A educação sempre foi um dos mais importantes tópicos a serem discutidos nas políticas públicas, é através dela que se estabelece a democracia e que se garante a soberania cultural-econômica de um povo. Neste trabalho, procuramos entender as consequências da educação bancária no ensino do direito nas faculdades e universidades do Brasil, embasando-nos sempre nas teorias de Paulo Freire.
Neste artigo não procuramos exaurir um tema tão complexo, buscando apenas entender a educação tradicional de ensino do Direito. O ensino mecanicista e burocrático que é adotado na grande maioria das faculdades, implica no desligamento do estudante à crítica do sistema jurídico e, por consequência, um distanciamento da realidade social.
Essa característica altamente tecnicista e burocrática na formação jurídica tolhe o estudo crítico que deve ser pautado na realidade. Dessa forma, esse modelo de educação crítica vai de encontro com a perspectiva que Paulo Freire denominou de “educação bancária”, em uma das principais obras do patrono da pedagogia brasileira: “Pedagogia do oprimido”.
Segundo o conceito criado pelo autor supracitado, um caráter especial e marcante da relação entre educador-educando na educação bancária é sua relação fundamentalmente “narradoras, dissertadoras” – argumenta:
Narração de conteúdo que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou fazer-se algo quase morto, sejam valores ou dimensões concretas da realidade. Narração ou dissertação que implica num sujeito – o narrador – e em objetos pacientes, ouvintes – os educandos. (FREIRE, 2005,pág. 62)
(…)
A narração, de que o educador é sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educadores serão”. (FREIRE, 2005, P.63).
Nessa linha, na educação bancária, o homem é visto como um objeto, um “colecionador” de fatos já existentes, afastando-o da realidade como sujeito do qual tem poder de criação, inovação e reinvenção do mundo social que está inserido. Assim, mitigando o caráter crítico do indivíduo, cria-se, aos olhos do educando, uma realidade estática, quase mítica – isto é: para o educando, na educação bancária, que cria uma falsa dicotomia entre o homem e o mundo, a realidade é imutável, pois as “coisas são porque é”, e não fruto de construções decorrentes de fatos históricos, sociais, antropológicos, econômicos e etc.
Na educação do Direito, o ensino bancário se torna contraditório quanto às necessidades da profissão. Contraditório porque o Direito tem como característica central a sua fluidez, a necessidade de interpretação e revisão de entendimentos de normas anteriores.
Portanto, a educação bancária, que se mescla ao estudo do direito, busca negar de toda forma o estudo crítico por meio de palestras dos educadores que simplesmente leem códigos e explicam os casos em que determinado dispositivo será ou não aplicado. Nessa linha de ensino, o objetivo não é entender de onde vem aquela norma, quem a criou, o porquê foi criada, se ela está atingindo seus objetivos, quem está sendo o maior beneficiado ou, pelo contrário, quem está sendo o maior prejudicado; longe disso, como dito, visa somente a replicação daquilo que já existe sem maiores questionamentos.
Mas qual deveria ser o parâmetro para tais questionamentos? O direito moderno, fruto do constitucionalismo liberal, de forma simplificada, visa limitar o poder do Estado e, numa evolução disso, no Estado Social-Democrático, busca regular as relações entre indivíduos e entre esses e o Estado tendo princípios, por exemplo, como o da dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade como bússola normativa. Sendo assim, o melhor parâmetro para se fazer tais questionamentos seria a própria realidade e seus fatos históricos, em que, por meio deles, poder-se-ia obter a resposta para tais questões.
Nessa linha, outros questionamentos podem surgir: mas para que o Estudo do Direito deveria levar em consideração esses pontos, como se esperar a formação de bons juristas, quando o ensino se baseia na mera criação de aplicadores da norma? Essa contradição não permite que juristas atendam às reais necessidades da sociedade, uma vez que a aplicação da lei depende de extensa interpretação, não apenas de fundamentos jurídicos, como da própria realidade social.
