*Por Matheus Zchrotke da Silva
1 INTRODUÇÃO
No âmbito da construção política e ideológica da civilização ocidental, os conceitos de liberdade e igualdade sempre foram pilares essenciais, tanto para o reconhecimento de direitos quanto para a formação de ordens constitucionais. Esses conceitos, contudo, formavam uma tríade em sua origem formal na revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. O último princípio, todavia, foi esquecido durante a progressão geracional dos direitos, elevando os dois primeiros a princípios universais de caráter político e essencialmente os tornando vetores de regulação da vida social (BAGGIO, 2009). A incompletude que esse binômio igualdade-liberdade gerou no projeto civilizatório ocidental, com a afirmação estrutural de desigualdades amplas pela máquina estatal e ordem econômica neoliberal, demonstrou uma carência principiológica nos instrumentos políticos, que, de acordo com professor Reynaldo Soares da Fonseca, só pode ser resolvida pelo esquecido princípio da fraternidade (FONSECA, 2019).
A fraternidade, já reconhecida em diversas cartas constitucionais no mundo ocidental, em especial o reconhecimento no preâmbulo da Constituição Federal brasileira de 1988, toma um papel central nas discussões políticas e jurídicas que buscam amenizar as desigualdades e transportar a alteridade para um âmbito institucional. É, nesse contexto, que entram os movimentos sociais de luta por direitos, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e o Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras por Direitos (MTD), que estabelecem como meta, além da luta por reconhecimento de direitos fundamentais, a construção de uma sociedade fraterna. É nítida a intenção desses movimentos de transpor, no contexto brasileiro, o elemento da fraternidade nas discussões políticas, institucionais e não-institucionais, visando solucionar problemas estruturais gerados pela utilização limitada da principiologia da igualdade e fraternidade, como a desigualdade social e de renda, a discriminação de etnia e gênero, a exploração do trabalhador urbano (MST, 2023).
2 FRATERNIDADE COMO CATEGORIA POLÍTICA E JURÍDICA
Antes de aprofundar na luta dos movimentos sociais, é preciso entender a configuração do princípio da fraternidade, em seu âmbito político e também jurídico, e como esse se diferencia dos outros dois princípios irmãos. É fato que o ideal fraterno possui origem na teologia cristã, sendo representado, em passagens bíblicas, na concepção de amor ao próximo num aspecto universal. A ideia é fundada no reconhecimento comum da filiação de dos seres humanos como filhos de um único pai, entendo a universalidade de um amor fraterno que perpassa barreiras nacionais, para o reconhecimento de uma alteridade do indivíduo com a própria comunidade – e eventualmente a própria comunidade global. (MACHADO, 2017). Com a troca da teologia pelo aspecto racional da política estatal, surge-se a necessidade de entender a fraternidade sob uma base de reconhecimento mútuo de cidadãos sob uma mesma ordem constitucional, mantendo o aspecto da alteridade porém racionalizando sua expressão através da institucionalização política do princípio.
Para o reconhecimento de tal ideal como categoria política, todavia, é necessário compreender a sua existência com valor constitucional, dado que, no ordenamento brasileiro, é a Constituição que age como representação do estatuto jurídico-político com finalidade a limitação do poder estatal e promoção dos direitos fundamentais. O Brasil coloca, em seu preâmbulo constitucional, que o Estado Democrático brasileiro foi constituído com finalidade de “a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna” (BRASIL, 2016). Ainda que o preâmbulo não tenha sido adotado com força normativa, em força de controle de constitucionalidade concentrado do Supremo Tribunal Federal, o próprio STF já admitiu que o preâmbulo deve ser considerado como vetor interpretativo, no sentido de guiar a efetivação das diretrizes constitucionais, de maneira a considerar a fraternidade como objetivo a ser alcançado e princípio a ser zelado, como coloca a Ministra Cármen Lúcia, no julgamento de ADI 2.649:
“E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, escola José Afonso da Silva que “O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’, tem, no contexto, função de garantia dogmático-constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico” (…). Na esteira destes valores supremos explicitados no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 é que se afirma, nas normas constitucionais vigentes, o princípio jurídico da solidariedade.” (BRASIL, 2008).
É nítida, então, a sua expressão constitucional como princípio, tanto político como jurídico. No ambiente democrático, a fraternidade expande sua relevância e utilidade para além do mero aspecto institucional, tornando-se um recurso de estímulo a solução pacífica de controvérsias, orientação também contida no preâmbulo constitucional. Torna-se, nas palavras do professor Reynaldo, “uma charneira em um debate racional e compartilhável no interior do espaço público de uma comunidade em sede de um discurso comum dotado de moralidade”. (FONSECA, 2019).
