda e adéqua os engessados códigos para a realidade sempre instável. É possível, deste modo, que se tenha dado importante e moderna interpretação a um dispositivo legal que sempre se possa atualizar, em congruência com os avanços perceptíveis oferecidos pelas ciências.
Vítor Barradas: Graduando em Direito pela Universidade de Brasília. Estagiário do gabinete do Min. Sanseverino, do STJ e editor-assistente da RED.
João David: Graduando em Direito pela Universidade de Coimbra.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
[1] Acórdão do STJ de 18/05/2017, processo n° 3442-11.2TBTVD.L1-6, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/-/5B7AE313F95725E780258137002C9454
[2] Definição do Grupo de Trabalho de Protecção de Dados do Artigo 29.º, Parecer 4/2007 sobre o conceito de dados pessoais 01248/07/PT WP 136 p.9, disponível em https://www.gpdp.gov.mo/uploadfile/others/wp136_pt.pdf
[3] Catarina Sarmento e Casto, Direito da informática, privacidade e dados pessoais, Coimbra, 2005. P.83.
[4] Em Catarina Sarmento e Casto, Direito da informática, privacidade e dados pessoais, Coimbra, 2005. P.83, a autora utiliza-se da definição de dados biométricos provida pelo Grupo de Trabalho de Proteção de Dados do Artigo 29°. No entanto, adiciona a categorização destes. Nos dados relativos a características físicas se encontra a impressão digital e nos dados relativos a características comportamentais está a assinatura escrita.
[5] (REsp 1633254/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11/03/2020, DJe 18/03/2020)