Sobre a autonomia estadual na reforma tributária

por PET Direito - UnB

Por Caio Ruggiero*

A relação entre a reforma tributária e a autonomia estadual é um tema complexo e controverso. Enquanto os governadores e prefeitos argumentam que a reforma tributária pode comprometer a autonomia dos estados, os economistas liberais defendem que ela é essencial para promover uma distribuição mais equilibrada de recursos e simplificar o sistema tributário nacional. Neste contexto, explorar-se-á os argumentos que sustentam a visão de que a reforma tributária pode acabar com a autonomia estadual e com o pacto federativo.

Um dos principais pontos de preocupação em relação à reforma tributária é a centralização do poder decisório e fiscal nas mãos do governo federal. A proposta aprovada na Câmara dos Deputados de unificar impostos e estabelecer regras nacionais para a arrecadação pode resultar em uma perda significativa da capacidade dos estados de legislar e arrecadar recursos próprios, uma vez que cinco tributos distorcivos (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) serão substituídos pelo Imposto Seletivo (o novo IPI, que tributará produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente), pela Contribuição dos Estados, que amplia fortemente o poder de tributar dos Estados, que inclusive poderão voltar a cobrar tributo sobre as exportações, o que recorda os debates ocorridos na década de 90 do século passado, e pelo IVA dual a partir de 2026, um imposto sobre o valor agregado com duas fontes de arrecadação, uma a cargo da União e outra (CBS Federal que substitui o PIS e COFINS), dos Estados e dos municípios (IBS que substitui o ICMS e o ISS), como ocorre na Europa.

Isso pode levar a uma dependência financeira dos estados em relação à União, prejudicando sua autonomia para tomar decisões de acordo com as necessidades regionais, de tal jeito que existem governadores falando que “não podem viver de mesada da União”, que disporia de poder discricionário na distribuição de recursos. Dessarte, a PEC nº 45 cria um Conselho Federativo, órgão central para a uniformização da legislação, arrecadação e distribuição de receitas tributárias entre Estados, municípios e contribuintes (no caso dos créditos apurados devidos), cuja presidência será realizada de forma alternada entre o conjunto de Estados e Municípios, a fim de “dividir o bolo”, que no caso é o IBS (Imposto de Bens e Serviços). Nessa esteira, proíbe-se a autonomia para fixar alíquotas, hipóteses de incidência e bases de cálculo e decreta-se o fim da cumulatividade, com o objetivo de alcançar a eficiência, a produtividade e a simplificação tributária.

De acordo com o texto aprovado na Câmara, as 27 unidades da Federação indicarão um representante cada uma para o Conselho Federativo. O conjunto dos 5.568 municípios terá direito a eleger outros 27 membros, sendo 14 representantes com base nos votos de cada município — com valor igual para todos — e 13 representantes com base na média ponderada dos votos de cada município pelas respectivas populações. Na perspectiva de parlamentares, a divisão acabou elevando o poder decisório de Sul e Sudeste.

Nessa análise, só o texto da PEC 45/19 aprovado pelo relator conta com 36 páginas de modificações de texto normativo (sem contar as justificativas). Nove incisos tratam de setores que terão direito a uma alíquota de 40% da CBS e do IBS: entre eles, serviços de educação, saúde, medicamentos e produtos de cuidados básicos à saúde menstrual, serviços de transporte coletivo de passageiros rodoviário, ferroviário e hidroviário, intermunicipal e interestadual, alimentos destinados ao consumo humano e produtos de higiene pessoal, produtos agropecuários, atividades artísticas e culturais, jornalísticas e desportivas, bens e serviços relacionados à segurança e soberania nacional. Desse jeito, o fato gerador do IBS incidirá sobre operações com bens materiais e imateriais, direitos, ou com serviços e, inclusive sobre a importação, entretanto as regras de arrecadação do imposto, o regime de compensação e a forma para ressarcimento de créditos acumulados ainda estão muito nebulosos, pois serão regulados na forma da Lei Complementar.

A alíquota zero dos tributos poderá ser aplicada a dispositivos médicos, a medicamentos, à Cesta Básica Nacional de Alimentos e ao ensino superior voltado ao Programa Universidade para Todos (Prouni). Há, ainda, imunidade ao transporte público, às “atividades de reabilitação urbana de zonas históricas e de áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística” e às “entidades religiosas, templos de qualquer culto, incluindo suas organizações assistenciais e beneficentes” – segundo o Deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), o dispositivo foi incluído após acordo com a bancada evangélica.

