História e estabilidade constitucional na Alemanha: lições para o Brasil

Por: Leonardo Muhammad

 

Não há dúvidas de que a Alemanha tem uma das democracias mais sólidas e universalmente reconhecidas da contemporaneidade. Na visão de Bruce Ackerman, essa consistência e confiabilidade da democracia alemã tem lastro no processo histórico-constitucional imediatamente seguinte à II Guerra Mundial. Para o autor, embora houvesse razoáveis chances da inicialmente transitória Lei Fundamental de Bonn ser vista como símbolo de vergonha nacional após a derrota nacional-socialista, o modelo de democracia constitucional adotado conseguiu vencer justamente porque representava, por influência das elites alemãs, ruptura com o passado nazista, influência essa que somente foi capaz de existir por conta da prosperidade econômica que sublinhou o período alemão probatório, aumentando, pois, o respaldo popular ao novo regime, sobretudo diante do passado recente de inflação estratosférica e estagnação. O sucesso da democracia alemã conseguiu também sobreviver após a reunificação da Alemanha, de sorte que a acessão da República Democrática da Alemanha à República Federativa da A lemanha configurou transição suave em razão das circunstâncias econômicas, políticas e jurídicas favoráveis – o que inclui a previsão de mecanismos institucionais de participação popular -, apesar de que a preterição do sistema oriental na determinação das regras do jogo tenha de certa forma, produzido nas regiões da Alemanha Oriental um senso de marginalização e de colonização.

Assim, em que pese as recentes ondas de autocratização e de regresso constitucional na América Latina e na Europa Oriental, não é razoável verificá-las na conjuntura político-jurídica atual da Alemanha, pelo menos não conforme os conceitos de Ginsburg e Huq. No texto How to Lose a Constitutional Democracy, os autores descrevem o retrocesso democrático em dois movimentos distintos, com base na diferença do ritmo das mudanças constitucionais: i) authoritarian reversion, que seria uma rápida e efetiva ruptura com a democracia e o Estado de Direito e suas instituições, embora com altos custos transacionais; ii) constitutional retrogression, que constitui uma série gradativa de alterações erosivas nas regras do jogo relativas a três pontos focais – competitividade e qualidade das eleições, abrangência e eficácia dos direitos à liberdade de expressão e de associação, e, por fim, manutenção do rule of law (Estado de Direito). Conforme dito por Przeworski, é seguro assumir que são quase nulas as chances da ocorrência de authoritarian reversion na Alemanha, que, dada a sua situação econômica mais que afluente, cria demasiado ônus para que se concretize a reversão total das instituições já bem instaladas no país. Portanto, a presente reflexão tem seu escopo mais refinado, atentando-se somente às constitutional retrogressions, que usam de cinco estratégias possíveis para alcançar seus objetivos: i) emendas constitucionais; ii) distorção e manipulação do debate na esfera pública; iii) eliminação e constrangimento de adversários políticos; iv) retirada de limitações às atuações das instituições (institutional checks), abrindo margem para discricionariedade e não prestação de contas; v) centralização da ação política no Executivo. 

Quanto ao primeiro ponto, muito bem pontua Glaessner. Embora a Alemanha já tenha promulgado mais de 60 emendas constitucionais, a maior parte tem natureza essencialmente técnica, tendo por alvo o aperfeiçoamento das arestas do ordenamento jurídico, não havendo muito intuito quanto a modificações no design do Estado e do Governo, ou quanto aos direitos fundamentais. São raras as alterações mais profundas do texto constitucional: as então novas regulações da estrutura das Forças Armadas, da Emenda Constitucional de 1956; as leis emergenciais de 1968 e o estabelecimento de restrições ao direito de asilo para refugiados políticos em 1993, que, por sinal, foi submetida à apreciação de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional Federal, que acabou por ratificar sua legitimidade. 

Entretanto, aludindo à ideia de Ginsburg e Melton sobre cultura de emendas constitucionais, que abrange a taxa de ocorrência tanto de emendas constitucionais formais quanto de alterações interpretativas da constituição pela Corte Constitucional, é, sim, possível afirmar que a Alemanha é um país de cultura moderada de emendas constitucionais, pertencendo à categoria de países que redirecionam a maior parte dessas modificações aos meios informais de mudança, sobretudo, ao Tribunal de cúpula, que, estando vinculado, no direito alemão, pelo princípio da inafastabilidade, satisfaz o interesse político-legislativo de fugir dos custos inerentes ao processo formal de emenda em democracias afluentes e estáveis tal qual a alemã. Ademais, a explicação para o fenômeno alemão de mutação constitucional relaciona-se à centralidade e relativa imprecisão do princípio da dignidade da pessoa humana, considerado pétreo e “pré-constitucional”, o que atrai a intervenção judicial em temas controversos, como nas decisões sobre prisão perpétua (45 BVerfGE 187), aborto (39 BVerfGE 1) e até mesmo sobre os limites do combate ao terrorismo (115 BVerfGE 118). Em diversas decisões, a Corte reafirmou o lugar de destaque desse princípio dentro do sistema constitucional alemão (54 BVerfGE 148), fruto do aprendizado proveniente da experiência histórica da Constituição de Weimar, cuja negligência acerca do valor fundamental da vida e da dignidade humana possibilitou o surgimento de regime nazista. 

