Por: Lara Bezerra de Melo
Em agosto de 2021, o mundo voltou seus olhos para o Afeganistão. Com a retirada das tropas americanas e a fuga do ex-presidente Ashaf Ghani, consolidou-se, ao menos momentaneamente, a vitória do Talibã[1]. Conhecido por ser um movimento fundamentalista e nacionalista islâmico, sua liderança significa morte para as mulheres afegãs, nas palavras da ativista Zakira Hekmat[2]. A questão é complexa e bastante polarizada, mas isso não nos impede de refletir sobre o tema.
Quando pensa-se no Talibã, imediatamente surgem imagens de horror, guerra e violência contra as mulheres. A paquistanesa Malala Yousafzai, baleada na cabeça por defender o direito à educação de meninas, é uma das vítimas mais proeminentes do grupo. Em sua autobiografia, é dito que a vencedora do Nobel perdeu o sorriso e a risada após o incidente. No entanto, ela também diz que “ a caneta e as palavras podem ser muito mais poderosas que metralhadoras, tanques ou helicópteros”[3].
Posteriormente, Malala fundou a ‘Malala Fund’. Uma organização responsável por impulsionar a educação de mulheres que não têm acesso a ela. A ativista é um exemplo de que, com a devida projeção e apoio, as vítimas do Talibã são capazes de trazer soluções ao conflito, sem a necessidade de uma postura paternalista do mundo ocidental.
Existe um fortalecimento da ideia de superioridade americana e europeia cada vez que se fala em salvar a mulher afegã. “Quando se salva alguém, assume-se que a pessoa está sendo salva de alguma coisa. Você também a está salvando para alguma coisa. Que violências estão associadas a essa transformação e quais presunções estão sendo feitas sobre a superioridade daquilo para o qual você a está salvando?”[4]. Muitas vezes a salvação está diretamente atrelada ao polêmico uso do véu, ou a qualquer outro elemento da religião islâmica. A raiz do problema não é tão simples.
Daniel Bonilla[5] alerta para como o Direito Comparado foi essencial para uma construção do Direito moderno, em suas narrativas, a nível de consciência. Foi aquele quem firmou as ideias do “eu” e do “outro”, consolidando o entendimento de que existem os que criam o direito (neste caso, os ocidentais do primeiro mundo) e os que meramente podem absorvê-lo (a população muçulmana da Ásia e África). A partir disso, surge a construção do que o autor chama de “bárbaros jurídicos”: figura oposta aos sujeitos de direitos.
A fim de ilustrar as lentes pré-definidas dos juristas ocidentais, pensa-se no livro Fique Comigo da nigeriana Ayòbámi Adébáyò. Nele nós conhecemos a história de Yejide e Akin, um casal que se apaixona na faculdade e se casa rapidamente. Devido a problemas de infertilidade, a família dele logo o pressiona a casar-se com uma segunda esposa, que poderia dar-lhe o tão sonhado primogênito. Sem questionar Yejide, Akin casa-se com outra e assim vem à tona diversas questões maritais e familiares.
Em um olhar superficial, o conflito da narrativa seria a bigamia, inclusive definida como crime no art. 235 do Código Penal. No entanto, nas camadas mais profundas da obra, percebe-se que o problema não é propriamente a cultura/ religião tradicionais do povo nigeriano, mas sim a questão de que a primeira esposa não teve direito de escolha. Foi roubado o seu livre arbítrio de decidir estar em um relacionamento a três. Foi roubado o seu direito de igualdade durante o casamento, previsto no art. 16, 1, da Declaração Universal de Direitos Humanos.
Em colaboração com outras blogueiras muçulmanas, Mariam Chami integra o ‘Entre Irmãs’. Um perfil colaborativo que desmistifica preconceitos em relação à religião islâmica. Visualizar as experiências de xenofobia sofridas por essas mulheres é um exercício capaz de revelar o quanto ainda devemos caminhar para efetivar a liberdade religiosa (art. 5º, VI, CF/88). “Estava sendo cotada para ser gerente na loja em que eu trabalhava. O salário era em torno de R$ 6.000, mas fui demitida por conta do meu hijab”[6], diz Pamela Abdul, uma das membras do projeto.