Nesse cenário, a tributação passaria integralmente ao Estado de destino das transações, requerendo meios para enviar cada fatia a receita do imposto a quem tem direito, de modo a centralizar o comando do processo e desalocar o Estado e o municípios dessa função. Desse modo, quando uma empresa de um município de Goiás exportasse uma mercadoria a um contribuinte de outro município de São Paulo, o imposto seria sempre recolhido no destino, ou seja, em São Paulo – e não na origem, como atualmente se faz. Alguns produtos e setores, de acordo com o texto, poderão fazer jus a benefícios diferenciados. É o caso dos combustíveis e lubrificantes, que estarão sujeitos a um regime monofásico do IBS, de modo que a empresa que está no começo da cadeia será responsável pelo pagamento antecipado do imposto, em nome das demais companhias.

Ademais, é comum a cadeia de produção estar espalhada por diversas localidades, de modo que a arrecadação do bem final ao ser consumido seria distribuída pelo Conselho Federativo na devida proporção para Estados e municípios de destino – daí decorre a metáfora da “mesada”. Portanto, argumenta-se que quem deve comandar a própria arrecadação é o próprio Estado, o município ou a União, de sorte a ser um tiro no escuro arriscar a uma lei complementar a regulamentação da governança do Conselho Federativo.

Assim, outro aspecto a ser considerado é a diversidade econômica e social existente entre os estados brasileiros. Cada região possui particularidades e necessidades específicas que podem não ser adequadamente contempladas em um sistema tributário nacional uniforme, de modo a demandar alíquotas diferenciadas para cada setor, como, por exemplo, alíquotas menores para a agricultura. Por isso, a vedação, na reforma aprovada pela Câmara, da concessão de incentivos e benefícios fiscais ou regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação, excetuadas as hipóteses previstas na Constituição, impõe regras e alíquotas padronizadas, de modo a prejudicar os estados menos desenvolvidos, que podem ter dificuldades em atender às demandas de suas populações e promover políticas de desenvolvimento regional.

Destarte, com a centralização da arrecadação e da definição das alíquotas, a União, a partir de Resolução do Senado Federal que fixará alíquota de referência do imposto para cada esfera federativa, deixa pouco espaço para os Estados definirem suas próprias políticas tributárias. Isso pode limitar a capacidade dos estados de ajustar suas alíquotas de acordo com suas necessidades e realidades econômicas, prejudicando sua autonomia fiscal. Além disso, a reforma tributária pode afetar a capacidade dos estados de promover políticas fiscais e atrair investimentos. A competição fiscal entre os estados é uma realidade no Brasil, e muitos deles utilizam incentivos e benefícios fiscais como estratégia para estimular o crescimento econômico em suas regiões. Com a unificação dos impostos e a eliminação desses instrumentos, os estados podem perder uma ferramenta importante para atrair investimentos e impulsionar suas economias.

Fazendo um paralelo histórico, durante a passagem da Monarquia para a República, o Brasil viveu uma reforma tributária também, porém impondo a descentralização e o federalismo – que já ocorria de fato desde o Golpe da Maioridade em 1840, pois os “clãs” e as ilhas de poder privado detinham verdadeiramente o poder. Dessa forma, implementou-se uma divisão de competências bem definidas entre União e Estados, uma melhor discriminação de rendas e o princípio da legalidade tributária, o que infelizmente não impedia a bitributação, a sobreposição de impostos e a dependência dos municípios ao Estado – até hoje muitos municípios no Brasil sobrevivem economicamente de repasses e transferências constitucionais da União e dos Estados. Pois bem: se outrora descentralizamos o que já era descentralizado, agora centralizamos o que já é altamente centralizado – a União detém a maior parte das receitas dos impostos mais rentáveis, como, por exemplo, IOF, II, IPI, IRPF, IRPJ, Cofins/PIS e CSLL.

Nessa análise, importante destacar que a autonomia estadual é um princípio fundamental do federalismo brasileiro e gravado como cláusula pétrea na Constituição Federal no art. 60º, § 4º, inciso I, garantindo que os estados tenham a capacidade de se autogovernar e atender às demandas de suas populações de acordo com suas peculiaridades regionais. A reforma tributária deve ser cuidadosamente pensada para não comprometer esse princípio e preservar a autonomia dos estados para tomar decisões e gerir suas próprias receitas.

Em conclusão, embora a reforma tributária seja uma necessidade para simplificar o sistema tributário e promover uma distribuição mais justa de recursos, é importante considerar os possíveis impactos sobre a autonomia tributária estadual no modo de arrecadação e as incertezas das regulamentações futuras a vir a ser aprovadas em formas de leis ordinárias, complementares, decretos, resoluções do Senado, portarias e circulares para a definição das alíquotas, das hipóteses de incidência e das bases de cálculo dos impostos. Destarte, faz-se necessário buscar um equilíbrio entre a busca por um sistema tributário mais eficiente e a preservação da autonomia dos Estados.

* Graduando na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Membro do Programa de Educação Tutorial em Direito (PET Direito UnB) e pesquisador no Centro de Estudos Constitucionais Comparados da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (CECC UnB).

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