Já no que se refere às regras de emenda formal, a arquitetura reproduz o standard constitucional: aprovação qualificada por ⅔ de cada uma das casas legislativas (Bundestag e Bundesrat), não sendo possível a emenda a cláusulas e princípios considerados imutáveis, presentes nos Artigos 1 e 20 da Lei Fundamental, que tratam do princípio da dignidade da pessoa humana, da forma federativa de Estado e republicana de Governo, o regime democrático, Estado de Direito e separação tripartida dos Poderes. Logo, o Tribunal Constitucional Federal alemão apenas pode exercer o judicial review das emendas constitucionais formais à medida em que estas violem as cláusulas “pré-constitucionais” supracitadas, todavia lhe assista o controle de constitucionalidade abstrato de quaisquer atos do Poder Executivo e das leis aprovadas pelo Parlamento federal ou estadual, assim como julgar as causas envolvendo disputas entre Governos municipais e estaduais quanto ao direito a autogoverno.

Seguindo, também não há de se falar em distorção e manipulação do debate na esfera pública ou eliminação e constrangimento de adversários políticos. Com efeito, a liberdade de expressão, por exemplo, tem respaldo em farta jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal, tendo como leading case a sentença no famoso caso Lüth (198 BVerfGE 7). Outros direitos civis, como o direito à manifestação pública (69 BVerfGE 315) e liberdade de associação (1 BvR 1474) também são historicamente prestigiados e protegidos pela Corte Constitucional, que os consideram intrinsecamente relacionados à dignidade humana e, portanto, extremamente caros ao ordenamento jurídico alemão. Na mesma medida, também não se encontra fundamento para constatar a eliminação de adversários políticos na Alemanha, que, embora seja essencialmente governada por coalizões, ainda preserva alternância de poder em razão da dificuldade em manter consistentemente a maioria no parlamento diante da volatilidade do eleitorado.

Por derradeiro, quanto ao quarto e quinto pontos – retirada de limitações às atuações das instituições; centralização da ação política no Executivo -, importa fazer um balanço do design constitucional, por meio da teoria dos jogos e da escolha racional, a fim de extrair conclusões mais assertivas sobre o equilíbrio político-jurídico do país. Nessa linha, são duas as principais referências na aferição do design constitucional: i) a tese federalista de Madison de que a segurança contra a concentração de poder reside em dar a cada uma das instituições meios constitucionais e motivacionais para frear tentativas autocráticas – usando a ambição para combater a ambição, e associando os interesses pessoais à manutenção do sistema constitucional -; ii) a tese de Barry Weingast de que deve estar contida nos interesses dos political officials o respeito às self-enforcing regras democráticas, as quais dependem da criação de estímulos para que os cidadãos e as instituições possam reagir a eventuais exageros de outras instituições de Estado e de Governo, de maneira que o custo da omissão deve ser maior do que o custo da devida reação. 

No caso específico da Alemanha, o federalismo consegue fornecer ferramentas efetivas e pouco onerosas de contrabalanço à atuação central do Chanceler (Bundeskanzler) – chefe do governo federal -, por meio da autogoverno dos Estados (Länder) e do poder legislativo federal, geralmente oposicionista do Bundesrat – casa legislativa semelhante ao Senado Federal brasileiro, com representantes dos interesses dos Estados. Consoante a isso, dentro da própria esfera federal, há incentivos para manutenção do status quo, como, por exemplo, o fato do Bundestag – principal casa do parlamento, que representa a população alemã, semelhante à Câmara dos Deputados brasileira – eleger o Chanceler, sem necessidade de aval monocrático do Presidente – Chefe de Estado eleito indiretamente e com poderes meramente representativos -, apenas podendo retirar do cargo o chefe de governo (vote of no confidence) se, simultaneamente, conseguir formar maioria para escolher um substituto, o que diminui a instabilidade e a descontinuidade no Executivo. 

Adicionalmente, o Chanceler, em tese, escolhe seus ministros e os indica para nomeação pelo Presidente. Entretanto, dado que a permanência do Bundeskanzler está condicionada às vontades da respectiva coalizão, os ministros são de facto escolhidos pelo parlamento, de maneira que há pouco espaço para discricionariedade do chefe de governo nesse âmbito – ao contrário do que acontece no modelo presidencialista, cujo chefe tem maior autonomia. O sistema eleitoral para o Bundestag também procura minimizar as chances de surgimento de partidos extremistas minoritários e facções, já que mais da metade desta casa do parlamento é eleita por voto proporcional e há cláusula de barreira de 5% dos votos proporcionais para que os partidos possam ter representantes na Câmara inferior. 