É preciso ter cuidado com a bagagem de significados jurídicos de cada país em um momento como estes. Quem teria o direito de intervir? Será que existem valores caros a qualquer ser humano que bastem como motivo?
A história das intervenções no mundo é uma história que se repete com roupagens pouco criativas. Desde os primórdios da colonização, até a atuação do imperialismo e hoje em dia a chamada ‘Guerra ao Terrorismo’, as justificativas são assustadoramente similares. Na visão dos interventores, suas ações estão justificadas por maximizarem a justiça, trazerem civilidade, afastarem a barbárie. A razão, na maioria das vezes, é moral (até mesmo religiosa) e não legal.
Não existem valores universais pré-definidos, eles são inventados, discutidos e consolidados ao longo da história. São criados no sistema-mundo de estratificação do poder em que vivemos[7]. E, por isso, a questão de quem tem o direito de intervir também não está dada e exige muita meditação dos juristas em todo planeta.
Nesse sentido, o Brasil é regido por princípios nas suas relações internacionais, eles estão elencados no art. 4º da Constituição Cidadã. Cita-se aqui os mais importantes para o tema: a autodeterminação dos povos, o repúdio ao racismo e o da não intervenção. O primeiro “conota a liberdade que todos os povos (para além de Estados) têm de autodeterminar-se, isto é, de conduzir a si próprios e estabelecer, per se, os rumos do seu destino (político, econômico, social e cultural) […][8]”. Já o segundo, mais direto, refere-se à rejeição total a qualquer preconceito em razão da raça. Por fim, o terceiro implica uma tentativa de resolução de conflitos que priorize a soberania e as decisões internas dos Estados em dificuldade.
A partir disso, verifica-se que o nosso ordenamento está mais tendente a aceitar as ideias de Wallstein, Bonilla e Abu-Lughod do que de defender a militarização e a ocidentalização dos conflitos internos na Ásia. Porém, sabe-se que o que está no papel nem sempre reflete a real postura do país.
Propus aqui uma discussão, em formato de ensaio, um convite a reflexões que nem sempre implicam respostas, na significação do filósofo alemão Adorno. O problema da dominação Talibã não será resolvido da noite para o dia. Mas, tendo em vista que, por vinte anos, tentamos a estratégia ocidental, talvez seja hora de abrir o microfone e ouvir quem realmente sofreu com o tema.
Cito, novamente, a antropóloga Lila Abu-Lughod: “uma aproximação mais produtiva, me parece, seria perguntar como nós poderíamos contribuir para fazer do mundo um lugar mais justo”[9].
Lara Bezerra de Melo é Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Membra do Grupo de Estudos em Direito e Literatura da ESA-BA. Membra do Grupo de Estudos em Direito e Arte do LAEJU. Vice-Diretora de Comunicação do Centro de Estudos e Pesquisas Jurídicas da UFBA.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] LEBLANC, Paul. Entenda a situação do Afeganistão após o Talibã assumir o controle de Cabul. Acesso em 22 de setembro de 2021. Disponível em <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/entenda-a-situacao-do-afeganistao-apos-o-taliba-assumir-o-controle-de-cabul/>.
[2] WELLE, Deutsche. “Talibã significa morte para as mulheres”. Acesso em 22 de setembro de 2021. Disponível em <https://istoe.com.br/taliba-significa-morte-para-as-mulheres/>.
[3] YOUSAFZAI, Malala. Eu sou Malala.20ª reimpressão. 1ª edição. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 167.
[4] ABU-LUGHOD, Lila. As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre relativismo cultural e seus Outros. Tradução de João Henrique Amorim. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 451-470, maio-agosto/2012.
[5] BONILLA, Daniel. Los Bárbaros Jurídicos: Identidad, derecho comparado moderno y el Sur global. 1. ed. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2020.
[6] DAMASCENA, Breno. Muçulmanas brasileiras usam Instagram para enfrentar intolerância religiosa. Acesso em 27 de setembro de 2021. Disponível em <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/10/28/muculmanas-brasileiras-usam-instagram-para-enfrentar-intolerancia-religiosa.htm>.
[7] Idem.
[8] Equipe Forense (org). Constituição Federal Comentada. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
[9] ABU-LUGHOD, Lila. As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre relativismo cultural e seus Outros. Tradução de João Henrique Amorim. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 451-470, maio-agosto/2012.