Os desdobramentos acerca da natureza jurídica da arbitragem

por Submissões Independentes

Escrito por Fernanda Hellen Santana de Mesquita [*]

1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA

De início, Francisco Cahali (2017, p. 26) afirma que a arbitragem é tão antiga quanto a própria humanidade. Este argumento se desenvolve de forma exclusivamente lógico – dedutiva, ou seja, parte da premissa de que o conflito faz parte da natureza humana, e por consequência, formas pacíficas e racionais de resolução de conflitos que emergissem do convívio social seriam desejadas. Uma destas formas consistia em atribuir a um terceiro a ‘autoridade’ para encerrar a disputa, através de um julgamento justo para as partes.

Considera-se razoável presumir que em civilizações pré-estatais, nas quais a figura de uma autoridade pública competente não existia, o terceiro imparcial teria de ser impreterivelmente escolhido ad hoc pelas partes conflitantes. Assim, a arbitragem se apresenta como uma prática social, de certo modo, ligada à natureza humana, inclusive nas origens míticas da civilização.

Em consonância, Cahali (2017) encontra na Ilíada um recurso à arbitragem. O autor argumenta que diante do conflito entre Hera, Atena e Afrodite quanto à definição de quem seria digna do pomo de ouro, Zeus decide nomear como árbitro o príncipe troiano Páris – que, ao resolver a disputa em favor de Afrodite, atrai sobre si a ira das deusas derrotadas e torna-se a causa da queda de Tróia.

Ademais, a história dogmática reitera o argumento com a narrativa historiográfica. Figueira Junior (2019, p. 1) afirma que “o instituto jurídico da arbitragem é, por certo, um dos mais antigos de que se tem notícia na história do direito”, e que “a tutela dos direitos se originou nos povos primitivos como consequência do próprio instinto humano de preservação e da concepção individualista do justo e do injusto”.

2. TEORIAS DA NATUREZA JURÍDICA DA ARBITRAGEM 

No Brasil, a previsão da arbitragem é antiga, estando presente desde as Ordenações Filipinas e sendo incorporada às normativas internas do Estado a partir da Constituição do Império[1]. A discussão acerca da natureza jurídica da arbitragem parece ter ganho espaço a partir do início do Século XX, após decisão proferida pela Corte de Apelação de Paris, no caso “Del Drago”, ocorrido em 1901. Neste, foi declarado que um laudo arbitral estrangeiro equivalia a uma sentença estrangeira, o que impulsionou parte da doutrina a sustentar o caráter jurisdicional da arbitragem [2].

O parâmetro utilizado pela doutrina brasileira para classificar ou não a arbitragem enquanto jurisdição esteve em larga escala ancorado na definição estipulada por Araújo Cintra, Grinover e Dinamarco (2005, p. 139), que conceituam a jurisdição como um instituto multifacetado, isto é, analisado sob a ótica do poder, da função e da atividade estatal. De todo modo, faz-se mister revisitar as correntes que assentam a natureza da arbitragem, quais sejam: a Teoria Jurisdicional, a Teoria Contratualista, a Teoria Mista e a Teoria Autônoma.

2.1. TEORIA JURISDICONAL

Para os seus adeptos, a arbitragem é uma delegação do Estado ao exercício da atividade jurisdicional. Nesse sentido, o árbitro é equiparado ao juiz para todos os fins, exercendo função pública através de sua decisão, que é revestida de eficácia jurídica.

Assim, apesar de entenderem que a jurisdição é monopólio do Estado, o seu exercício não o é -, visto que o Estado pode autorizá-lo por outros meios que não o Poder Judiciário. Clávio Valença (2015), a partir do conceito que define a jurisdição repartindo-a nos planos do poder, função e atividade, assevera que o exercício da função jurisdicional pode ser dividido entre juízes e árbitros:

“(…) o critério que distingue atividade e função jurisdicional é o mesmo que torna o estudo da competência distinto do da jurisdição. Enquanto o critério de competência reparte atividade, o de jurisdição reparte função. Juízes e árbitros repartem função, e não atividade”.

De mais a mais, se por um lado o juiz exerce a jurisdição a partir da autorização legal conferida pelo Estado, os árbitros a exerceriam a partir da autoridade conferida pelas partes através da autonomia privada. Ou seja, por um lado as partes se sujeitam ao juízo estatal em razão das normas de determinado Estado soberano – que exerce o poder em razão do contrato social – e por outro, as partes se sujeitam ao árbitro em razão da pactuação expressa que lhe confere autoridade.

