O Redimensionamento Do Processo Tributário Como Meio De Defesa Do Contribuinte

Por Matheus Garcia Antunes


Os meios de defesa do Contribuinte são historicamente caracterizados pela importância atribuída ao contencioso judicial, ainda que essa via seja, em regra, morosa e desfavorável para as partes envolvidas (Fisco, Contribuinte e Poder Judiciário). Por diversas razões, é difícil prever o trânsito em julgado de uma ação de execução fiscal. Penhoras e arrolamentos de bens podem ser infrutíferos, recursos podem ser interpostos – ou devem, nas hipóteses de remessa necessária –, divergências entre turmas, seções e tribunais podem ser comparadas; tudo isso em um encadeamento recursal complexo, mas favorável à apelação até os Tribunais Superiores. Por conseguinte, é possível identificar um movimento recente de aversão à judicialização das demandas com a pesquisa de novas soluções. É intenso o debate doutrinário e legislativo nessa orientação, com muitas propostas no Congresso Nacional. Apesar disso, enquanto perdura a discussão, a falência do contencioso judicial dá lugar à ascensão do Processo Administrativo Fiscal (PAF), cujas peculiaridades são alvo de um redimensionamento à vista das vantagens comparativas deste instrumento.


Para fins meramente didáticos, a doutrina processual tributária propõe a classificação dos instrumentos de contencioso judicial em “ações de iniciativa do Fisco” e “ações de iniciativa do Contribuinte”, também denominadas de ações exacionais e ações antiexacionais, respectivamente1.


Em um passado recente, pré-constituinte, predominavam as execuções fiscais nos litígios tributários, com protagonismo da Fazenda Pública no polo ativo, visando a satisfação dos créditos devidos pelos administrados. A passividade destes restringia-se a opor as matérias de defesa que lhe fossem adequadas, sem maiores inovações processuais. Contudo, com a elevação dos limites ao poder de tributar ao status de princípios constitucionais – em 1988 -, bem como com o aumento da complexidade tributária promovida pelo constituinte derivado – com a promulgação da Lei Kandir e outras -, criou-se um ambiente cada vez mais antagônico à pacificação das celeumas tributárias. A aplicação da legislação tornou-se atividade mais árdua e custosa às receitas federal, estaduais e municipais, ao passo que os Contribuintes adquiriram novos direitos e meio de defesa contra o “Leviatã Fiscal”.


Ante o exposto, advogados se socorreram em institutos do Direito Civil e Processual Civil para sanar as novas fronteiras do contencioso tributário. Logo, ações nominadas de ampla aplicação civilística, como as de consignação em pagamento, de repetição de indébito, assim como outras, foram importadas ao Direito Tributário para propor um novo cenário em que os Contribuintes assumiam a iniciativa das lides, chamando o Fisco para compor o polo passivo. Trata-se da evolução das ações antiexacionais, bem recepcionadas pela doutrina e jurisprudência na medida que demonstravam a boa-fé dos administrados em propor a resolução das lides, antes mesmo de serem demandados pela Fazenda Pública.


Posto isto, surge a dúvida, se a altivez dos Contribuintes em propor instrumentos alternativos de tutela jurisdicional fora suficiente para otimizar suas demandas. Infelizmente, não. É inegável a força política dos órgãos fazendários nacionais para limitar eventuais teses desfavoráveis à arrecadação2. Além disso, o fenômeno da jurisprudência defensiva é permanente e majoritariamente desfavorável aos pagadores de impostos. Nesse ponto, a edição de súmulas e – a partir da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015 – o sistema de precedentes são alvos de intensos esforços da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional3.


Em estudo recente sobre os indicadores de prestação jurisdicional, anualmente disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça, constatou-se que as execuções fiscais configuram 74% das execuções em tramitação no Poder Judiciário. Em números absolutos, isso representa 39% de todo acervo judicial pendente, com taxas de congestionamento na ordem de 87%; isto é, de cada 100 processos em tramitação, apenas 13 são baixados4. Esses dados, por si só, revelam que as relações entre Contribuinte e Fisco são caracterizadas pela alta litigiosidade e baixa celeridade na resolução das demandas tributárias.


São várias as iniciativas que visam romper com o congestionamento judicial, novamente, aliando institutos exitosos na prática civil. Destacam-se os Projetos de Lei n. 4.257/19 e n. 4.468/20 em discussão no Senado Federal. Ambos os projetos visam instituir a arbitragem tributária especial como modalidade autônoma de heterocomposição de disputas de menor complexidade. Os aludidos projetos têm por inspiração o Decreto-Lei n. 10/11, que estabeleceu, com sucesso, o Regime Jurídico de Arbitragem Tributária em Portugal, cujas hipóteses de arbitragem são ainda mais amplas5. Todavia, os referidos projetos têm sofrido resistência. É difícil atribuir competência ao agente estatal para transacionar sobre o interesse público, que é, em regra, indisponível. Essa solução, embora louvável, requer um amadurecimento prévio da arbitragem estatal, cujo temor da insegurança jurídica e da responsabilidade civil dos servidores públicos servem como um desincentivo a sua adoção.


