CRITÉRIOS OBJETIVOS PARA A JUSTIÇA GRATUITA: GARANTIA DE ISONOMIA OU NEGATIVA DE ACESSO À JUSTIÇA?

Por Daniela Marques de Moraes*, Fabiana Dantas Berçott** e Rafaella Bacellar Marques**

O STJ recentemente afetou para julgamento tema repetitivo sobre a possibilidade de fixação de critérios objetivos para a concessão da Justiça Gratuita. 

Trata-se do Tema nº 1.178, com relatoria do Ministro OG Fernandes, que irá determinar “se é legítima a adoção de critérios objetivos para aferição da hipossuficiência na apreciação do pedido de gratuidade de justiça formulado por pessoa natural, levando em conta as disposições dos arts. 98 e 99, § 2º, do Código de Processo”. 

Apesar de recente a decisão de afetação do STJ, as polêmicas envolvendo a justiça gratuita remontam desde muito antes do CPC/73, de modo que, como já era esperado, a retomada da discussão trouxe dúvidas antigas, mas também inusitadas quanto à questão. Duas merecem destaque: (i) a possibilidade de fixação de tais critérios objetivos a partir da leitura da CF/88 e da interpretação sistemática do CPC/15; (ii) e o limite da atuação do STJ.

 Os três recursos especiais afetados como representativos da controvérsia foram interpostos pelo INSS contra acórdãos do TRF2, que concederam o benefício da JG aos segurados do regime de previdência [1]

Antes de mais nada, explica-se: o benefício da justiça gratuita consiste na “dispensa provisória da antecipação do pagamento das despesas judiciais ou extrajudiciais, necessárias ao pleno exercício dos direitos do hipossuficiente, em juízo ou fora dele” [2].

Tal benefício está abarcado pelo conceito de gratuidade da justiça, que recebeu proteção constitucional, manifesta no rol dos direitos fundamentais de acesso à jurisdição (art. 5º, XXXV, CF) e assistência jurídica integral e gratuita (art. 5º, LXXIV, CF). 

Nesse sentido, ainda que não se possa confundir justiça gratuita, assistência judiciária [3] e assistência jurídica, todas “decorrem do direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita que trata o art. 5º, LXXIV, da CF” [4]. Isso, porque não há sentido em se pensar que o acesso à jurisdição e a assistência judiciária poderiam ser garantidos de forma suficiente, sem a gratuidade da justiça [5].

Hoje, o CPC/15 estabelece que a pessoa natural ou jurídica que tenha insuficiência de recursos tem direito à gratuidade da justiça. O Código dispõe que o magistrado somente poderá indeferir o benefício, caso haja nos autos prova que evidencie a falta dos pressupostos legais para a concessão (art. 99, §2º, CPC). Desse modo, há presunção de hipossuficiência, expressa pelo §3º, do art. 99, do CPC. 

Delimitado o objeto da controvérsia, passa-se a análise dos argumentos. 

Pois bem, durante décadas, e até hoje, observou-se no Brasil necessidade de favorecer o acesso dos cidadãos ao sistema de justiça, por meio da eliminação de um obstáculo: os custos necessários à solução da lide [6].

Por outro lado, há uma preocupação de que os incentivos para o acesso formal ao sistema de justiça têm gerado algumas situações de mau uso desse sistema. Aqui, a gratuidade tornaria a litigância menos arriscada ao beneficiário, e, se concedida sem limites, incentivaria o abuso do direito de litigar. 

Esse debate não é novo. Durante a elaboração do anteprojeto do CPC/15, discutiu-se a necessidade de adoção de critérios objetivos para a assistência judiciária gratuita [7].

Contudo, a partir da controvérsia que se delineia no STJ, analisa-se, sobretudo, se a interpretação atualmente aplicada ao art. 99, §2º, do CPC, é de fato a mais adequada à luz da CF e à luz do CPC/15 como um todo.

O que tem se defendido, na maior parte das manifestações de amici curiae favoráveis à fixação, é que, uma vez presentes nos autos elementos que evidenciem que a parte aufere determinada renda, se não seria mais isonômico a definição de um parâmetro para que se considere o que é a hipossuficiência. 