Ainda mais, é possível questionar por que devemos ter um estudo crítico nas universidades? Segundo o estudo crítico do Direito Achado na Rua, o direito não é de cima para baixo, não está nos códigos, mas sim nas ruas, onde emerge sua legitimidade – ou assim deveria ser, nesse sentido, tal desenvolvimento crítico destaca a Nova Escola Jurídica Brasileira, cuja vertente defendida é a construção de um direito emancipatório. Assim como se destaca a seguir:
Tenho tratado de O Direito Achado na Rua (SOUSA JUNIOR, 2011: passim), aludindo, depois de a caracterizar, a uma concepção de Direito que emerge, transformadora, dos espaços públicos – a rua – onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participação democrática. (SOUSA, 2019)
Dessa forma, o estudo da realidade é fundamental para entendermos o direito como uma ciência social e todas suas implicações como ferramenta que possibilite a concretização, de forma mais precisa, da justiça social. Assim sendo, a educação libertadora, que seria esta proposta de estudo crítico, contrariando a educação bancária, iria vir como uma das diversas frentes de enfrentamento do problema aqui abordado. Como define Paulo Freire:
“(…) a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação “bancária”, mas um ato cognoscente. Como situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar de ser o término do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador, de um lado, educandos, de outro, a educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação da contradição educador-educandos. Sem esta, não é possível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível.”. (FREIRE, 2005, p.75)
Portanto, para Paulo Freire, o conhecimento está no mundo concreto e não apenas na mente dos homens. Para que a sabedoria de um seja “autenticada”, passando a se materializar na realidade, é necessário que esta seja feita através da intercomunicação, sendo construída em conjunto. Não há possibilidade de haver conhecimento, quando os educandos “não são chamados a conhecer, mas a memorizar o conteúdo narrado pelo educador”. O papel lógico da educação de criar conhecimento perde a sua eficácia, uma vez que o estudante não é motivado a conhecer o mundo, sendo apenas instruído através do conhecimento da realidade de um terceiro.
Como contraponto a essas contradições, a educação libertadora estimula a dialética, considerando necessária a construção conjunta de conhecimento pelo educando e pelo educador. Ao transformar o educando como protagonista ativo de seu próprio conhecimento, este percebe seu potencial ativo na mudança da realidade, não mais se sujeitando a uma posição passiva em relação ao mundo.
Levando em consideração os tópicos abordados e o processo de formação da geração 2023 da AJUP, a qual versa uma base em Paulo Freire com sua obra “Pedagogia do Oprimido”, faz-se fundamental ressaltar o papel extremamente relevante que tal extensão universitária exerce no que tange ao combate à educação bancária, uma vez que a AJUP, desde a sua criação, carrega uma vertente crítica direcionada à educação e à assessoria jurídica popular, objetivando alcançar a transformação social.
Dessa forma, ao analisar o segundo capítulo de “Pedagogia do Oprimido”, intitulado “A concepção bancária da educação como instrumento da opressão” é possível compreender a educação de interesse da classe opressora que Freire identifica, visto que a relação que se estabelece na educação bancária é de uma grande passividade e silenciamento dos seres humanos. Tendo em vista que a educação bancária é uma narração de conteúdos sem significados, lançados sem conexão com a realidade e com palavras vazias. Além disso, tal narração morta é totalmente escassa de força transformadora, já que a educação se torna um ato de poder do educador de depositar conteúdos vazios em caixas personificadas em educandos, desse modo, a educação acaba por ser um ato de memorização estática e mecânica de conteúdos alheios e sem quaisquer fundamentos práticos.