Com o advento da LArb, boa parte da doutrina passou a se filiar à teoria jurisdicionalista da arbitragem. Os argumentos são os mais variados, mas o ponto comum de todos é que a lei conferiu prestígio à arbitragem de tal forma que ela deve ser considerada jurisdição, ainda que exercida em âmbito privado.

De modo análogo, Fredie Didier (2013) afirma que o princípio da ‘Kompetenz-kompetenz’ não decorre apenas da autonomia privada das partes, uma vez que a negativa de competência do árbitro, na hipótese de eventual cláusula compromissória inexistente, seria o exercício de jurisdição com base em permissão que jamais produziria qualquer efeito jurídico. Nas palavras do autor:

“A regra da Kompetenz-kompetenz é mais que isso: é um reconhecimento normativo por parte do Estado de que a jurisdição, em tese sob seu monopólio, pode ser exercida prioritariamente por agentes privados em algumas circunstâncias”.

Outrossim, os arts. 18 e 31 da LArb, ao estabelecerem que o árbitro é juiz de fato e de direito, e que sua sentença produz os mesmos efeitos que uma sentença proferida pelo Poder Judiciário, impulsionaram a teoria jurisdicional da arbitragem. Esses dispositivos reforçaram a noção de que a arbitragem se equipara à atuação do Judiciário e que, consequentemente, exerce jurisdição. Apesar de muito se especular com relação ao que o legislador pretendia com essa declaração, o entendimento mais aceito parece ser o de que se pretendeu evidenciar que o árbitro irá apreciar os fatos e aplicar o direito pertinente. Sobre o art. 18 da LArb, Alberto Jonathas Maia (2020) leciona que:

“Ele (o árbitro) julga os fatos e o direito. Não é um magistrado, é pessoa privada contratada pelas partes para decidir a disputa. Explica-se que o juiz e o árbitro têm função análoga, qual seja: resolver conflitos”.

Ainda, quanto ao art. 31 da LArb, Fredie Didier (2019) assevera que:

“A decisão arbitral fica imutável pela coisa julgada. Poderá ser invalidada a decisão, mas, ultrapassado o prazo de noventa dias, a coisa julgada torna-se soberana. É por conta desta circunstância que se pode afirmar que a arbitragem, no Brasil, não é equivalente jurisdicional: é propriamente jurisdição, exercida por particulares, com autorização do Estado e como consequência do exercício do direito fundamental de autorregramento (autonomia privada)”.

 

2.2. TEORIA CONTRATUALISTA

Para seus seguidores, a existência da arbitragem depende da manutenção do contrato estabelecido entre as partes. Foi formulada pela Cour de Cassation no julgamento do caso Roses, sob a premissa de que se os laudos arbitrais se baseiam na convenção de arbitragem eles são uma unidade e, portanto, compartilham a natureza contratual [3]. Nesse sentido, o descumprimento da sentença arbitral seria o descumprimento de um contrato, podendo a parte prejudicada recorrer ao Judiciário.

Como bem sintetizado por José Antonio Fichtner, Sergio Nelson Mannheimer e André Luís Monteiro (2019), a teoria contratualista entende que a arbitragem não passa de um negócio jurídico, sendo a decisão do árbitro um reflexo do acordo privado entre as partes incapaz de possuir caráter jurisdicional.

Em síntese, pode-se dizer que a teoria contratualista considera que a arbitragem nasce de um ato de vontade bilateral, sujeito à teoria geral das obrigações, assim como que a decisão proferida pelos árbitros não passa de um reflexo desse acordo, insuscetível, dessa forma, de ostentar qualquer caráter jurisdicional, já que não é emanado pelo Estado, o detentor exclusivo da jurisdição.

2.3. TEORIA MISTA

 

Criada em 1952 por Sauser-Hall em relatório apresentado ao Institut Droit International. Sauser sustentou que o laudo arbitral não poderia ser considerado independente de todas as normas de determinado Estado, sendo necessário lei que disponha sobre a validade da convenção de arbitragem e como se daria sua execução [4]. Portanto, a arbitragem teria origem contratual, já que surgira do acordo entre as partes de submeter o conflito à arbitragem, mas também natureza jurisdicional, uma vez que o laudo arbitral resolve a controvérsia de maneira heterocompositiva.

Essa teoria tem notoriedade no âmbito internacional, uma vez que reflete a prática da arbitragem comercial internacional. De modo sucinto, José Antonio Fichtner, Sergio Nelson Mannheimer e André Luís Monteiro (2019) a apresentam da seguinte forma:

“Em resumo, pode-se dizer que a teoria mista fixa o olhar no nascedouro da arbitragem, afirmando que a sua fonte é contratual – já que nasce do acordo de vontades expresso na convenção de arbitragem – não obstante reconheça que a sentença arbitral possui caráter jurisdicional em razão de seus efeitos”.

