Por: Giselle Rocha Clemente
Trata-se de ação por meio da qual se pretende que seja declarada a inexistência da sentença, cujo processo reclamatório padece de vício insanável, consubstanciado na nulidade de citação. A grosso modo, o litisconsorte passivo necessário fora condenado sem ser devidamente chamada ao contraditório e à ampla defesa.
O Colendo Tribunal Superior do Trabalho possui entendimento pacífico quanto ao manejo da Querela Nullitatis (Ação Declaratória de Inexistência) em processo cuja CITAÇÃO É NULA. Sendo a citação nula, não há falar em sentença existente, de modo que não corre o prazo decadencial aplicado à rescisória.
Em excerto do voto do julgamento do AIRO-RO-704-33.2015.5.12.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, a relatora Ministra Maria Helena Mallmann discorre sobre o cabimento da Querela Nullitatis, citando o saudoso jurista Pontes de Miranda:
(…) convém discorrer acerca do cabimento, in casu , de “querela nullitatis insanabilis” no lugar da ação rescisória. A questão atinente ao cabimento da ação rescisória nos casos em que se alega nulidade de citação é relevante porque a primeira ação desconstitutiva não se sujeita a prazo decadencial bienal, aplicável à ação rescisória. Dessa forma, a depender do tratamento que se dê à questão preliminar atinente ao cabimento, a decisão regional, em que reconhecida a decadência pode ou não subsistir.
É antiga, porém preciosa, a lição de Pontes de Miranda que distingue sentenças inexistentes, nulas e rescindíveis. Para o referido doutrinador, somente são atacáveis por ação rescisória as decisões judiciais existentes e válidas. Para o caso de sentenças inexistes, seria cabível simples ação que assim o declare; para atacar decisão nula (ou ineficaz), o recurso da parte interessada seria a “querela nullitatis”; e, finalmente, caberia a ação rescisória para opor-se à decisão existente e eficaz que, entretanto, foi proferida com algum dos vícios expressamente indicados na lei processual.
Na esteira do magistério de Pontes de Miranda, inexistente seria, por exemplo, a “a decisão proferida pelo que não é juiz”. Evidentemente, o ato decisório estatal subscrito por quem não detém investidura não pode ser, sequer, considerado como tal. Assim, “não há rescisória […] de sentença inexistente, pois seria rescindir-se o que não é: não se precisaria de desconstituir; bastaria, se interesse sobrevém a alguma alusão a essa ‘sentença’, a decisão declarativa de inexistência”.
Prossegue o festejado jurista acerca da desconstituição do que denomina sentença nula. Chama atenção que o vício nesse tipo de ato decisório não se sujeita a nenhuma preclusão e pode ser alegado por simples petição em qualquer processo jurisdicional:
“A distinção entre sentenças inexistentes, nulas e rescindíveis, isto é, aqui existentes, válidas, mas atacáveis a despeito do trânsito em coisa julgada, suscita questão a que há de responder antes de qualquer outra. Porque, se a sentença é nula ipso iure , existe, porém não vale: se não vale, de pleno direito, não precisa de ‘ação’ contra ela. Ao ser invocada, opõe-se que é nula ipso iure . Se alguém quer alegá-lo, pode fazê-lo quando entenda , sem esperar a citação na ação iudicati .
[…]
É nula ipso iure: a) se o mesmo juiz publicou, no mesmo processo outra sentença (Adolf Wach, Urteilsnichtigkeit, Rheinische Zeitschrift, III, 389); b) se faltou ou foi nula a citação inicial, tendo ocorrido à revelia o processo.
[…]A sentença proferida à revelia e sem citação inicial da parte continuará, suscetível de impugnação em embargos do devedor, sem preclusão possível, porque, esta sim, não é só rescindível – é nula. Se o que foi citado e contra o qual correu, à revelia, o processo, foi citado nulamente, a sentença também é nula. Pode o nulamente citado opor-se a qualquer força ou efeito que pretenda atribuir a tal sentença [6].
Logo, vislumbra-se que a citação nula é um vício transrescisório, que torna a sentença inexistente, cujo vício não é sanável em razão do decurso do tempo, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, senão vejamos:
PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. QUERELA NULLITATIS. AVENTADA AUSÊNCIA DE EFETIVA CITAÇÃO DOS AUTORES. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC CONFIGURADA.
A ação de querela nullitatis é remédio vocacionado ao combate de sentença contaminada pelos vícios mais graves dos erros de atividade (errores in procedendo), nominados de vícios transrescisórios, que tornam a sentença inexistente, não se sanando com o transcurso do tempo.
[…]
O enfrentamento da questão ventilada nos embargos de declaração é absolutamente insuperável e não pode ser engendrado pela primeira vez nesta Corte, principalmente pelo óbice da Súmula 7 do STJ. 5. Recurso especial provido.” (REsp 1201666/TO, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10.06.2014, DJe 04.08.2014).