Nesse sentido, a educação bancária elimina a emancipação e a transformação dos indivíduos, haja vista que a única ação existente nessa relação é a ação de depositar, “em que os educandos são os depositários e o educador o depositante” (FREIRE, 2005), tal fato deixa o ser humano repleto de informações não produtivas e sem qualquer criatividade, práxis e saber. Sendo justamente nesse tópico que a AJUP se apresenta como contracorrente, dado que a extensão universitária busca por meio da formação de seus membros a educação emancipatória e por meio das práxis de assessoria jurídica universitária a transformação social, numa perspectiva de romper com a relação de poder de educador e educando e, também, de eliminar a noção de educação enquanto ato de depositar, mas sim mediatizada na realidade.
Dessa maneira, a AJUP se apresenta enquanto espaço no ambiente universitário e social para enfrentar a educação bancária, porquanto sustenta um saber com ação ativa e criativa, em que o ser humano se encontre inserido na práxis como ativo a inventar, a reinventar e a investigar, no que seria a “busca esperançosa” para Freire. Além disso, a AJUP combate a “alienação da ignorância”, a qual diz respeito à relação de poder que a educação bancária estimula, ao criar polos daquele que sabe e aquele que não sabe, sendo o primeiro ocupado pelo educador e o segundo pelo educando.
Embasada na educação libertadora, a AJUP segue na busca por relações de trocas entre educador-educandos, com contradições, conciliações e intercomunicações, a fim de alcançar uma busca emancipatória. Tal aspecto se faz presente na atuação em movimentos sociais, no seguinte relato:
“como narrado pela ex-membra da AJUP-RLF, Sabrina Beatriz, em entrevista, o MTST foi responsável pelo seu primeiro contato com o Direito, em atividades do Movimento, vários conceitos jurídicos eram ensinados pelas próprias lideranças sociais, como o conceito de usucapião, por exemplo, e a diferença entre posse e propriedade, a partir da educação popular. Assim, a posição de escuta ativa sempre fez parte da construção da assessoria jurídica universitária popular, para compreender as demandas e aprender conjuntamente com os movimentos.” (DE MELO, 2021).
Nessa conjuntura, é possível perceber que a AJUP se apresenta enquanto alternativa de educação libertadora no estudo do direito, porque a extensão universitária Roberto Lyra Filho se afasta totalmente da lógica de poder da educação bancária à medida que os estudantes ao participarem dos movimentos sociais de forma alguma ocupam o polo de autoridade ou se colocam como os detentores do saber e do poder, pelo contrário, os estudantes aprendem com as próprias lideranças populares diversas temáticas que tendem a ser objetos de poder e dominação do campo jurídico. Tal aspecto explicita o papel extremamente importante da AJUP na valorização de todos os indivíduos como sujeitos a agirem ativamente, caminhando para o desenvolvimento crítico que possibilita a transformação social.
Demonstra ainda, o seu papel de enfrentamento ao sistema opressor que fomenta a manutenção do status quo, os interesses da classe opressora e a estagnação dos indivíduos, levando em consideração que pensar de modo crítico e autêntico, objetivos da AJUP, coloca tais mecanismos de opressão em risco. Por isso a literatura de Freire ressalta o fato de pensar autenticamente ser perigoso, pois assim como afirmava Darcy Ribeiro “A crise da educação no Brasil não é uma crise: é projeto” (ROITMAN, 2022), a existência da educação bancária carece da negação do ser humano ser mais, do pensamento autêntico e da luta por libertação, já que o projeto opressor é necrófilo, satisfaz-se pela ausência de seres orgânicos e, não, pela vida. Além disso, ter uma educação libertadora se mostra prejudicial ao projeto das elites dominadoras, pois se caracteriza em rebelar contra os interesses opressores.
Vale pontuar que a extensão universitária AJUP ganha ainda mais destaque na convergência ao que versou Freire sobre a educação libertadora por lutar contra a educação opressora por mecanismos diferentes daqueles que oprimem, posto que propõe a práxis dos estudantes tanto no âmbito universitário como no social, alinhando a ação e a reflexão, as quais direcionam a emancipação e a transformação da realidade com a contribuição de todos os sujeitos.