Por: Nara Menezes e Paula Baqueiro
A tradição jurídica brasileira foi fundada em bases elitistas e conservadoras que se esforçaram para – e conseguiram – fazer do direito um local de acesso restrito e privilegiado. Nele, transitariam apenas homens engravatados, de famílias poderosas, forjados em uma formação acadêmica exclusiva e excludente. Sob o pretexto de fundamentar uma ciência pura e neutra[1], a tradição jurídica confinou o direito nos textos legais e dogmáticos, que seriam os únicos interlocutores desse grupo seleto, a quem caberia fazer, interpretar e dizer o direito.
Em uma linguagem não apenas técnica, mas extremamente complexa e pouco compreensível, a tradição jurídica buscou reforçar a ideia de que o direito é feito pelos poucos e para os poucos que dominam o seu código, criando mais uma barreira ao diálogo[2] que deveria ser estabelecido com a realidade social que movimenta o exercício do direito.
Por consequência, ao ensino jurídico restou apenas o aspecto técnico-jurídico, voltado a compreender o direito como conformador e controlador da realidade, a quem cumpre reduzir e traduzir a complexidade da vida à letra fria da lei: “a dor das prisões é reduzida ao ‘processo de execução’, a dor do parente perdido é apenas o ‘de cujus’, e assim prossegue o processo”[3].
Ao aprender a conversar apenas com os textos, por meio de uma linguagem tecnicista e obscura, falta ao jurista a habilidade de dialogar e compreender as pessoas que estão fora do seu grupo seleto e lhe apresentam a complexidade dos problemas reais e concretos que escapam aos textos. A separação entre o que se ensina/aprende e o que se vivencia, como apontam Costa, Fonseca e Nardi, resulta na formação de profissionais poucos sensíveis aos problemas sociais[4].
Ensimesmados, os juristas se recolhem ao “Monte Olimpo”[5], distantes e intocáveis, para de lá observar e tentar apreender a realidade sobre a qual devem intervir, sem desenvolver a sensibilidade de descer à rua para encontrar o direito de frente, sendo criado e recriado pelos grupos e movimentos que reivindicam um direito que reflita suas demandas por emancipação e justiça social.
Insatisfeitas e inquietas diante desse contexto, na ambição de pensar e fazer o jurídico com a mediação do sensível e da solidariedade, estudantes de Direito da Universidade de Brasília reivindicaram uma outra forma de inserção das estudantes-mulheres no contexto pedagógico emancipatório e deram início à experiência das Promotoras Legais Populares (PLPs) como projeto de extensão popular universitária.
Por meio da extensão, seria possível romper com a clausura do ensino jurídico e fornecer novos sentidos ao direito, para além daqueles determinados pelos textos legais e dogmáticos. Era necessário criar brechas por entre as formas hegemônicas de produção e disseminação do conhecimento, a fim de dar vazão ao direito que emanava não dos bancos acadêmicos, mas da experiência social, viva e concreta que a comunidade criava para si própria.
Mas, afinal, o que são as Promotoras Legais Populares? No início da década de 1990, com o contexto de redemocratização brasileira, grupos organizados de mulheres buscavam maneiras de enxergar na prática como o marco da Constituição Federal de 1988 poderia ser utilizado para a garantia dos direitos humanos das mulheres. Nesse contexto, a ONG Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero e a União de Mulheres de São Paulo criaram os primeiros cursos de formação de Promotoras Legais Populares, inspiradas pelas experiências das Paralegais, de outros países da América Latina[6]. Os projetos foram criados e direcionados a um público de mulheres diversas, como mecanismo de ação afirmativa, para romper com a lógica elitista que restringe aos profissionais da área jurídica o acesso a um conhecimento que deveria estar disponível a toda a população.
