A Realidade Constituinte Japonesa: Um Conflito Histórico

Por: Lucas Soriano

Analisar o paradigma constitucional japonês é, também, estudar a rica história que acoberta suas particularidades políticas. Seja pela longa tradição cultural ou pelo envolvimento em grandes acontecimentos históricos, o país, de forma constante, mostrou-se incluído: no cenário internacional; no jogo democrático; no espaço econômico; e na correlação de forças – por exemplo, é considerado a terceira nação mais rica do planeta, apesar de dificuldades geográficas. A profícua integração e influência global japonesa sempre esteve íntima com a evolução histórica do país que, tendo a progressão de eventos como motor, conduziu sua população ao moderno mundo atual. Entende-se, no entanto, que hodiernamente o Japão é refém dessa mesma história que o consagrou, principalmente, em âmbito constitucional e político. Pelo fato de estar tutelado por uma constituição de origem estrangeira, criada em 1946 para mitigar os efeitos da Segunda Guerra Mundial[1], o país tem sua identidade ferida e sua independência relativizada. O Estado japonês, inserido em um contexto de muito conflito histórico-social, acabou perdendo autonomia para grandes potências internacionais.

Entendida a relevância da problemática histórica, estudar o sistema de governo japonês e a constituição se torna muito interessante, ao passo que há forte preservação política cultural – com a figura do imperador – simultânea àinserção de estruturas tipicamente ocidentais, como um parlamento soberano e uma corte constitucional. Figura-se, então, um parlamentarismo monárquico em que o maior órgão, chamado de The Diet, é o Poder Legislativo. O Poder Executivo, reconhecido como The Gabinet, é o grupo mandante do parlamento, sendo titular da prática de administraçãodo Estado, da liderança do The Diet e chefiado por primeiro-ministro. Por fim, o Poder Judiciário, tendo seu órgãomáximo na Suprema Corte Japonesa, lembra muito o modelo estadounidense, ao se utilizar do dispositivo do rule-making power para tomar suas decisões; também funcionando como uma corte constitucional de típico constitucional review. Abordando o tópico dos direitos fundamentais, o debate citado anteriormente é ainda mais intrigante:imediatamente antes da bill of rights japonesa, tem-se o artigo 9 da Carta de 46, que positiva na lei constitucional a “renúncia de guerra”. Tal dispositivo, resumidamente, extingue a possibilidade da existência de qualquer força armada e gerência de bens bélicos por parte do Estado, vedando toda organização militar em sentido amplo. Sendo esse o primeiroartigo antes de uma longa cartilha de direitos, percebe-se uma clara primazia pelo temor de uma nova guerra, ulterior à concessão de direitos ao povo. 

Na discussão sobre a estabilidade democrática, tem-se no Japão a vigência de um modelo eficiente, ainda quenaturalmente antinacionalista. Poder-se-ia dizer que os fatores considerados no estudo de Ginsburg sobre o ContitutionalEndurance[2] são equilibrados e funcionais, embora seja possível arguir problemas, por exemplo no fator da Inclusão, devido ao processo constituinte censitário e estrangeiro e no fator da flexibilidade pela pouca atividade da corte constitucional. Não obstante, sendo o Japão um país atualmente estável em vários setores, como na economia e nos indicadores sociais, assusta que profundas crises políticas estejam acontecendo. Esse é o caso exposto pelo pesquisador japonês Tokujin Matsudaira, da Kanagawa University, que explicou o shift da constituição japonesa, de um modelo louvável, para um cenário de constitucionalismo abusivo. Observa-se que há proximidade entre as discussões jurídicas explicadas adiante e um profundo debate histórico, por exemplo, na construção da figura do Chefe de Estado.