Com efeito, o cenário não é dos melhores. Por outro lado, é imperativo o confronto judicial. Então, como conciliar? A resposta pode ser mais ortodoxa do que o esperado.


Para a compreensão da controvérsia, é imprescindível frisar uma peculiaridade da prática processual tributária: o processo judicial de conhecimento dos créditos tributários. Este, por certo, não existe, pelo menos não na concepção adotada nas lides entre particulares6. Excluídas as hipóteses de lançamento por declaração ou homologação, o conhecimento dos fatos geradores de obrigações ocorre em momento pretérito à judicialização, no âmbito do Processo Administrativo Fiscal. Explica-se.


Na hipótese de inadimplemento por parte do contribuinte, dispõe Leandro Paulsen que:

“o Fisco pode encaminhar o seu crédito devidamente formalizado e, portanto, exigível, para inscrição em dívida ativa. Realizada a inscrição, extrai-se a respectiva Certidão de Dívida Ativa, que é título executivo extrajudicial, dotado, portanto, de exequibilidade. Efetivamente, munida da CDA, a Fazenda pode ajuizar ação de execução fiscal”7.

Da análise dos argumentos já desenvolvidos, é difícil defender a via judicial. Por outro lado, isso não referenda uma visão binária em favor da via administrativa. Por certo, a praxe tributária indica que os dois meios de composição devem ser utilizados, aliando cada um de seus benefícios a depender do caso concreto. Todavia, é inegável que a defesa do contribuinte não deve se restringir apenas à atuação nos tribunais, como muito se fazia no passado. Neste, as empresas ignoravam as notificações das receitas, eram autuadas e convidadas a contrapor os lançamentos nos PAFs, mas ignoravam as notificações, sendo condenadas à revelia, para tão somente alardearem os escritórios de advocacia quando eram ajuizadas as execuções ou cautelares fiscais.


Nesse cenário, há uma percepção difusa (mas recorrente) de que alguns temas fiscais, em virtude da alta complexidade técnica e contábil, dificilmente são apreciados com a devida cautela no âmbito do Poder Judiciário. Isso porque em muitas varas judiciais se exige um conhecimento muito amplo dos julgadores, que concentram não só extenso acervo processual, como também cumulam o poder decisório em matérias penais, cíveis, administrativas e tributárias, sem o devido aprofundamento que processos mais complexos eventualmente exigem.


Dessa forma, é imprescindível que o Contribuinte não abdique de seu direito de defesa perante às fases administrativas de constituição do crédito tributário. Ainda que os órgãos fazendários sofram com a defasagem de pessoal e investimentos, prevalece o alto nível de qualificação de seus servidores, verdadeiros especialistas em questões tributárias, e estruturados em mais de dez Delegacias Regionais de Julgamento. É nessa fase, perante as DRJs, que ocorre a análise da escrituração contábil do administrado, isto é, quando é possível suscitar questões fáticas e probatórias. Passado esse primeiro momento, de contencioso administrativo, dificilmente o Poder Judiciário reanalisará provas fiscais, restringindo-se ao julgamento de questões de direito.


Por isso, ganha importância o Processo Administrativo Fiscal, assim como seu órgão de cúpula, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), pelas peculiaridades que regem os acórdãos administrativos. Isso porque, concluída a discussão no CARF, entende-se, com amparo em considerável corrente doutrinária e jurisprudencial8, pela impossibilidade de a União recorrer contra o trânsito em julgado administrativo favorável ao Contribuinte. Justifica-se que, sendo o CARF um órgão federal, não poderia a Administração recorrer contra si mesma, em respeito à segurança jurídica e à vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium).


Frisa-se, o redimensionamento do PAF ocorre não só pelo advento de novas leis, consolidando o poder decisório administrativo, como também em virtude de vantagens processuais de longa data. Ora, diferentemente do contencioso judicial, cuja normas preveem custas processuais9, honorários de sucumbência e o depósito do montante integral para a suspensão da exigibilidade do crédito, o Processo Administrativo Fiscal não exige e não condena o Contribuinte em verbas semelhantes ao início ou ao final do processo. Vale dizer, o custo recursal administrativo é relativamente baixo se comparado às previsões do CPC, e, por isso, indeferido o pleito do administrado, este não sofre qualquer ônus processual.