Ademais, o ideal fraterno não excludente de seus pares, a liberdade e igualdade. Na realidade, na origem francesa, a fraternidade era papel fundamental na articulação político-filosófica dos dois conceitos, representando, além dos direito desenvolvidos a partir da efetivação de uma igualdade material, a possibilidade de aplicação o desses princípios numa dimensão interpretativa nova, de alteridade e respeito mútuo pelo reconhecimento das individualidades plurais, que compõem de uma comunidade fraterna. Ainda assim, o ideal fraterno se torna, principiologicamente, diferente da liberdade e igualdade na medida em que parte desse reconhecimento recíproco de valores plurais de indivíduos modernos. Tal reconhecimento necessita para sua existência termos iguais de compreensão mútua e de racionalização, visando, dessa forma, a possibilidade da fraternidade como um marco de integração social e resolução de disputas no mundo de individualidade atomizada. (FONSECA, 2019). Para o debate político, institucional ou popular, o reconhecimento fraterno torna-se uma ferramenta extremamente útil, revelando a possibilidade de comunhão social em uma sociedade altamente plural, bem como a afirmação de um comum objetivo a se alcançar: a sociedade fraterna.
No aspecto jurídico, ressalta-se a utilização da mediação e conciliação como instrumentos da expressão do valor constitucional da fraternidade. Já aplicados de maneira ampla e intensa no âmbito do judiciário brasileiro, os dois métodos permitem que a haja, antes mesmo da disputa via meios jurisdicionais, o reconhecimento mútuo e paritário dos indivíduos do processo, habilitando uma resolução consensual que chega próxima do intuito previsto pelo legislador constituinte originário. No mais, a categoria política se estende além dos supramencionados métodos, configurando, na realidade, um princípio constitucional, passível de ponderação constitucional com outros princípios que iluminam o ordenamento brasileiro. Desse modo, a construção histórica jurídica ocidental estaria incompleta se a ideia de fraternidade não configurasse parte do ordenamento, dada a sua presença histórica, validade constitucional e relevância na apaziguação social. Vale questionar, então, a posição e a orientação dos movimentos sociais populares frente à fraternidade.
3 MOVIMENTOS SOCIAIS E A FRATERNIDADE
A atuação dos movimentos sociais, de maneira geral, não é resumida a sua ação fraternal, nem a sua orientação exclusiva pela construção de uma sociedade fraternal. Entende-se que, usualmente, os participantes dos movimentos entendem o conflito, direto ou indireto, com o próprio Estado ou com parcelas detentoras de capital da sociedade, como essencial para adquirir justiça social. A fraternidade, todavia, ainda pertence ao escopo de atuação desses movimentos, estando presente como objetivo final e meio de resolução interna dos movimentos. A exemplo, é nítido, nos documentos que orientam a ação política do MST, a intenção fraternal do movimento, colocando como uns de seus objetivos principais: “Lutar por uma sociedade mais justa e fraterna.” (MST, 2023). Culmina, então, uma situação bi-fásica dos movimentos sociais, que lutam para garantir direitos, como reforma agrária, fim das desigualdades e fim de todo tipo de discriminação, bem como, a partir dessa sociadade altamente falha, que possui todos os problemas conceituais e materiais citados, criar uma sociedade fraternal, na presença de indivíduos que reconhecem um ao outro como membros de uma comunidade plural.
Não apenas como objetivo, mas também como instrumento, a fraternidade apresenta um leque de possibilidades para resolução interna e representação externa do movimento. Na sua representação externa, um evento a ser citado, voltando ao exemplo do MST, é o auxílio fornecido pelo movimento a Campanha da Fraternidade, realizada a cada cinco anos pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Nesse caso, o MST se aliou a um movimento social da Igreja Católica a fim de debater o tema de convivência pacífica e reconstrução da paz social (MST, 2021). A própria atitude de união dessas instituições representa um método contido no ideal fraternal. Curiosamente, nesse debate realizado na Campanha da Fraternidade de 2021, existe um implícito confronto entre a fraternidade em sua origem cristã, fundada na irmandade dos filhos de Deus, e a fraternidade de origem moderna, balizada no reconhecimento mútuo de cidadãos de direitos iguais. Nesse sentido, movimentos sociais sempre procuraram, e continuam procurando, debater e aprofundar o tão esquecido tema da fraternidade, de forma a possibilitar ação conjunta com o fim de chegar na desejada sociedade solidária.
