Por Giulia Mariah Tavares
O estado de exceção, em termos gerais, significa a atuação de parcelas do poder que, lícita ou ilicitamente, ultrapassam as fronteiras estipuladas pelo Estado de Direito, de tal sorte a ensejar medidas à parte da previsão normativa. Diante disso, a anormalidade das previsões normativas ameaça a soberania popular, e, por conseguinte, transforma a política e a Constituição em um jogo schmittiano de controle da situação de exceção. Nesse sentido, a situação do Brasil é desviante dos parâmetros do Estado de Direito, devido à matriz econômica neoliberal em constante e ferrenho embate com os direitos fundamentais respaldados na Constituição de 1988 (CFRB 88). Em síntese, o neoliberalismo pressupõe um constante estado de exceção para o seu funcionamento e prosperidade1.
Na década de 1990 foram delineados, a um só tempo, os desenhos da promulgação da Constituição de 88, a consequente ampliação dos direitos sociais e a adoção da doutrina neoliberal mediante o Consenso de Washington e a proeminência política de Ronald Reagan e Margaret Thatcher2. Segundo Gargarella, o conjunto de mudanças constitucionais sem a respectiva mudança no aparelho do poder “deixou os controles políticos majoritariamente em mãos dos grupos tradicionalmente poderosos”3. Nesse contexto, ao voltarmos a nossa atenção ao estudo do estado de exceção, é conveniente o uso da teoria de Carl Schmitt aplicada ao Brasil da redemocratização. Ora, segundo ele, a soberania do Estado é expressa precisamente em momentos de anormalidade, de exceção e na regulação do binômio político amigo/inimigo. Assim, é seguro afirmar que a soberania passou da pretensão de ser popular para a soberania do Mercado. É o Mercado que define as políticas públicas do Estado e define um inimigo: a corrupção. No entanto, a corrupção sempre foi o Cavalo de Tróia do Mercado, o combate à corrupção tornou-se desculpa para praticar as mais descabidas atividades jurídicas. Já o combate às consequências da corrupção, a crise econômica, tornou-se álibi para desmantelar as conquistas sociais da CRFB 884.
Apesar da tentativa de malabares interpretativos por parte de setores da sociedade, o neoliberalismo, por definição, não é compatível com a justiça social. Hayek, um dos seus teóricos de maior eminência, afirma que a incumbência do Direito Constitucional é apenas traçar parâmetros de normas de conduta, e não normas justas5. Os direitos fundamentais estão sempre submetidos à lógica da interpretação jurídica consoante as condições atuais de vida6. No entanto, a ótica neoliberal é descolada da realidade social e histórica, de modo que objetiva apenas o lucro e a integridade do mercado. À vista disso, em uma evidente tentativa de giro interpretativo, a elite local brasileira, sobretudo após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, lançou mão da Teoria de Custos, cuja principal atribuição é submeter o Direito à lógica econômica por meio da argumentação de que toda ação de justiça social por parte do Estado tem custo e, portanto, devem ser limitadas conforme o parâmetro de custo-benefício, valendo-se das “limitações orçamentárias do governo”. Essa transformação do Direito em meio se consolidou com a adoção do Princípio da Eficiência Administrativa, que parece desconhecer, na prática, que um Estado de fato eficiente e de Direito pressupõe a diminuição das desigualdades sociais e históricas7.
O capitalismo, segundo a visão weberiana, é extremamente sensível a qualquer tipo de perturbação e, por isso, implica sua necessidade de regular o ordenamento jurídico para que haja o mínimo de imprevistos8. Conquanto a tentativa total de controle, a economia está imersa nessa contingência mundial das coisas e dos fatos, ao passo que a democracia está sempre suscetível a conflitos e a disputas. É precisamente a imprevisibilidade das coisas que culminou na crise econômica principiada em 2015, que, de forma sumária, tem dois motivos capitais: i) o fator externo: a crise econômica internacional afetou o Brasil mediante a desaceleração da economia chinesa e a volta de políticas de redução do déficit público europeu, o que implicou na retirada de investimentos em terras tropicais; ii) o fator interno: a equivocada decisão política da então presidente Dilma Rousseff em primar pelos investimentos privados em detrimento dos investimentos públicos e o ajuste fiscal de 2015. A crise econômica, a bem da verdade, não foi resultado dos erros de Roussef, cujo papel foi apenas de catalisadora, e sim do fim de um período de anormalidade na conjuntura internacional, marcada pelo crescimento chinês e pela a busca por coalizões da elite industrial/agrícola e o movimentos populares9.