Acerca do tema, Daniel Amorim Assumpção Neves cita que Humberto Theodoro Jr. e Juliana Cordeiro de Faria situam o vício causado pela extrema injustiça inconstitucional no plano de validade, afirmando que a sentença que padece de tal vício é nula, não se sujeitando a prazos prescricionais ou decadenciais.
Aparentemente tratar-se-ia de nulidade absoluta de tamanha gravidade que não poderia se considerar a sentença imutável e indiscutível, o que criaria uma mera aparência de coisa julgada. seria hipótese semelhante ao vício ou à inexistência de citação, que por gerar uma nulidade absoluta, reveste-se de tamanha gravidade que não se convalida nem mesmo após o vencimento do prazo da ação rescisória (vício transrecisório).
Ante disso, faz-se uma breve análise de um procedimento de citação eivado de nulidade, vejamos. No caso hipotético, foi indicado o endereço errado para citação, o que restou o AR negativo; segundo, instado, o reclamante indicou novo endereço, correto, mas o ar foi para o mesmo endereço anterior, o que restou negativo novamente; terceiro, foi determinada citação por edital sem qualquer empenho em descobrir o endereço da reclamada, conforme determina o art. 256, § 3º do CPC/2015.
Assim, em nenhum momento fora oportunizado à reclamada que participasse do processo. não foi nenhum AR ou oficial de justiça para o correto endereço da Reclamada, ora querelante, há muito tempo situada no mesmo local.
Compulsando o feito hipotético, verifica-se que não ocorreu o advento trazido pela Lei nº 14.195/2021, no caso, a tentativa de citação por meio eletrônico, conforme dispõe o artigo 246 do CPC, contudo, no caso em apreço, o douto magistrado, prematuramente, realizou a citação por edital. Ora, como é de conhecimento destes todos, a citação por edital é a ultima ratio. Ou seja, somente tendo sido esgotados todos os meios para citação é que possível a utilização deste precário mecanismo citatório.
Com efeito, a “citação é o ato pelo qual se convoca o réu, o executado ou interessado para integrar a relação jurídica processual”, de acordo com o art. 238 do CPC/2015, Daniel Amorim Assumpção Neves, e se esta não foi encaminhada para o endereço correto da Reclamada – nenhuma vez sequer – logo não há falar em convocação da parte Ré, para integrar a relação processual. Não há falar em citação!
O art. 239 do mesmo diploma processual esclarece que “para a validade do processo é indispensável a citação”. O art. 249, por sua vez, determina que, frustrada a citação por correio, deverá ser realizada a citação por oficial de justiça.
Note que, antes de decretação da citação por edital, deveria ter sido procedido com a pesquisa do endereço da Reclamada via sistemas como SISBAJUD, RENAJUD, INFOSEG, SIEL, Operadoras de telefonia e internet etc. Nessa linha, em julgamento do REsp 1.828.219, o relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino afirma que:
O novo regramento processual civil, além de reproduzir a norma existente no artigo 231, II, do CPC/1973, estabeleceu expressamente que o réu será considerado em local ignorado ou incerto se infrutíferas as tentativas de sua localização, inclusive mediante requisição, pelo juízo, de informações sobre seu endereço nos cadastros de órgãos públicos ou de concessionárias de serviços públicos.
Corroborando o julgamento supra, o ministro Paulo de Tarso enfatizou que a citação feita por edital é exceção à regra e só poderia ser utilizada quando esgotadas as tentativas de citação pessoal da parte demandada. Logo, não merece prosperar a citação por edital do caso hipotético.
Ante todo exposto, é nítido que no caso hipotético acima, vislumbra-se nitidamente a existência do vício transrescisório, e, consequentemente, faz-se imprescindível o manejo da Querela Nullitatis, ação declaratória imprescritível.
Giselle Rocha Clemente é graduanda em Direito pelo Centro Universitário Euro-Americano e membro do Grupo de Pesquisa a função social de Direito nas Democracias latino-americanas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Réu revel, vício de citação e querela nullitatis insanabilis. Revista de Processo. 2008, vol. 164.
[2] DE LUCCA, Rodrigo Ramina. Querela Nullitatis e réu revel não citado no processo civil brasileiro. Revista de Processo. 2011, vol. 202.
[3] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. Salvador: Jus Podivm, 2008.
[4] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil – Volume único. 13. ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2021, pg. 894.
[5] Theodoro Júnior, Humberto. O tormentoso problema da inconstitucionalidade da sentença passada em julgado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976.
[6] MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo VI, 3ª edição, Ed. Forense: Rio de Janeiro, 2000.