Hoje, existem projetos de PLPs atuantes de forma independente em diversos estados brasileiros, voltados à formação e capacitação de mulheres em direitos humanos, direitos das mulheres, e a centralidade de gênero, raça e classe. Em 2005, esta experiência foi replicada pela primeira vez no Distrito Federal no formato de projeto de extensão, passou a ser realizada no Núcleo de Práticas Jurídicas da UnB, na Ceilândia, e eventualmente em outras regiões administrativas do DF e Entorno. Desde então, os cursos acontecem anualmente, com a duração de 8 meses, com oficinas aos sábados, alinhadas a uma proposta de educação popular inspirada em Paulo Freire e bell hooks.
A partir desses dois referenciais, para nós, a educação é compreendida enquanto prática de liberdade[7], um espaço horizontal e recíproco de saberes, em que o conhecimento é construído coletivamente a partir das trocas realizadas por todas as envolvidas no processo. A experiência, tanto quanto a teoria, é valorizada no processo educacional enquanto fonte legítima de conhecimento. Não há supremacia de uma sobre a outra, ambas são valiosas e se constroem de forma dialógica[8].
A partir desses parâmetros, o conhecimento não pode servir de terreno para a reprodução e perpetuação das hierarquias sociais, tão presentes no universo jurídico tradicional, desde as altas cortes do país até as salas das Faculdades povoadas por sobrenomes que remetem às famílias das elites brasileiras. Ele é, pelo contrário, um instrumento potente de transformação social, de luta por condições de vida dignas para toda a população; é ainda uma ferramenta “que nos possibilita viver livremente e por completo”[9].
Não queremos dizer, com isso, que as relações mantidas nos cursos de Promotoras Legais Populares se dão em uma bolha isolada das desigualdades e estruturas hierárquicas, seja entre cursistas, entre a equipe de facilitação, ou entre cursistas e facilitadoras. Reconhecemos que, muitas vezes, há uma reprodução dos sistemas de opressão étnico-racial, de classe, orientação sexual, etária, entre outras categorias que demarcam diferentes formas de experienciar o gênero. Cabe à equipe de facilitação estar atenta a essas práticas opressoras e identificar os momentos em que é necessário que haja algum tipo de intervenção ou pontuação pedagógica. Mas, por vezes, essas intervenções partem das próprias cursistas, reforçando a horizontalidade do processo de educação popular feminista.
O projeto de extensão de PLPs conforma, então, um espaço político de formação e transformação social, em que os direitos são discutidos, interpretados e reivindicados enquanto instrumento que interfere diretamente na vida das mulheres.[10] Não é a frieza das leis e códigos que determina o que é o direito, mas, sim, as nossas realidades e as demandas que nos atravessam.
Abre-se, portanto, a possibilidade de que as juristas confrontem o saber técnico-científico da universidade com as práticas sociais emancipatórias da comunidade, a fim de transformar o conhecimento jurídico por meio do diálogo com mulheres que vivenciam e produzem o direito a partir das suas realidades, em um processo de construção social da cidadania. Assim, as Promotoras Legais Populares, fundadas na teoria do Direito Achado na Rua, reconhecem as mulheres como “sujeitos de produção de Direito, numa postura ativa perante o Estado e crítica perante a legalidade instituída por este ente, de modo a serem capazes de pensar normas e políticas públicas que sirvam a libertação das mulheres de toda a forma de violência e opressão”[11].
A extensão popular feminista desenvolvida pelas PLPs desafia, portanto, a forma tradicional de se ensinar e praticar o direito, na medida em que expande os horizontes de compreensão e atuação das juristas, que aprenderão a dialogar não apenas com os textos, mas com as demandas concretas de mulheres que lutam por um direito capaz de refletir suas demandas por uma sociedade mais justa e igualitária.
Neste sentido, a experiência da extensão popular feminista é uma possibilidade formativa para a carreira jurídica, que aproxima as estudantes de experiências diversas sobre o ser mulher e abre uma nova ótica de vivência e aplicação do direito distinta daquela aprendida nas salas de aula. Mais do que um instrumental teórico alheio ao mundo real, juristas devem estar abertas a compreender de que formas o aparato jurídico pode ser posto a serviço da efetivação da dignidade humana não só de mulheres, mas de todos os grupos sociais.
