Por: Caio Pereira Negrão
O Haiti foi a primeira República negra das Américas. Nascida da revolução armada contra a colonização da França, em 1804, os revoltosos lograram êxito em derrotar as tropas de Napoleão Bonaparte e conquistar sua independência. Para Santos, “No campo do Direito Constitucional brasileiro, prevalece até os dias de hoje um silêncio ensurdecedor a respeito da experiência histórica ocorrida na colônia francesa de São Domingos […] que deu início ao constitucionalismo haitiano do século XIX”.[1] De acordo com Winnie Bueno, o silêncio sobre a Revolução de São Domingos no Direito Constitucional do Brasil não se dá por mero acaso.[2] Para a autora, a marginalização das experiências da negritude integra o complexo processo de negativa de direitos a grupos subalternizados, bem como constitui uma ferramenta de supressão do pensamento intelectual negro.
Na historiografia do constitucionalismo, as revoluções burguesas foram decisivas para a criação dos estados nacionais. E, da mesma forma, as guerras de independência colonial são o ponto de partida do constitucionalismo latino-americano. Nesse sentido, Duarte e Queiroz argumentam que a mediação entre o constitucionalismo europeu, estadunidense e latino-americano teria sido feita por elites locais com a leitura dos iluministas. Tudo se passa como se as mentes pensantes agissem sobre uma realidade “bruta”, moldando, com sua capacidade e inteligência, um novo mundo que nasce com fronteiras jurídicas bem constituídas. Entretanto, o colonialismo e a luta anticolonial foram formados por inúmeros espaços e fluxos hoje esquecidos que transbordam a imagem do mapa e das alegorias presentes na ideia de “recepção teórica” e de “protagonismo das elites”.[3]
Portanto, teorizar o Direito Constitucional brasileiro a partir da lógica afrodiaspórica é, sobretudo, um ato de deslocamento das narrativas que hoje são utilizadas para se compreender o mundo ocidental como discursos legitimadores e justificadores do colonialismo historicamente.[4] Os fluxos de pessoas e ideias no período colonial propiciam um meio valioso para se reexaminar os problemas de nacionalidade, posicionamento, identidade e memória histórica dos negros escravizados, permitindo “compreender certa especificidade da formação política e cultural moderna, em que o desejo de transcender as estruturas do estado-nação, da etnia e da particularidade nacional se faz presente”.[5]
Desse modo, ainda distante da existência do barco a vapor, as correntes planetárias facilitaram a transmissão circular da experiência humana através do Oceano Atlântico. Entretanto, apesar de a Revolução de São Domingos ter influenciado diversos movimentos no Brasil,[6] as elites coloniais foram as maiores beneficiárias dessa facilidade de trocas de informação, utilizando o Atlântico como canal de aprendizado, as quais, a partir de diversas experiências de conhecimento-exploração, seja na África ou nas Américas, foram desenvolvendo maneiras de impedir o fortalecimento dos grupos subalternizados. Assim sendo, com a forte circulação de ideias e notícias e a constante migração de pessoas, os impactos da revolução do Haiti no Brasil são mais profundos do que aparentam ser. O espectro da onda negra, seja como medo ou alerta, como esperança de um outro futuro ou de um fato a ser negado, tendo como símbolo máximo a Revolução Haitiana, permeava o imaginário das elites brasileiras oitocentistas, agindo como um mediador transatlântico de identidades da transição brasileira para a independência.[7]
A primeira Assembleia Constituinte do Brasil foi convocada por Pedro de Alcântara em 1822, mesmo antes da independência. Tendo uma função instável, delicada e contraditória, a Constituinte serviu como instrumento de transição para um país independente, sendo forte garantidor de direitos compatíveis com a formação de um no Estado-nação, ao mesmo tempo em que não podia avançar de mais sobre medidas liberais e igualitárias, haja vista o risco de potencializar “paixões” no seio do povo. Havia, portanto, uma sombra revolucionária que pairava sobre os parlamentares, a qual é constantemente evocada, sob o signo do medo, nos discursos dos congressistas.[8]
Toda uma gama de movimentos anteriores alijada ao medo de uma revolta negra resultou nas opções hermenêuticas adotadas pelos constituintes de 1823 a respeito da igualdade e liberdade. E é justamente da posição de uma elite colonial transatlântica que os eventos de São Domingos serão trazidos ou evitados na discussão sobre cidadania e direitos políticos no Brasil. Nesse sentido, a discussão sobre cidadania é o maior exemplo de como os marcadores de raça, articulados pelos fluxos atlânticos, “operam nas definições do que é tido como nação brasileira; cidadão; homem elegível; cidadania ativa; cidadania passiva etc.”.[9] Assim, argumentam Duarte e Queiroz, ainda que de maneira não expressa, a branquitude age como universal, estabelecendo distinções perante “os outros”.