2.4. TEORIA AUTÔNOMA 

Por fim, a teoria autônoma preceitua que a arbitragem é emancipada de qualquer ordenamento jurídico. Esse raciocínio foi desenvolvido em 1965 por Jacqueline Rubellin-Devichi, que enxergava a arbitragem alheia a qualquer sistema jurídico nacional, sendo regida por regras próprias [5].

Essa teoria busca refletir as necessidades do comércio internacional. Nela, assim como na teoria jurisdicional, o laudo arbitral é entendido como vinculante e, como na teoria contratual, que a jurisdição do árbitro decorre da vontade das partes. Contudo, qualquer mecanismo de controle por parte dos Estados é retirado da arbitragem, o que a desvincula de qualquer ordenamento jurídico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Notadamente, a principal premissa, que é etapa essencial ao enquadramento da arbitragem enquanto jurisdição ou não, é a adequada delimitação do que seria a própria jurisdição (as teorias que tentam esmiuçar seu conceito não serão aqui tratadas). No entanto, no que pese a não superação do imprescindível debate sobre o conceito de jurisdição, a doutrina e os Tribunais passaram a dialogar com a possibilidade de enquadramento da arbitragem como um instituto de natureza jurídica jurisdicional. O entendimento do Tribunal (STJ) decorre das alterações legislativas que a LArb implementou, aproximando a figura do juiz e do árbitro, ao dispor que o árbitro é juiz de fato e de direito, e prestigiando os efeitos jurídicos da decisão arbitral ao equipara-la à sentença judicial. A delimitação da sua natureza é uma tarefa complexa e necessita de cautela para que características essenciais estejam adequadamente contempladas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 21ª ed. Malheiros: 2005. Pág. 139.

BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil. Rio de Janeiro, 1824. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado dos Negócios do Império do Brazil, 22 abr 1824.

CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem: mediação, conciliação, resolução CNJ 125/2010. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

DIDIER JUNIOR, Fredie. A arbitragem no novo Código de processo civil: (versão da Câmara dos Deputados: Dep. Paulo Teixeira). Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 79, n. 4, p. 73-81, out./dez. 2013. p.79.

DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Volume 1. 21ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 211.

FICHTNER, José Antonio; MANNHEIMER, Sergio Nelson; MONTEIRO, André Luís. Teoria geral da arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2019. pp. 34-40.

FIGUEIRA JR, Joel Dias, Arbitragem, Vol. 3, Imprenta: Rio de Janeiro, Editora Forense, 2019.

GIOVANNI, Ana Elisa Preto Pereira; FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nassar. Jurisdição Arbitral e Execução: é possível a execução judicial de título executivo em contrato que contenha cláusula arbitral?. Revista de Cidadania e Acesso à Justiça. Volume 1. Página 789 a 809. Julho a Dezembro de 2016. p. 793-798.

MAIA, Alberto Jonathas. Fazenda Pública e arbitragem: do contrato ao processo. Salvador: Juspodivm, 2020. Pág. 144.

VALENÇA FILHO, C. M. A arbitragem em juízo. 2015. 288 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. p. 11.

[1] Dispõe o artigo 160: “Nas (causas) cíveis, e nas penais civilmente intentadas, poderão as Partes nomear Juízes Árbitros. Suas Sentenças serão executadas sem recurso, se assim o convencionarem as mesmas Partes.“ BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil. Rio de Janeiro, 1824. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado dos Negócios do Império do Brazil, 22 abr 1824.

[2] GIOVANNI, Ana Elisa Preto Pereira; FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nassar. Jurisdição Arbitral e Execução: é possível a execução judicial de título executivo em contrato que contenha cláusula arbitral? Revista de Cidadania e Acesso à Justiça. Volume 1. Página 789 a 809. Julho a dezembro de 2016. p. 793.

[3] GIOVANNI, Ana Elisa Preto Pereira; FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nassar. Jurisdição Arbitral e Execução: é possível a execução judicial de título executivo em contrato que contenha cláusula arbitral?. Revista de Cidadania e Acesso à Justiça. Volume 1. Página 789 a 809. Julho a Dezembro de 2016. p. 795.

[4] GIOVANNI, Ana Elisa Preto Pereira; FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nassar. Jurisdição Arbitral e Execução: é possível a execução judicial de título executivo em contrato que contenha cláusula arbitral?. Revista de Cidadania e Acesso à Justiça. Volume 1. Página 789 a 809. Julho a Dezembro de 2016. p. 797.

[5] Op.cit., pág. 798.

[*] É graduanda em Direito pela prestigiada Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, é estagiária no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT).

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