Isso, porque a maior parte dos Tribunais tem adotado um parâmetro próprio para definição do que é hipossuficiência, supostamente em decorrência da sobrecarga vivenciada pelo Judiciário, que impediria a análise exaustiva da condição econômica da parte em cada caso concreto. Exemplo apontado pelo Ministro Fux [8] é a comum adoção do parâmetro de dez salários-mínimos, que ensejaria a possibilidade do benefício para cerca de 98% da população, o que evidencia a distorção do instituto da gratuidade [9]

Por isso, para João Grandino Rodas, “seria inaceitável a concessão indiscriminada da gratuidade da justiça” [10]. Tendo esse ideário como base, a fixação de critérios racionais desincentivaria os patrocinadores de demandas frívolas, favorecendo os demandantes de lides reais, ao aumentar a qualidade da prestação jurisdicional e reduzir a duração dos processos. Nesse mesmo sentido, no julgamento da ADI nº 5766, o Ministro Barroso manifestou-se quanto à necessidade de regulação da gratuidade da justiça de modo a desestimular a litigância abusiva. 

Os parâmetros que se pretendem definir serviriam para a orientação do magistrado acerca da concessão do benefício, sem prejuízo de que mediante situações extraordinários, estes fossem afastados.

Como argumento favorável a essa tese, tem-se a previsão constitucional de que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (art. 5º, inciso LXXIV), portanto, essa exigência constitucional autorizaria a concessão mediante critérios. 

Outro argumento utilizado é o de que não há no Código norma que vede o estabelecimento de critérios objetivos para a concessão do benefício. Assim, em atenção à segurança jurídica e em respeito à isonomia, a fixação dos parâmetros objetivos seria uma alternativa que deveria ser implementada pelo STJ.

Entendem que o CPC/15 seria orientado pelo objetivo de garantia da unidade e coerência das decisões judiciais [11]. O que é manifesto em alguns de seus artigos, a exemplo do art. 927 e do art. 489, §1º, inc. IV. Logo, a fixação de parâmetros por meio de critérios objetivos permitiria o tratamento isonômico dos jurisdicionados, pois garantiria a criação de mecanismos para “frear o abuso, inclusive de natureza financeira” [12], sem, contudo, desestimular o acesso inicial de quem tem direito a discutir. 

Assim, entendem que o STJ seria competente na medida em que lhe cabe, no âmbito de sua missão constitucional, o dever de uniformizar a interpretação da legislação federal.  E isso só poderia ser feito no presente caso, a partir da fixação de um parâmetro para se definir o que é hipossuficiência. 

Os argumentos contrários à fixação dos critérios objetivos pelo STJ são, sobretudo, dois:  impossibilidade de fixação de um critério uno e rígido a todas as regiões do Brasil – um país bastante heterogêneo e de dimensões continentais – e a criação de uma lei geral e abstrata pelo STJ, com usurpação de competência do Poder Legislativo [13]

Ainda, os amici curia contrários à fixação de parâmetros entendem que qualquer fixação objetiva, seja pelo STJ, seja pelo Tribunal de origem, é inconstitucional, uma vez que incluiria um obstáculo econômico ao acesso à justiça. Defendem que a comprovação da insuficiência de recursos, quando necessária, deve ser um processo de análise, que abranja “a análise das condições financeiras, sociais e pessoais da parte” [14].

A presunção relativa de hipossuficiência da forma como está prevista no CPC já era anteriormente defendida pela doutrina. Na clássica lição de Barbosa Moreira [15], a presunção relativa de gratuidade estaria em conformidade com a CF. Sua rejeição implicaria marcha-a-ré quanto às evoluções obtidas em relação à gratuidade da justiça. No mesmo sentido, defendem Didier Jr. e Oliveira, ao afirmar que “a lei não fala em números, não estabelece parâmetros” [16].

Para mais, a doutrina de Vidigal, segundo o qual: “é impossível a estipulação de critério objetivo que possa ser usado nas hipóteses que surgem” [17], assim a concessão estaria sempre submetida à subjetividade do magistrado.

Também de acordo com a argumentação contrária à fixação, o CPC, em conjunto com o art. 10 da Lei 1.060/1950, seriam claros em definir que a comprovação dessa insuficiência de recursos deve ser subjetiva, devendo variar de acordo com cada caso concreto. Concluem que não há, tampouco poderia haver, na legislação, parâmetro objetivo que limite o alcance ao benefício da justiça gratuita.

Como demonstrado, as perspectivas em torno dessa questão são divergentes e provocam reflexões acerca da garantia do acesso à justiça e da viabilidade das medidas restritivas. O julgamento iminente trará luz a essa controvérsia, e sua decisão certamente influenciará a forma como o sistema jurídico aborda a concessão da gratuidade da justiça. Resta agora aguardar a resolução desse relevante impasse, na busca constante pela justiça e equidade.