O primeiro ministro japonês Shinzo Abe, utilizando-se de dispositivos da constituição, conseguiu perceber uma forma muito conveniente de ser autoritário, porém, aparentemente dentro dos ditames da lei. Acontece que o The Gabinet, em meio a investigações de corrupção e de escândalos por parte do The Diet, decidiu mover uma moção para dissolver o parlamento, que o inqueria, exatamente na data marcada para a assembleia ordinária que apuraria os fatos. O pedido de dissolução do The Diet vem da premissa originalista japonesa de que o executivo – compreendido no passado pela figura do imperador – poderia agir de boa-fé para cumprir seus deveres, mesmo que isso envolva obrigar o parlamento a conduzir novas eleições. No entanto, nunca haveria ocorrido no Japão o uso egoístico do dispositivo, sendo inédito no jogo democrático a reforma parlamentar por agenda pessoal do primeiro-ministro[3]. Nesse quadro caótico, um pesquisador mais atento se perguntaria qual é a posição da Suprema Corte Japonesa (SCJ) perante acontecimentos de tal relevância constitucional. Por se deparar com um impasse considerado majoritariamente político, a SCJ seguiu postura conservadora ao longo das décadas, tendo decidido nunca interferir no embate entre os The Gabinet e The Diet. Desse modo, a concepção que vigora até hoje é a solução do primeiro-ministro nacionalista Shingeru Yoshida (1952), que preservou o modelo pré-guerra imperial de dar ao executivo a discricionariedade para conduzir moção de dissolução do parlamento, independente de provocações de outro braço estatal. Pode-se perceber que a postura de Yoshida é claramente um conflito com a imposição do modelo estadounidense, que num primeiro momento impedia o primeiro-ministro de fazê-lo. Tanto a omissão constitucional no procedimento de dissolução da The Diet, quanto o embate político entre as visões de como prosseguir são motores da crise hermenêutica.

No Japão, o processo de alteração formal da constituição é por intermédio de emendas, que devem serapresentadas e aprovadas pela The Diet e pelo povo. Contudo, o processo nunca logrou em êxito, sendo a constituição japonesa um exemplo de carta intacta formalmente, preservando, assim, seu modelo original da 1946 até os dias atuais. No entanto, esse fato não impediu que fosse ela atualizada materialmente via corte constitucional e via negociação política. Em recente decisão, a SCJ concluiu que, pela existência do artigo 35 da constituição, a vigilância por GPS, em sentido amplo, é inconstitucional e, portanto, deveria ser limitada. Destarte, a atuação ativa da SCJ, mesmo que resumida em comparação a países com alta atividade de constituicional review, como o Brasil e a Rússia, mostra que a ausência de alterações formais não se mostrou como obstáculo à atividade renovadora da corte constitucional. Todas as análises até então conduzem a uma simples pergunta: “como uma constituição imposta e historicamente conflituosaconseguiu se manter no tempo de forma eficaz, apesar das crises?”. As problemáticas levantadas levam a compreensão de que o Japão está, de certa forma isolado, sendo o último remanescente de uma onda constitucionalista pós Segunda Guerra Mundial. Não há constituição imposta – como consequência de guerra – que sequer tenha durado tanto tempo.Os dispositivos de autodefesa da Carta de 46 resistiram à oposição conservadora e revisionista por mais de cinquenta anos, pelo simples fato de ter sempre conseguido manter o equilíbrio de forças políticas no parlamento. Nada impede, todavia, que mudanças possam acontecer no futuro, o fato é que nunca houve comoção política grande o suficiente que justificasse uma coligação entre os partidos. O alto grau de estabilidade que a constituição trouxe é um paradigma amplamente estudado pela comunidade de juristas e pesquisadores sociais. Entende-se, portanto, que a inflexibilidade formal da constituição não é sinônimo de atraso social e o Japão tem provado tal tese com maestria. Um exemplo é a legalização de Zaibatsus (conglomerados empresariais familiares), que foram proibidos após a guerra e, após pouco tempo, voltaram a ser lícitos sem quaisquer mudanças formais no corpo da constituição. Estabilidade constitucional, no entanto, nem sempre quer dizer paz e ordem social. Os casos mostrados acima provam que, embora haja equilíbrio de forças e bastante progresso, a herança histórica da constituição imposta trouxe várias repercussões negativas e a fomentação de muita polarização na sociedade japonesa. Talvez o cumprimento da constituição na realidade seja mais um problema do que algo positivo.