Com efeito, os blocos do poder econômico começaram a perceber a decadência do modelo neoliberal e, no fito de manter a integridade, emprestaram enormes esforços na aprovação de reformas, a exemplo, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Gastos, a Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência. Como de praxe, as elites brasileiras, imbuídas do ideário neoliberal, empenham-se em manter o status quo e o modus operandis da política brasileira e desempenham seu papel nefasto no processo de separação entre nós e eles, para citar a teoria de Carl Schmitt10, em que eles precisam ser eliminados e derrotados. Começa, a partir daí, a intensa polarização política – imersa em um paradoxo de despolitização das massas -, os caminhos para o impeachment de Dilma e as consequentes crises políticas. A problemática singular dessa crise política no Brasil, fato que a agrava ainda mais, é que quando Michel Temer foi alçado ao poder, as elites, com a sensação de dever cumprido, se separaram em várias frentes de atuação, de tal sorte a engendrar uma crise nas instituições sociais, tanto públicas, como o Judiciário, quanto privadas, como a grande mídia e o setor empresarial.
O papel da Constituição e do constitucionalismo é encontrar métodos para que os agentes internacionais não se interponham entre a consolidação dos direitos fundamentais e o Estado. Nesse sentido, Luís Felipe Miguel asserta sobre três elementos obstaculizados da forma democrática em um sistema capitalista neoliberal: i) dependência estrutural: o Estado precisa realizar os caprichos do Mercado no fito de manter os investimentos econômicos; ii) influência pervasiva do poder econômico: o poder político é permissivo com as influências do capital, um exemplo disso é o apoio do setor empresarial nas eleições; iii) socialização inadequada dos trabalhadores para a ação política democrática, isto é, a relação de trabalho na ordem capitalista domestica o trabalhador ao ressaltar as qualidades contrárias à prática democrática, a exemplo, a subserviência11. A participação popular, ou melhor, a falta dela, não pode jamais ser entendida como uma falta de intelecto, e sim como uma situação complexa em que a cidadania e o consumo se confundem, para citar Milton Santos, em uma Democracia de Mercado, onde o poder do econômico contamina a consciência coletiva12. Essa concepção elitista referente à cognição social é justamente a visão que nós devemos combater com toda a veemência, a consciência e os direitos políticos devem abarcar todos, sem distinção de qualquer sorte, para que, por fim, o jogo democrático seja jogado na esfera pública, bem como elucida Habermas13, em uma tensão argumentativa respeitosa e igualitária. Desse modo, será possível a política do povo, e não do Mercado.
Por fim, a análise da tensão entre neoliberalismo e Constituição seria débil caso omitisse um elemento crucial na matriz neoliberal: a globalização. A partir da perspectiva da geografia social de Milton, entende-se que o fenômeno da globalização, justificado pela grande mídia – em um movimento que ele chama de violência da informação -, é deturpado. A Democracia de Mercado é o braço político da globalização, já o neoliberalismo é o braço econômico14.