Em razão disso, a relevância adquirida nos últimos anos pelo PAF não é de toda nova. É verdade que recentes alterações legislativas – como a Lei 13.988/20, que findou o voto de qualidade do Fisco no CARF em caso de empate nas decisões – só fortaleceram a coisa julgada administrativa, com atrativos substanciais para o Contribuinte. Mas essa não é a razão do novo olhar dos juristas para esse órgão decisório, e sim a consequência.


Por isso, é seguro afirmar o protagonismo das instâncias administrativas, com a consequente evolução das estratégias processuais de defesa, a serem pesquisadas nos próximos anos. Aguardemos com entusiasmo e atenção esse desenvolvimento.


Matheus Garcia Antunes é graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro da Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília (RED/UnB).


Referências bibliográficas:

[1] MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Processo Tributário. 12. ed., p. 307-308. São Paulo: Atlas, 2020;

[2] Em decisão emblemática de 2017, o Supremo Tribunal Federal julgou o RE n. 574.706/PR (tema de repercussão geral n. 69), à época denominado de “tese do século”. Foi fixada a tese de que é inconstitucional a cobrança do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS, com modulação ex nunc. Esse julgado é um exemplo recente do uso do sistema de precedentes e de modulação de efeitos a serviço dos interesses orçamentários da União, a despeito dos prejuízos orçamentários acumulados pelos contribuintes [notas minhas]. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 574.706/PR. Recorrente: Imcopa Importação, Exportação e Indústria de Óleos Ltda., e outros. Recorrido: União. Relatora: Min. Cármen Lúcia, julgado em 15.03.2017, Dje em 02.10.2017. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13709550 Acesso em 12.02.2022;

[3] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Presidente do STJ destaca importância de precedentes para atuação mais efetiva e econômica da PGFN. [S.I.] Publicado em Disponível em 25.11.2020. https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/25112020-Presidente-do-STJ-destaca-importancia-de-precedentes-para-atuacao-mais-efetiva-e-economica-da-PGFN.aspx. Acesso em 12.02.2022;

[4] BARRETO, Aline Fleury. Execuções Fiscais no Brasil: estimativas e críticas à cobrança judicial de créditos. Revista Direito Tributário Atual, n. 41, ano 37, p. 25-42. São Paulo: IBDT, 1º Semestre 2019;

[5] PISCITELLI, Tathiane; MASCITTO, Andrea; FERNANDES, André Luiz Fonseca. Um olhar para a arbitragem tributária: comparativo das propostas no Senado Federal, provocações e sugestões. Revista Direito Tributário Atual, n. 48, ano 39, p. 734-759. São Paulo: IBDT, 2º Quadrimestre de 2019;

[6] “O procedimento comum é o mais completo e o mais apto à perfeita realização do processo de conhecimento, pela amplitude com que permite às partes e ao juiz pesquisar a verdade real e encontrar a justa composição da lide. Está estruturado segundo fases lógicas, que tornam efetivos os princípios fundamentais do procedimento, como o da iniciativa da parte, o do contraditório e o do convencimento motivado do julgador.” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil – vol. I: teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento, procedimento comum. 60. ed., p.780. Rio de Janeiro: Forense, 2019.);

[7] PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário completo. 11. ed. p. 389. São Paulo: Saraiva Educação, 2020;

[8] ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA – CONSELHO DE CONTRIBUINTES – DECISÃO IRRECORRIDA – RECURSO HIERÁRQUICO – CONTROLE MINISTERIAL – ERRO DE HERMENÊUTICA. I – A competência ministerial para controlar os atos da administração pressupõe a existência de algo descontrolado, não incide nas hipóteses em que o órgão controlado se conteve no âmbito de sua competência e do devido processo legal. II – O controle do Ministro da Fazenda (Arts. 19 e 20 do DL 200/67) sobre os acórdãos dos conselhos de contribuintes tem como escopo e limite o reparo de nulidades. Não é lícito ao Ministro cassar tais decisões, sob o argumento de que o colegiado errou na interpretação da Lei. III – As decisões do conselho de contribuintes, quando não recorridas, tornam-se definitivas, cumprindo à Administração, de ofício, “exonerar o sujeito passivo “dos gravames decorrentes do litígio” (Dec. 70.235/72, Art. 45). IV – Ao dar curso a apelo contra decisão definitiva de conselho de contribuintes, o Ministro da Fazenda põe em risco direito líquido e certo do beneficiário da decisão recorrida. [MS nº 8.810/DF, Relator Min. Humberto Gomes de Barros, Primeira Seção do STJ, julgado em 13.08.2003, DJe em 06.10.2003, grifos nossos];

[9] Súmula Vinculante nº 21. É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo.

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