Um movimento antidemocrático tem incomodado o Japão e o problema nasce de um impasse histórico, travestido de debate jurídico-constitucional. Realidades temerosas, como a proximidade territorial com a Coreia do Norte, têm dado espaço para o surgimento de figuras ultranacionalistas, como Shinzo Abe, que visam usar do revisionismo e do conservadorismo para concentrar grande poder no executivo. A omissão da SCJ perante a problemática pode estar gerando mais problemas do que liberdade para os poderes políticos. Por mais que o modelo japonês seja um ponto fora da curva, não perceber que ele tem falhas seria penoso para a manutenção da democracia, nesse aspecto, falhas na incongruência da construção histórica japonesa com a carta constitucional. Entende-se que apolarização, gerada pela Carta de 46, envolve raízes sociais e não políticas. O progresso e a aparente estabilidade política não têm sido suficientes para equilibrar o ânimo, que é conflituoso desde a instauração do novo regime.

A legitimidade de uma é lei baseada não somente na formalidade, mas em valores históricos, ideológicos e,principalmente, em sua aceitação geral, um pleno acordo democrático e racional. Nesse entendimento, a noção do contramajoritário principiológico exposto na Integridade do Direito em Ronald Dworkin é fundamental e deve ser respeitada apesar das dificuldades. Fica claro que comumente o direito – mais especificamente a constituição – funciona em contenção à democracia, mas nunca como oposição à democracia: “ao invés de garantir a formação e amanifestação institucional da opinião e vontade pública constitucionais, as impede”[4]. Embora a constituição japonesa tenha conseguido equilibrar as forças políticas e proteger o contra sensu, o custo foi uma constituição que acabou também seccionado a conjuntura política por sua raiz histórica amplamente conflituosa.


Lucas Soriano é graduando em Direito pela Universidade de Brasília. Estagiário em gabinete de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).


Referências

[1] A small group of American bureaucrats working for the occupation authorities drafted the basic form of Japan’s 1946 constitution in a little more than a week, and the entire process, including elections, legislative deliberation, and approval by the emperor, took a mere eight months. (GINSBURG, Comparative Constitutional Design. Cambridge University Press, pg. 41, 2012).

[2] Flexibility represents the constitution’s ability to adjust to changing circumstances. Inclusion captures the degree to which the constitution includes relevant social and political actors, both at the time of drafting and thereafter. Specificity refers to the breadth of coverage and level of detail of constitutional provisions. These three features, we believe, are crucial for facilitating constitutional endurance. (ELKINS, GINSBURG, MELTON, The Endurance of National Constitutions. Cambridge University Press, pg. 08, 2009).

[3] Abe’s authoritarian inclination, expressed in distain at parliamentary politics. Even in 1935-45, in the years of military fascism that suppressedJapan’s limited constitutionalism, prime ministers were not exempt from accountability to the Diet. Abe, a nationalist politician obsessed with unfinished fascism, is going far beyond his authoritarian predecessors. Since he returned to power in 2012, Abe has acted as if he is a strongman, a modern Tudor monarch who convenes the parliament only to pass the bills and budgets he needs. (TOKUJIN, Abe’s Japan: Another Case of Abusive Constitutionalism, 2017, disponível em: <http://www.iconnectblog.com/2017/09/abes-japan-another- case-of-abusive-constitutionalism>.

[4] (CARVALHO NETTO, Menelick de. Temporalidade, constitucionalismo e democracia. Revista Humanidades. Brasília, no 58, pg. 39, 2011).


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