Por: Gabriel Cardoso Cândido
O sistema carcerário brasileiro enfrenta uma crise de racionalidade e humanidade que se reflete em um déficit aproximado de 300 mil vagas. Para reverter este cenário, é necessário uma redução urgente da população prisional, tendo em vista uma gestão mais justa e eficaz das prisões.
No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, o STF reconheceu as prisões brasileiras como um “estado de coisas inconstitucional”. Este reconhecimento decorre da constatação de condições desumanas e degradantes, da prática de torturas e da superlotação persistente nas unidades prisionais.
No entanto, tal reconhecimento, por si só, não é suficiente. A manutenção de uma postura inerte frente às constantes novas entradas no sistema carcerário aprofunda as violações e perpetua um ciclo de crueldade e contradição.
Um Estado que se autoproclama democrático não pode encarcerar além de sua capacidade. A Constituição, bem como a jurisprudência do STF, oferecem parâmetros claros que apontam para a necessidade de contenção do encarceramento em massa.
Vamos destacar algumas decisões fundamentais para se compreender a gravidade e as possíveis saídas para este cenário:
1) Súmula Vinculante n° 56: dispõe que “a falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso (…)”. A decisão reforça a impossibilidade de manter pessoas presas em condições piores por ausência de vagas adequadas.
2) HC 143.641: o STF admitiu a substituição da prisão preventiva pela domiciliar para mulheres gestantes e mães de crianças ou pessoas com deficiência, ressalvando os casos em que há violência ou grave ameaça contra os descendentes.
3) HC Coletivo 165.704: estendeu os efeitos do HC 143.641, permitindo que pais, desde que únicos responsáveis pelos cuidados dos filhos, também possam ser beneficiados pela substituição da prisão preventiva pela domiciliar.
4) HC 143.988: determinou que as unidades de execução de medidas socioeducativas para adolescentes não ultrapassem a capacidade projetada, visando garantir condições adequadas e dignas aos jovens em cumprimento de medidas de internação. Foi estabelecido
que as unidades de execução de medida socioeducativa de internação de adolescentes não ultrapassem a capacidade projetada de internação prevista para cada unidade, nos termos da impetração e extensões. Propõe-se, ainda, a observância dos seguintes critérios e parâmetros, a serem observados pelos Magistrados nas unidades de internação que operam com a taxa de ocupação dos adolescentes superior à capacidade projetada: i) adoção do princípio numerus clausus como estratégia de gestão, com a liberação de nova vaga na hipótese de ingresso; ii) reavaliação dos adolescentes internados exclusivamente em razão da reiteração em infrações cometidas sem violência ou grave ameaça à pessoa, com a designação de audiência e oitiva da equipe técnica para o mister; iii) proceder-se à transferência dos adolescentes sobressalentes para outras unidades que não estejam com capacidade de ocupação superior ao limite projetado do estabelecimento, contanto que em localidade próxima à residência dos seus familiares; (…)[1]
Esse raciocínio decorre do princípio da execução penal do *numerus clausus*, cujo conceito e categorias foram abordados em um texto anterior, o qual destacaremos a seguir:
O conceito do numerus clausus deriva de uma perspectiva que tangencia o óbvio, em que o estabelecimento prisional é impedido de receber indivíduos para além de sua capacidade (VALOIS, 2021). Entretanto, não há que se esperar lógica na questão penitenciária, quando a Corte Constitucional brasileira reconhece a inconstitucionalidade do sistema carcerário e mesmo assim permanece referendando e legitimando diversos mandados prisionais (VALOIS, 2021). Roig (2014) nos apresenta 3 categorias do princípio do numerus clausus: i. o preventivo, ii. o direto e iii. o progressivo. O numerus clausus preventivo prevê o impedimento de entrada de novos apenados ao sistema prisional, quando estes ambientes já estiverem com a sua lotação máxima atingida, refletindo na conversão do encarceramento para a prisão domiciliar até haver o devido espaço no cárcere (ROIG, 2014). Já o numerus clausus direto dispõe acerca da mobilização de institutos como o indulto e a prisão domiciliar aos apenados que estão mais próximos de alcançar os requisitos legais para a liberdade (ROIG, 2014). Por fim, o numerus clausus progressivo consiste na progressão do regime mais gravoso para um menos gravoso, se for operado em concomitância e de maneira sistemática, o principal resultado será a saída de presos em regime aberto ou prisão domiciliar “do círculo detentivo, ingressando no círculo de liberdade” (ROIG, 2014, p. 117)[1]
5) HC 188.820: Em razão da pandemia de COVID-19, o STF admitiu a progressão antecipada de regime para determinados presos, considerando os riscos sanitários e a vulnerabilidade dos detentos em ambientes superlotados.
6) Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), Caso do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho: A Corte IDH determinou que, em razão da superlotação, a pena deveria ser contada em dobro para os detentos do referido instituto, reconhecendo as condições precárias e desumanas enfrentadas pelos encarcerados.[3]
Essas decisões destacam um esforço relevante para se contrapor ao encarceramento em massa. Entretanto, é fundamental que sejam seguidas de ações concretas e políticas públicas que visem à redução massiva da população carcerária.
Apenas com a combinação de reconhecimento jurídico e ação prática será possível caminhar rumo a um sistema de justiça que respeite a dignidade humana e os direitos fundamentais. O combate ao encarceramento em massa não se resume a uma questão de gestão, mas de compromisso com os princípios constitucionais, democráticos e de defesa dos direitos humanos.
Autor: Professor na pós-graduação em Ciências Criminais na Universidade Candido Mendes. Autor da coluna Direitos Humanos no Cárcere – Portal Jurídico dos Estudantes de Direito (UnB). Especialista em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS. Graduado em Direito pela PUC-Rio.
Referências
CÂNDIDO, G. C. O princípio da dignidade da pessoa humana como premissa fundamental da execução da pena privativa de liberdade. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 1, n. 30, p. 160-1, 2022.
CORTE IDH. Resolução de 31 de agosto de 2017 — Medidas Provisórias a respeito do Brasil: assunto do IPPSC. Corte IDH, 2017.
STF. Habeas Corpus 143.988/ES, Acórdão. Relator: Min. Edson Fachin.
Coluna “Direitos Humanos no Cárcere”: Texto 6