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Nara Menezes é graduada em Comunicação e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília e participa das Promotoras Legais Populares do Distrito Federal e Entorno desde 2018. E-mail: naramenezessantos@gmail.com
Paula Baqueiro é graduada e mestranda em Direito pela Universidade de Brasília e participa das Promotoras Legais Populares do Distrito Federal e Entorno desde 2014. E-mail: paulabaqueiro@gmail.com.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
[1] “Essa insistência em não se perceberem como marcados, em discutir como as identidades foram forjadas no seio de sociedades coloniais, faz com que pessoas brancas, por exemplo, ainda insistam no argumento de que somente elas pensam na coletividade; que pessoas negras, ao reivindicarem suas existências e modos de fazer políticos e intelectuais, sejam vistas como separatistas ou pensando somente nelas mesmas. Ao persistirem na ideia de que são universais e falam por todos, insistem em falar pelos outros, quando na verdade estão falando de si, ao se julgarem universais”. In: RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017, p. 31.
[2] “A linguagem, a depender da forma como é utilizada, pode ser uma barreira ao entendimento e criar mais espaços de poder em vez de compartilhamento, além de ser um – entre tantos outros – impeditivo para uma educação transgressora”. RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017, p. 26.
[3] TOKARSKI, Carolina Pereira. Com quem dialogam os bacharéis em direito da Universidade de Brasília?: a experiência da extensão jurídica popular no aprendizado da democracia. 2009. 140 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2009, p. 23.
[4] FONSECA, Livia Gimenes Dias da; COSTA, Renata Cristina de Faria Gonçalves; NARDI, Diego Nepomuceno. Extensão Popular Feminista por uma Universidade Democrática e Emancipatória. Revista Direito e Práxis, [S.l.], v. 6, n. 1, p. 143-171, mar. 2015.
[5] A Faculdade de Direito da Universidade de Brasília foi apelidada de “Monte Olimpo”, em referência à montanha na qual os deuses gregos mitológicos teriam morada, alta e distante dos assuntos terrenos e dos mortais.
[6]APOSTOLOVA, Bistra; FONSECA, Lívia Gimenes Dias da; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (orgs.). O direito achado na rua: introdução crítica ao direito das mulheres. 2. ed. vol. 5. Brasília: Fundação Universidade de Brasília, 2015.
[7] HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
[8] “A educação feminista – a sala de aula feminista – é e deveria ser um lugar onde há senso de luta, onde há um reconhecimento visível da união entre teoria e prática, onde trabalhamos juntos como professores e alunos para superar o distanciamento e a alienação que tanto têm se tornado a norma na universidade contemporânea. A pedagogia feminista deveria, sobretudo, envolver os estudantes em um processo de aprendizado que fizesse o mundo ‘mais real’ e não ‘menos real’”. In: hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante, 2019, p. 117.
[9] HOOKS, Bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante, 2019, p. 157.
[10] “Ao exercer a educação como prática de liberdade, as Promotoras Legais Populares atuam tanto como uma rede de mulheres que se reúne para criar mecanismos de disputa institucional por direitos fundamentais quanto como uma rede que, ao desconstruir padrões patriarcais de educação e de relações, é o próprio mecanismo de garantia deles. Direito de saber de seus próprios direitos, de ter acesso à informação, ao bem-estar, à integridade física e psíquica, à igualdade, à dignidade humana”. In: NEVES, Isabela; ADEGAS, Heloísa. Promotoras Legais Populares: Rede de Mulheres como Garantidoras de Direitos frente ao Estado Patriarcal. Revista Dos Estudantes De Direito Da Universidade de Brasília, 2018, vol. 14, pp. 280-294.
[11] FONSECA, Livia Gimenes Dias da; COSTA, Renata Cristina de Faria Gonçalves; NARDI, Diego Nepomuceno. Extensão Popular Feminista por uma Universidade Democrática e Emancipatória. Revista Direito e Práxis, [S.l.], v. 6, n. 1, p. 143-171, mar. 2015.