A globalização desconstrói a prática democrática, já que a identidade nacional do Estado-nação é escamoteada pelos interesses dos mercados internacionais. A soberania do Mercado, portanto, não viabiliza a atividade popular que confere ao povo o ímpeto de discutir a esfera pública, ao contrário, constrói uma estrutura de poder despolitizante. Nesse contexto, é imperioso que nos atentemos a que a lógica perversa da economia neoliberal é caminho para o que Bertram Gross define como fascismo amigável, isto é, resultado da concatenação entre os interesses do Big Government e do Big Business, de modo a se valer das “luvas de veludo” e da retórica democrática para a dominação. Em síntese, “o friendly fascism é apontado como face política de um capitalismo governado em última instância pela oligarquia do grande capital”15. A prática sutil de dominação pode, por exemplo, ser representada pela prática de subintegração constitucional, onde a maior parcela da população, apesar de formalmente ter direitos fundamentais garantido pela CRFB 88, não goza dos benefícios do ordenamento jurídico, apenas das práticas coercitivas e repressivas do aparato estatal16. Com efeito, a crise brasileira reside em várias dimensões e a econômica exerce papel determinante na acentuação de outras facetas das adversidades, como a crise das instituições e o papel do Judiciário enquanto falso herói.
Giulia Mariah Tavares é graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Bolsista de Iniciação Científica pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF).
Referências bibliográficas:
[1] VALIM, RAFAEL. Estado de Exceção: a forma jurídica do neoliberalismo. Ed. 1 São Paulo: Editora Contracorrente, 2017. E-Book. IBSN 978-8569220282;
[2] ROSA, Alexandre Morais da; MARCELINO JR., Julio Cesar. Os direitos fundamentais na perspectiva de custos e o seu rebaixamento à categoria de direitos patrimoniais: uma leitura crítica. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2009, v.1, n.1, ago- dez, p. 10;
[3] GARGARELLA, Roberto. Constitucionalismo latino-americano: a necessidade prioritária de uma reforma política. In: Constituinte exclusiva: um outro sistema político é possível, 2013, p. 16;
[4] VALIM, op. cit.;
[5] ROSA; MARCELINO, op. cit, p. 11;
[6] GONGORA-MERA, Manuel Eduardo. Judicialização da discriminação estrutural contra povos indígenas e afrodescendentes na América Latina: conceptualização e tipologia de um diálogo interamericano. Rio de Janeiro: Quaestio Iuris, v. 8, n.2, p. 836;
[7] ROSA; MARCELINO, op. cit, p. 12-14;
[8] SWEDBERG, Richard. Max Weber e a ideia de sociologia econômica. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2005;
[9] PINTO, Eduardo Costa; PINTO, José Paulo Guedes; SALUDJIAN, Alexis; NOGUEIRA, Isabela; BALANCO, Paulo; SCHONERWAL, Carlos; BARUCO, Grasiela. A guerra de todos contra todos: a crise brasileira. IE-UFRJ Discussion paper, 2017;
[10] MOUFFE, Chantal. Pensando a democracia com, e contra, Carl Schmitt. Tradução para uso acadêmico. Em “Reveu Française de Science Politique, vol.42,
n.1, fevereiro, 1992;
[11] HEINEN, Luana Renostro; SANTOS, Priscilla Camargo. A Tensão entre poder e direito na perspectiva histórica de Pietro Costa: a solução da democracia constitucional e seus novos dilemas. Revista Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 433-434, jul./dez. 2018;
[12] CHAVES, M.R. O conceito de Democracia de Mercado em Milton Santos e suas interfaces com a atual crise política brasileira. São Paulo: UniÍtalo, v.7, n.3, p. 252, jul. 2017;
[13] SOUSA, Francisco Pereira de. O Estado Democrático de Direito segundo a teoria do Discurso. In:______. O Estado Democrático de Direito Habermasiano, item 1.3. Goiânia: Editora Phillos, 2018;
[14] SANTOS, Milton. O retorno do território. In: OSAL: Observatório Social da América Latina. Ano 6, n. 16, jun. 2005;
[15] NUNES, António José Avelãs. Neoliberalismo e direitos humanos. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, fev. 2003, p. 452;
[16] NEVES, Marcelo. Do pluralismo Jurídico à Miscelânea Social: o problema da falta de identidade da(s) esfera(s) de juridicidade da modernidade periférica e suas implicações na América Latina. Florianópolis: Encontro Internacional de Direito Alternativo, 1993.