Por Gabriel Cardoso Cândido*
A Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº2, de 26 de março de 2024, estabelece diretrizes para o acolhimento de pessoas LGBTQIA+ em privação de liberdade no Brasil. O propósito do presente texto é elucidar os principais aspectos contidos nesta resolução.
- O reconhecimento da pessoa enquanto LGBTQIA+ ocorrerá única e exclusivamente por meio da autodeclaração, que não demandará qualquer prova adicional, devendo ter o seu nome social respeitado tanto no tratamento pessoal quanto em seus documentos (art. 2° e 13).
- A pessoa presa será questionada sobre sua preferência acerca do local e da unidade do cumprimento da pena privativa da liberdade. Esse direito é conferido às mulheres e homens transexuais, travestis, pessoas transmasculinas e pessoas não-binárias (art. 3°).
Destaca-se a recente decisão do STJ no sentido de afirmar que o local de cumprimento de pena da pessoa privada de liberdade transgênero não é decisão discricionária do julgador, devendo ser vinculada à autodeterminação da pessoa, em respeito à liberdade sexual e à liberdade de gênero:
HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. ESTABELECIMENTO PRISIONAL ADEQUADO. LIBERDADE SEXUAL E DE GÊNERO. DIVERSIDADE DE GÊNERO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE MATERIAL. PRESÍDIO FEMININO COM ESTRUTURA PARA RECEBER MULHER TRANSGÊNERO. ESCOLHA DA PESSOA PRESA.
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1. A determinação do local do cumprimento da pena da pessoa transgênero não é um exercício de livre discricionariedade da julgadora ou do julgador, mas sim uma análise substancial das circunstâncias que tem por objeto resguardar a liberdade sexual e de gênero, a integridade física e a vida das pessoas transgênero presas, haja vista que o art. 7° da Resolução CNJ n. 348/2020 determina que a referida decisão “será proferida após questionamento da preferência da pessoa presa”. Assim, o órgão estatal judicial responsável pelo acompanhamento da execução da pena não deve ter por objeto resguardar supostos constrangimentos das agentes carcerárias, pois, para isso, o Estado tem outros órgãos e outros instrumentos, que, inclusive, utilizam a força e a violência; e, por isso, é objetivo do Judiciário resguardar a vida e a integridade físicas das pessoas presas, respeitando a diversidade de gênero e a liberdade sexual. 2. O Supremo Tribunal Federal (STF), em 2019, em razão da diversidade de gênero e da igualdade material, havia concedido medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 527, para que pessoas presas transexuais e travestis com identidade de gênero feminino possam escolher cumprir a pena em estabelecimentos prisionais femininos ou masculinos. Assim também determina o art. 8° da Resolução CNJ n. 348/2020. 3. É dever do Judiciário indagar à pessoa autodeclarada parte da população transexual acerca da preferência pela custódia em unidade feminina, masculina ou específica, se houver, e, na unidade escolhida, preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas específicas. 4. Habeas corpus concedido para, restabelecendo a primeira decisão do órgão judicial de primeira instância, determinar que seja expedido o alvará de soltura, e que seja mantida a prisão domiciliar da paciente.
- O juiz da execução penal explicará à pessoa presa acerca da localidade das unidades masculinas e das unidades femininas, bem como das alas e celas destinadas exclusivamente para a população LGBTQIA+, deverá também indicar as possíveis implicações advindas de cada escolha (art. 5°).
- Excepcionalmente, as pessoas LGBTQIA+ poderão ser alocadas em espaços que não foram destinados especificamente para esse grupo, em razão da 1) superlotação nas celas ou alas destinadas às pessoas LGBTQIA+; ou de 2) risco a vida dos detentos devido a motins ou rebeliões.
Essa medida não pode deixar vulnerável a integridade física dos presos e deverá respeitar seu caráter temporário de até 30 dias, que poderá ser prorrogado por decisão judicial devidamente fundamentada, caso em que será avaliado a possibilidade de aplicação de monitoramento eletrônico para aqueles que se encontrarem em situação efetiva de risco (art. 6°).
- As pessoas intersexo poderão cumprir a pena em unidade feminina ou masculina, a depender da sua identificação de gênero. Em qualquer unidade escolhida, a pessoa intersexo poderá escolher pelo convívio geral ou pelo aprisionamento em alas ou celas específicas (art. 7°), conforme dispõe o artigo 11 da Resolução:
Art. 11. Deve ser viabilizada a criação e/ou a implementação de estabelecimentos penais específicos, alas ou celas de convívio LGBTQIA+ nas unidades penitenciárias femininas ou masculinas para promover a segurança e a integridade das pessoas transexuais, travestis, transmasculinas e não-binárias, em razão da especificidade da sua identidade de gênero.
- O juiz indagará à pessoa gay, lésbica, bissexual, assexual ou pansexual sobre sua preferência pelo convívio geral ou celas específicas (art. 8°). Já em relação às pessoas transexuais, travestis, transmasculinas e não-binárias:
(…) para garantir os direitos à integridade sexual, à segurança do corpo, à liberdade de expressão da identidade de gênero e ao reconhecimento do direito à autodeterminação de gênero, cabe ao(à) magistrado(a) indagar à pessoa assim autodeclarada acerca da preferência pela custódia em unidade feminina ou masculina ou específica, onde houver, e na unidade escolhida, preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas específicas, inclusive em ala específica para pessoas transgênero, onde houver. (art. 9°)
- O direito de visita de cônjuge, companheiro em união estável, parentes e amigos são garantidos nos mesmos moldes conferido à população prisional cisgênero e heterossexual, bem como no que se refere às visitas íntimas (art. 21 e 30).
