Por Julia Zucchi Natour*
A canção Refavela é uma manifestação da arte brasileira que, assim como tantas outras, é um excelente objeto de análise que através de uma outra gramática expõe reflexões sobre a conjuntura nacional. A vista disso, propõe-se, através do exame da música, destrinchar alguns conceitos e referências essenciais para a compreensão do Brasil contemporâneo. Convém salientar que, a música apesar de ser permeada por elementos pertencentes à discussão sobre raça e classe, o álbum Refavela não se centra na denúncia das violências sofridas pelos corpos periféricos e negros propriamente ditas. Desse modo, apesar de expor a estrutura injusta da sociedade brasileira (e global), essa obra de Gil reúne as reações, na década de 1970, das comunidades negras, pobres e periféricas (tanto no âmbito do tecido urbano quanto no do capitalismo) frente às violências classistas, racistas e excludentes típicas de sociedades marcadas pela colonialidade, ou seja, cujo passado colonial reflete diariamente na realidade contemporânea.
Posto isso, mostra-se imperativo uma breve explanação sobre o contexto no qual a música insere-se. O álbum Refavela, homônimo da música escolhida, pertence a uma trilogia que versa sobre a “revisita”. Como bem sintetizou Mauricio Barros de Castro: “Entre o universo rural de Refazenda e o brilho da disco music de Realce estava o ‘mundo negro’ que Gil buscava compreender em Refavela” (Castro, 2017). Além disso, ainda no plano individual do artista, algumas experiências são importantes para assimilar o processo produtivo e os objetivos com a criação da música\álbum. Em 1969, o cantor baiano vai para o exílio em Londres onde se compreende enquanto sujeito periférico. Já em 1977, Gil participa do II Festival de Arte e Cultura Africana (Festac) que congregava diversos países africanos e afrodiaspóricos. Esses dois momentos da biografia de Gilberto Gil evidenciam a autopercepção enquanto artista da diáspora africana. Vale pontuar que em ambos os casos Gil entrou em contato com diferentes manifestações e ritmos musicais, o que influenciou em muito sua produção dali em diante.
Somado a esses aspectos artísticos e pessoais, tem-se ainda que considerar o contexto coletivo no qual a obra encontra-se. O cenário era a ditadura civil-militar. Neste regime, o mito da democracia racial, elaborado por Gilberto Freyre, era empregado pelos militares, seguindo a lógica da colonialidade, para ofuscar a dinâmica racial conflituosa brasileira, já que esta não era bem vista. Mesmo sob um regime opressor, a comunidade negra e periférica insurgia, frequentemente e de maneiras distintas, contra a estrutura excludente da sociedade brasileira. Dentre essas manifestações, duas são destacadas em Refavela: a “reafricanização” da cultura brasileira e o Black Rio. O primeiro fenômeno ocorria na Bahia, mais especificamente no carnaval afro-baiano, com seus afoxés e os blocos afros como o Ilê Aiyê e o Filhos de Gandhy (que inclusive nomeiam músicas do álbum Refavela). A partir de outra perspectiva, a das periferias norte-americanas, a potência do Black Rio fervilhava nas periferias cariocas apresentando a soul music e estimulando o “Black Power”. Essas ressurreições culturais são saudadas na canção respectivamente nas seguintes estrofes: “Alegoria/ Elegia, alegria e dor/ Rico brinquedo/ Do samba-enredo/ Sobre medo, segredo e amor” e “A refavela/ Revela o passo/ Com que caminha a geração/ O Black jovem/ O Black Rio/ Da nova dança no salão”. Portanto, percebe-se que ambos os movimentos lutavam, de forma integrada, contra todas as facetas da colonialidade, seja do poder, saber ou ser, visto que esses coletivos produziam alternativas ao mercado dominante, desenvolviam a pluralidade de narrativas e discurso e a emancipação social.
Bom, após essa enorme digressão, partimos para a análise da música propriamente dita. Em seu título, a canção já expõe o assunto sobre o qual discorrerá. O tema central é evidentemente a favela, mas não como entidade estática, e sim como um espaço dinâmico, diverso e dotado de força própria. Desse modo, pode-se inferir a intenção de reafirmar, com orgulho, a identidade do povo favelado.
Em seguida, nota-se a estreita relação entre o “mundo negro” e o universo periférico. Isso não pode ser encarado como uma simples coincidência, muito pelo contrário. A interseccionalidade desses dois grupos evidencia que o corte racial é perpassado pelo de classe, ou seja, no Brasil, quem vive na periferia (o que pode ser compreendido como um sintoma da pobreza) é, majoritariamente, a população negra.
Na estrofe “A refavela/ Revela o salto/ Que o preto pobre tenta dar/ Quando se arranca/ Do eu barraco/ Prum bloco do BNH” está colocado que quem não possui condições econômicas de comprar uma casa são os negros e, assim, são esses que dependem do auxilio do Estado para adquirir uma habitação. Vale pontuar que o próprio sistema do Banco Nacional de Habitação manifesta a postura higienista da elite política brasileira. Nesse programa, em nome de uma moradia, afastam-se ainda mais as populações pobres do centro das cidades, o que precariza ainda mais a vida destes cidadãos de “segundo grau”.
Além de expor a estrutura racista que mantém os negros em situação de pobreza e dificulta a ascensão social, pode-se também observar o debate da colonialidade expresso nos versos da música. No trecho “Marfim da costa/ De uma Nigéria/ Miséria, roupa de cetim” percebe-se a aproximação da realidade brasileira a nigeriana, sob o prisma da desigualdade resultante da manutenção da colonialidade.
Na minha perspectiva, Refavela é um clamor decolonial de vanguarda, vide a “pluralidade dialógica” (Medeiros e Lira, 2020) fomentada por ela. Para além de denunciar a realidade desigual e racista do Brasil, a obra propõe uma epistemologia distinta, proveniente dos suis globais (do Brasil, da Nigéria e dos suis dentro do Norte, como a periferia londrina e estadunidense). Com isso, depreende-se que o combate à estrutura violenta da sociedade brasileira prevê o confronto do racismo e do elitismo. Em suma “A refavela/ Revela um sonho” de um país diferente que inclua a todes e vanglorie e respeite sua diversidade.
* Graduanda em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília. Membro do PET e da Assessoria Jurídico Popular Roberto Lyra Filho (AJUP).
Referências
Castro, Maurício Barros de. Gilberto Gil: Refavela. Coleção: O livro do disco. Editora de Livros Cobogó Ltda. Rio de Janeiro, 2017.
Medeiros, Rogério de Souza e Lira, Bruno Ferreira Freire Andrade. Caminhos da Reprodução da Colonialidade: experiência desenvolvimentista e reação conservadora sob a tensão colonialidade/ decolonialidade, 2020.