O simples debate sobre uma possível cidadania para os negros era temido pelos parlamentares constituintes, pois muitos acreditavam que a Revolução Haitiana havia começado justamente porque os franceses levantaram a possibilidade de emancipação dos escravos, o que teria levado a sublevação em São Domingos. Ainda que as posições de alguns deputados fossem no sentido da gradual reforma do sistema escravista, a cidadania para negros é vista nada mais do que uma forma de lhes conquistar a obediência e não como um imperativo do sentido universal dos direitos humanos. O que se tem é a defesa de mudanças paulatinas justamente para se evitar qualquer tipo de inflamação que rompa com as hierarquias oriundas do regime colonial escravocrata.[10]
Nesse ínterim, Duarte e Queiroz argumentam que o espectro de São Domingos rondava a Constituinte de 1823, sendo uma forma de fazer falar aquele medo bem doméstico dos movimentos negros por liberdade e igualdade. Nela, delineavam-se impasses estruturais de uma nação que precisava lidar com a potencialidade universal dos discursos sobre direitos perante estruturas escravocratas. Gestavam-se também estratégias das elites brancas para constituir uma nação grande, única e rica, mas da qual apenas as elites senhoriais pudessem se beneficiar. Percebe-se também a dificuldade de qualquer construção da “nacionalidade” brasileira em que negros e brancos estejam em pé de igualdade, justamente porque esse tipo de construção nunca sequer foi projetada pelo Estado nacional, mas sim o seu oposto.[11]
Dessa forma, percebe-se que o medo das repercussões dessa onda negra chegou ao Brasil e ele delineou o pacto social desenvolvido pelas elites dirigentes em seu processo de transição para a independência. A civilização brasileira que então surgia, engendrou diversas articulações políticas para manter as posições hierárquicas, aumentar os domínios e evitar a revolta das classes populares, como ocorreu na colônia de São Domingos.
Tendo isso em vista, a Constituinte de 1823 foi pensada a partir de uma perspectiva branca, perpetuando ainda mais a hierarquia existente e dificultando a incorporação dos ideais de liberdade e igualdade para os negros. O medo da universalização dos direitos humanos foi uma das causas da marginalização das classes mais baixas e da perpetuação do poder político e social das elites, e, esse passado ainda se faz presente não apenas quando ocorre a manutenção dessas desigualdades, mas também quando as lutas negras são negadas e invisibilizadas nos processos de construção dos sistemas e das sociedades atuais.
Caio Pereira Negrão é Bacharelando em Direito na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista de iniciação científica no PIBIC/UFBA – CNPq. Diretor de Direitos Humanos na União dos Estudantes da Bahia (UEB). Membro do Grupo de Pesquisa “Historicidade do Estado, Direito e Direitos Humanos: interações sociedade, comunidades tradicionais e meio ambiente”. caiopneg@gmail.com.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] SANTOS, Maria do Carmo Rebouças dos. Constitucionalismo e justiça epistêmica: o lugar do movimento constitucionalista haitiano de 1801 e 1805. Rio de Janeiro: Telha, 2021. ISBN 978-65-86823-69-1. p. 17.
[2] BUENO, Winnie de Campos. A revolução silenciada: o atlântico negro e a teoria constitucional. Teoria constitucional. Porto Alegre, 2018. Disponível em: http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/34q12098/9a74g9mn/1x2H369h0o0mrn6p.pdf. Acesso em: 20 jun. 2021.
[3] DUARTE, Evandro Piza; QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. A Revolução Haitiana e o Atlântico Negro: o constitucionalismo em face do lado oculto da modernidade. In: DUARTE, Evandro Piza; SÁ, Gabriela Barreto de; QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. Cultura Jurídica e Atlântico Negro: história e memória constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. v. I, cap. 4, p. 117-139. ISBN 978-85-519-1635-3.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] Em 1805, um ano após a declaração de independência do Haiti, no Rio de Janeiro, negros foram vistos usando broches com o retrato de Dessalines, primeiro governante do Haiti. Em 1814, em Itapoã, Bahia, os escravos responsáveis por uma sublevação comentavam abertamente sobre os acontecimentos do Haiti. No ano de 1817, a revolução pernambucana tinha forte participação de negros que enxergavam a revolta como uma forma de se buscar a igualdade racial. MOTT, Luiz Roberto de Barros. Escravidão, Homossexualidade e Demonologia. São Paulo: Ícone, 1988.
[7] AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites – séc. XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
[8] DUARTE, Evandro Piza; QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. Para inglês ver: a cidadania na Constituinte Brasileira de 1823 e as tensões sociais do Império Português no Atlântico Negro. In: DUARTE, Evandro Piza; SÁ, Gabriela Barreto de; QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. Cultura Jurídica e Atlântico Negro: história e memória constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. v. I, cap. 4, p. 117-139. ISBN 978-85-519-1635-3.
[9] Ibidem.
[10] DUARTE, Evandro Piza; QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. Para inglês ver: a cidadania na Constituinte Brasileira de 1823 e as tensões sociais do Império Português no Atlântico Negro. In: DUARTE, Evandro Piza; SÁ, Gabriela Barreto de; QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. Cultura Jurídica e Atlântico Negro: história e memória constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. v. I, cap. 4, p. 117-139. ISBN 978-85-519-1635-3.
[11] Ibidem.