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*  Professora de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – FD/UnB, nos cursos de Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado). Doutora em Direito pela Universidade de Brasília – UnB (2014). Realizou pesquisa pós-doutoral em Direito Processual Civil na Universidad Carlos III de Madrid (2019). Diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – FD/UnB (2021-2024). Líder e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa (CNPq/UnB) Processo Civil, Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos. Professora orientadora da Liga Acadêmica de Processo Civil da Universidade de Brasília (LAPROC). E-mail: danielamoraes@unb.br

** Graduandas em Direito na Universidade de Brasília, campeãs da 5ª Competição Brasileira de Processo Civil, fundadoras da Liga Acadêmica de Processo Civil da UnB e orientadoras da Equipe de Processo Civil da UnB.

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Referências

[1] REsp 1988697/RJ; REsp 1988697/RJ; REsp 1988686/RJ.

[2] ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios institucionais da Defensoria Pública. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 142.

[3]  A assistência judiciária é atividade desempenhada pelas defensorias, que consiste na atividade técnica de representação do hipossuficiente em juízo, já a jurídica seria um conceito mais amplo.

[4] DIDIER JR., Fredie. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Benefício da Justiça Gratuita: de acordo com o novo CPC. 6. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 23.

[5]  Essa é a linha de defesa sustentada pelo IBDP, que consta no tema do repetitivo como amicus curiae, para negar a fixação de critérios objetivos e defender a possibilidade de existência de critérios em caráter suplementar para a concessão da gratuidade.

[6] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988.

[7] 7ª audiência pública do anteprojeto realizada na data de 15/04/2010. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496296/000895477.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 31/07/2023.

[8] “Nada obstante os requisitos para a concessão da gratuidade de justiça devam ser avaliados no caso concreto, e bastante comum a adoção do parâmetro da remuneração líquida de dez salários-mínimos do requerente. A título de comparação, o rendimento domiciliar per capita médio do brasileiro em 2017 foi de R$ 1.268, pouco mais de um salário mínimo, segundo dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do terceiro trimestre de 2017, 98% (noventa e oito por cento) da população brasileira ganha menos de dez salários mínimos brutos, fazendo jus ao benefício da gratuidade de justiça pelo parâmetro comumente aplicado.” FUX, Luiz. Processo Civil e Análise Econômica: Grupo GEN, 2020. E-book. ISBN 9788530991999. P. 29. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530991999/. Acesso em: 03 jul. 2023

[9] Em incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, o TRF 4 adotou o parâmetro de rendimento mensal não superior ao valor do maior benefício do Regime Geral de Previdência Social (TRF4, INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS Nº 5036075-37.2019.4.04.0000, Corte Especial, Desembargador Federal LEANDRO PAULSEN, POR MAIORIA, JUNTADO AOS AUTOS EM 07/01/2022)

[10] RODAS, João Grandino. Contribuições da análise econômica do Direito para a gratuidade processual. CONJUR, 16 de dezembro de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021- dez-16/olhar-economico-contribuicoes-analise-economica-gratuidade-processual (último acesso em 6 de julho de 2023)

[11] Extrai-se da Exposição de Motivos do CPC de 2015: “Por outro lado, haver, indefinidamente, posicionamentos diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito da mesma norma jurídica leva a que jurisdicionados que estejam em situações idênticas tenham de submeter-se a regras de conduta diferentes, ditadas por decisões judiciais emanadas de tribunais diversos. Esse fenômeno fragmenta o sistema, gera intranquilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade na sociedade.

[12] CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça: juizados especiais e ação civil pública: uma nova sistematização da teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 68.

[13]  Aqui, cita-se que o PL 5.900/2016, que visa incluir um padrão para a identificação de cidadãos de baixa renda para a concessão do benefício da JG, que está em tramitação e já foi aprovado pela Câmara dos Deputados.

[14] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 7. Ed. São Paulo: Malheiros, 2010, v.1, p. 325).

[15] MOREIRA, José Carlos Barbosa. O direito à assistência jurídica: evolução no ordenamento jurídico brasileiro de nosso tempo. Revista de Processo, São Paulo, n. 67, Jul.-Set. 1992, p. 131.

[16] DIDIER JR., Fredie. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Benefício da Justiça Gratuita: de acordo com o novo CPC. 6ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 60.

[17] VIDIGAL, Maurício. Lei de Assistência Judiciária interpretada. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 15. 

 

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