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) se manifestou no caso Marta Lúcia Álvarez Giraldo vs. Colômbia que a mulher lésbica em privação de liberdade não pode ter suas visitas íntimas negadas em razão de sua orientação sexual:
Sobre o terceiro argumento, no entanto, a Comissão considera que o direito à visita íntima não pode ter apenas a reprodução humana como objetivo, negligenciando o exercício da sexualidade em si, independente de objetivos reprodutivos. Isso é especialmente relevante em relação aos estereótipos sociais negativos associados ao exercício da sexualidade pelas mulheres, por um lado, e pelas mulheres lésbicas, por outro. Especificamente, a CIDH observa o estigma social existente em relação à sexualidade feminina, à qual é atribuído socialmente menos valor.[1] (CIDH, 2018, p.43)
- A revista pessoal dos visitantes deve respeitar a moralidade, a integridade física e psicológica da pessoa da pessoa revistada. Esse procedimento se valer da tecnologia de aparelhos detectores de metais, de aparelhos de raio-x e de escâner corporal, por exemplo, para ser evitado o contato pessoal e manual, que ocorrerá de modo excepcional, devendo ser observadas as seguintes vedações: 1) a pessoa revistada deverá permanecer com pelo menos as suas roupas íntimas, evitando o desnudamento; 2) toque ou introdução de objetos nas cavidades corporais também são vedados; 3) o uso de cães farejadores; 4) proíbe-se também a ordem de agachamento ou salto no procedimento de revista (art. 26).
- Deverão ser assegurados o uso de apliques, perucas e outros acessórios aos visitantes LGBTQIA+. Entretanto, a resolução ressalta que tais objetos passarão por revista eletrônica ou manual (art. 28).
- A pessoa privada de liberdade LGBTQIA+ tem direito ao acesso à saúde de forma integral, o que inclui tratamento psicológico e psiquiátrico, mormente direcionado à prevenção do suicídio, e tratamento hormonal (art. 33).
- Todos os cuidados médicos demandados por pessoas portadoras de HIV ou outras infecções sexualmente transmissíveis deverão ser estendidos aos encarcerados com as mesmas condições, assegurado o sigilo das informações e dos diagnósticos (art. 34 e 35).
- Há de ser assegurado o acesso à leitura no ambiente carcerário, tendo em vista o aspecto educacional e a garantia da remição da pena pela leitura (Art. 36. Parágrafo único):
A remição da pena pela leitura é uma realidade instaurada pela Portaria Conjunta n° 276/2012, do Departamento Penitenciário Nacional, com validade na seara do Sistema Penitenciário Federal, em que o apenado pode remir sua pena em até 4 dias a cada obra lida, mediante a apresentação de uma breve resenha ou comentário da obra lida. É franqueado ao condenado ler e resenhar 12 obras por ano, resultando em 48 dias disponíveis para serem remidos. (CÂNDIDO, 2022)
O STJ estendeu a hipótese da remição pela leitura aos estabelecimentos prisionais fora da esfera federal, em analogia in bonam partem (HC nº 861817/SC). Parte superior do formulárioParte superior do formulário
- Haverá uma reserva das vagas disponíveis de trabalho para as pessoas privadas de liberdade de, ao menos, 5% para a população LGBTQIA+ (art.46).
O aprisionamento de pessoas LGBTQIA+ compreende uma série de diretrizes e complexidades que ultrapassam os esses breves apontamentos sobre a recente Resolução. É necessário que reflitamos acerca das questões sociais que permeiam a análise dessas normativas, bem como as interseções entre identidade de gênero, orientação sexual e outros aspectos que podem aumentar a vulnerabilidade social da pessoa.
*(Advogado criminalista pela PUC-RIO. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS)
Referência
[1] Tradução livre. Trecho original: “Respecto del tercer argumento, sin embargo, la Comisión considera que el derecho a la visita íntima no puede tener a la reproducción humana como único objetivo, dejando de lado el ejercicio de la sexualidad en sí misma, independiente de fines reproductivos. Ello tiene una particular relevancia en relación con los estereotipos negativos sociales asociados al ejercicio de la sexualidad por parte de las mujeres, por un lado, y de las mujeres lesbianas por el otro. En particular, la CIDH toma nota del estigma que existe socialmente respecto de la sexualidad femenina, a la cual se le adscribe socialmente menor valor”.
CÂNDIDO, Gabriel Cardoso Cândido. Remição da pena para além da positivação legal. Consultor Jurídico (Conjur), 2022. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2022-out-09/gabriel-candido-remicao-pena-alem-positivacao-legal/#:~:text=Remi%C3%A7%C3%A3o%20da%20pena%20para%20al%C3%A9m%20da%20positiva%C3%A7%C3%A3o%20legal&text=Admite%2Dse%2C%20portanto%2C%20a,conv%C3%ADvio%20social%20de%20forma%20harm%C3%B4nica.>. Acesso em 24 abr 2024.
CIDH. Caso Marta Lúcia Álvarez Giraldo vs. Colômbia. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 2018. Disponível em: <https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/2018/COPU11656ES.pdf>. Acesso em 24 abr 2024.
CNPCP. Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº2, de 26 de março de 2024. Disponível em: <https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=10/04/2024&jornal=515&pagina=43&totalArquivos=173>. Acesso em 24 abr 2024.
STJ. HC nº 861817/SC (acórdão). Superior Tribunal de Justiça, 2024. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202303758947&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=null>. Acesso em 24 abr 2024.