A diferença do movimento social está exatamente no método para adquirir esse objetivo: a luta constante na rua com trabalhadores e minorias. Apesar de parecer paradoxal, o princípio não se contradiz com a luta direta, uma vez que, seus princípios irmãos, a igualdade e liberdade, também foram e são reconhecidos a partir da luta, muitas vezes violenta. Logo, a ideia de fraternidade não significa a ausência de luta, e sim a alteridade dos indivíduos como iguais e livres, passíveis de respeito fraterno e solidário entre si. A própria origem do princípio vêm diretamente da luta desses movimentos na Assembleia Constituinte Brasileira, que estiveram presentes na maioria do processo legislativo constitucional. Destaca-se que tal atuação na Assembleia foi primordial para fundamentar a própria legitimidade da luta dos movimentos sociais, que poderiam indicar a construção de um Brasil fraterno como objetivo explícito na Constituição:
“Pode-se afirmar que os dois anos de funcionamento da Constituinte representaram um período singular de debate político caracterizado pela abertura às instâncias sociais; a publicidade mediante o acompanhamento midiático e social; e profundo pela riqueza de argumentos, matizes ideológicas e movimentos sociais civicamente engajados no processo de elaboração do texto da CR/88[…] Conclui-se que foram justamente as contradições da Constituição que permitiram sua legitimidade e vitalidade na medida em que diferentes grupos e movimentos buscam a fundamentação de suas ações e objetivos políticos no texto constitucional” (FONSECA, 2019).
A partir dessa reflexão, é compreensível como o princípio aqui discutido faz parte da criação dos movimentos sociais e, simultaneamente, é criado e realizado pelos próprios movimentos. É possível, então, conectar diretamente a atuação de movimentos sociais com a completude do ideal, de maneira que seria difícil pensar o princípio fraterno, no Brasil, sem destacar a presença de organizações como o MST, MTD, MSTS, Marcha das Margaridas (CONTAG), Movimento Negro, Movimento Estudantil e tantos outros.
4 CONCLUSÃO
Em suma, o princípio fraternal, esquecido rapidamente após a sua formulação moderna na Revolução Francesa em 1789, é renovado como categoria política e jurídica com a ascensão de um Estado Democratico de Direito nas sociedades modernas ocidentais. Em especial, no Brasil a categoria é reconhecida como princípio de interpretação constitucional e objetivo do legislador constituinte a ser alcançado como sociedade brasileira. No âmbito jurídico, representa uma ferramenta, na mediação e conciliação, é um método interpretativo do ordenamento pátrio. Como categoria política, é fundamental ao debate institucional e não institucional, tornando-se elemento supressor da carência conceitual e material gerada pelo binômio exclusivo da liberdade e igualdade.
Em relação aos movimentos sociais, é difícil dissociar a luta dessas organizações do objetivo de construção de uma sociedade fraterna, de maneira que a própria fraternidade fornece direção e se origina dos movimentos, num retroreferenciamento conceitual do movimento com o próprio princípio. De modo geral, os movimentos estão sempre agindo, no ambiente interno e externo, de modo a discutir e aprofundar o ideal fraternal, seja debatendo com a própria igreja, detentora da origem cristã da fraternidade, ou através da luta por reconhecimentos de direitos, que, gradualmente, estruturam um ambiente fraterno entre os mais diversos setores da sociedade brasileira.
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*Matheus Zchrotke da Silva: Graduando em Direito pela Universidade de Brasília. Membro do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) e membro do projeto de extensão Hermenêutica (Sociedade de Debates da UnB) ambos da Faculdade de Direito da UnB. Ex-Assessor de Negócios na AdvocattA, Empresa Júnior de Direito na UnB. Ex-membro do Conselho de Representantes da Faculdade de Direito durante 2021 e 2022. Ex-membro voluntário do Projeto Tutouros, projeto de tutoria voluntária gratuita para alunos do Ensino Fundamental da rede pública do DF.
Referências:
ALCÂNTARA, Fernanda. Campanha da Fraternidade 2021: um compromisso de amor. [S. l.]: MST, 24 fev. 2021. Disponível em: https://mst.org.br/2021/02/24/campanha-da-fraternidade-2021-um-compromisso-de-amor/. Acesso em: 7 out. 2023.
BAGGIO, Antonio Maria (org.). O Princípio Esquecido: exigências, recursos e definições da fraternidade na política. v. 2. São Paulo: Cidade Nova, 2009, p. 11 e ss.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2016. 496 p. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em: 24 maio 2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.649, voto da rel. min. Cármen Lúcia. 2008. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/constituicao-supremo/artigo.asp?item=2
FONSECA, Reynaldo Soares da. O Princípio Constitucional da Fraternidade:Seu Resgate no Sistema de Justiça. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019. 224 p.
MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. A Fraternidade como Categoria Jurídica: fundamentos e alcance (expressão do constitucionalismo fraternal). Curitiba: Appris, 2017, p. 41.
PINTO, Marcos Barbosa. Constituição e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, pp. 79-85.
REDAÇÃO MST. OBJETIVOS. [S. l.]: MST, 2023. Disponível em: https://mst.org.br/objetivos/. Acesso em: 7 out. 2023.