Isso sem contar que o Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht), mediante provocação, tem o poder de declarar a inconstitucionalidade de grupos e partidos que venham a ameaçar a existência do regime democrático e/ou a forma republicana federalista, conforme redação do Artigo 21 da Lei Fundamental. É igualmente importante ressaltar que o Judiciário alemão, segundo avaliação do Project Constitute da University of Texas, tem altíssimo grau de independência, e seus membros, após o período probatório, são revestidos de garantias como irredutibilidade salarial, inamovibilidade absolutamente irrevogável, e vitaliciedade, desvinculando os juízes de potenciais amarras políticas prejudiciais à consistência de suas decisões. 

É defendido, portanto, sustentar que a Alemanha, diante dos vários obstáculos mencionados, bem como diversidade de recursos aptos a serem utilizados pela oposição a eventuais ondas antidemocráticas, é um país política e constitucionalmente estável e que, nos termos propostos por Ginsburg e Huq, não há como aduzir a existência de constitutional retrogressions relevantes. 

Toda essa discussão, embora gire em torno de um país europeu, é de grande valia para o contexto brasileiro, que sofre com o problema dos trade-offs entre consolidação democrática e distribuição de prosperidade econômica. O Brasil tem histórico de fortalecimento de regimes presidencialistas, com centralização no Poder Executivo e consequente enfraquecimento dos outros Poderes, sob a crença de que, reunindo no Presidente a chefia de Governo e de Estado, com prerrogativas discricionárias adicionais e pouca prestação de contas, facilita-se o emprego de recursos públicos em políticas voltadas à redistribuição de riqueza, que é uma necessidade latente nas sociedades latinoamericanas. De certa maneira, esse trade-off também foi uma questão enfrentada pela Alemanha Ocidental pós II Guerra Mundial, que passava por um cenário de desabastecimento, alta inflação e crise econômica, ao mesmo tempo que sua estrutura estatal e administrativa havia sido completamente desmoronada pela invasão aliada. No entanto, o país alemão, por influência das elites locais e dos países aliados ocidentais, decidiu optar por um sistema constitucional bastante estável e equilibrado, mas rejeitou a premissa de que o bem-estar social deve necessariamente estar acompanhado de figuras carismáticas à frente de um Executivo artificialmente fortalecido, que foi exatamente o que aconteceu durante regime nazista. Ao contrário, decidiu romper com o modelo antecedente autoritário e confiou a um design constitucional equilibrado e a instituições democráticas, com destaque ao parlamentarismo, o dever de construir o Sozialstaat (Estado de Bem-estar Social), com respeito à dignidade da pessoa humana. Assim, ao meu ver, a grande lição para o Brasil é perceber o erro em inverter a ordem natural de desenvolvimento do sistema constitucional, privilegiando direitos sociais, antes da solidificação de direitos civis e de um modelo de governo e de Estado sustentável. Essa lição é especialmente cara ao país brasileiro, que, historicamente, sempre teve um Poder Executivo exacerbado, tal como foi no Governo Vargas, no Regime Militar. A prerrogativa de edição de Medidas Provisórias com poucas restrições, escolha unilateral de ministros de Estado, misturando a chefia de governo com a chefia de Estado, entre tantos outros exemplos, tendem a gerar desequilíbrios constitucionais e dificultar a consolidação das instituições democráticas, justamente por conferir grandes poderes a líderes demagógicos, como acontece até hoje.

Leonardo Muhammad é graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro da Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília (RED/UnB).

Referências bibliográficas:

ACKERMAN, Bruce. Ascensão do Constitucionalismo Mundial. In: SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Carlos Pereira de (Orgs.). Constitucionalização do Direito Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. [s.l.]: Lumen Juris, 2006, p. 89–111 

HUQ, Aziz; GINSBURG, Tom. How to Lose a Constitutional Democracy, UCLA Law Review, Vol. 65, 2018. 

PRZEWORSKI, Adam . Crises of Democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.

GLAESSNER, Gert-Joachim. German Democracy: From Post-World War II to the Present Day. Oxford: Berg, 2005, p. 41.

GINSBURG, Tom; MELTON, James. Does the constitutional amendment rule matter at all? Amendment cultures and the challenges of measuring amendment difficulty. International Journal of Constitutional Law, Vol. 13, 2015, p. 686–713.

HIRSCHL, Ran. O Novo Constitucionalismo e a Judicialização da Política no Mundo. Revista de Direito Administrativo, 2010, p. 173.

MADISON, James. O Federalista nº 51. In: Filosofia política. no. 2. ; JAY, John. O federalista. Trad. Heitor Almeida Herrera. Brasília: Universidade de Brasília, 1984, p. 417-421.

WEINGAST, Barry R. Designing Constitutional Stability. In: Congleton, Roger D., and Swedenborg, Birgitta. Democratic Constitutional Design and Public Policy: Analysis and Evidence. Cambridge, US: MIT Press, 2014 

 

 

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