A natureza jurídica dos colégios militares e o imperativo do corte de cabelo, barba e tatuagem

por Submissões Independentes

Por Airton Santos de Souza Junior[1]

“A educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo[2]”. Essa frase célebre de Paulo Freire expressa a importância da educação para a construção de uma sociedade cuja cidadania possa ser plenamente exercida. A escola, por óbvio, tem papel fundamental nesse processo, pois deve ser um espaço onde os princípios da liberdade, solidariedade e pluralidade possam ser alimentados, instigados, desenvolvidos, mas não tolhidos.

Ao contrário do que talvez alguns pensem, os colégios militares do Estado do Acre, Dom Pedro II e Tiradentes, não propõem algo diverso dos princípios anteriormente enumerados, pois, embora militares, a Lei nº 3.362/2017[3], responsável pela criação deles, dispõe no Art. 1º, parágrafo 1º, que se tratam de instituições organizadas em conformidade com a Lei Federal nº 9.394/1996[4], Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), bem como com as demais leis e normas educacionais correlatas e aplicáveis à espécie.

Ademais, o Art. 2º, da Lei nº 3.362/2017, dispõe que, além do respeito aos direitos humanos e ao estado democrático de direito, são objetivos dos colégios militares:

 

“I – ministrar o ensino fundamental e médio a alunos, de ambos os sexos, dependentes legais de militares da PMAC, do CBMAC e da comunidade civil, inspirados nos princípios legais de liberdade e de solidariedade humana, tendo por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e a sua qualificação para o trabalho.”

 

Nesse sentido, percebe-se que o dispositivo em destaque demonstra a percepção do legislador em relação ao fato de que a cidadania, entendida como o conjunto de direitos e deveres exercidos por um indivíduo que vive em sociedade, só pode ser exercida por meio de uma educação inspirada em princípios como a liberdade e solidariedade humana.

Portanto, conforme disposto no Art. 2º, os princípios sobre os quais se organizam e estruturam os colégios militares Dom Pedro II e Tiradentes não encontram inspiração nos correspondentes à hierarquia e disciplina aplicadas às Forças Armadas e à Polícia Militar e Corpo de Bombeiro Militar, mas, segundo expressa previsão legal, nos princípios da liberdade e solidariedade humana.

Com isso, não quero dizer que não há hierarquia e disciplina nos colégios militares ou que esses princípios devem ser abolidos, mas que, apesar de colégios vinculados a duas instituições militares, seja ao Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Acre – CBMAC seja à Polícia Militar do Estado do Acre – PMAC, a eles não se aplicam os princípios da hierarquia e disciplina da mesma forma como são aplicados internamente nos batalhões militares da PM e do CB; tanto é que em momento algum, ao longo dos 12 artigos que a compõem, a Lei 3.362/2017 cita esses princípios.

Em razão disso, proponho como objetivo deste escrito responder o seguinte problema: podem os colégios militares estaduais exigir que o professor, devidamente aprovado em concurso público, deva, primeiramente, cortar o cabelo de acordo com os “padrões” da instituição, retirar a barba, caso possua, e esconder tatuagens, caso possua, para que finalmente possa exercer seu mister? Esses imperativos encontram-se previstos na legislação?

A resposta para os questionamentos suscitados é um categórico “não”! Não podem os colégios militares instituídos pela Lei nº 3.362/2017 condicionar o exercício profissional docente aos imperativos elencados. Isso ocorre por um conjunto de razões – explicarei duas delas.

Em primeiro lugar, as exigências enumeradas representam uma conduta discriminatória, violando, entre outras coisas, o princípio constitucional da igualdade[5], pois, ao subordinar o exercício profissional docente ao cumprimento desses comandos, os colégios militares estarão tratando de forma desigual os reconhecidamente iguais perante a lei. Lei essa que não exige que o docente, para que possa ser considerado habilitado para a profissão, deva, antes de tudo, cortar o cabelo segundo os “padrões” do colégio, retirar a barba e esconder tatuagens.

Além disso, na contramão da diferenciação ou discriminação lícita, aquela que ocorre em razão da necessidade de proteção às minorias excluídas da condição de participação na tomada de decisões institucionais, percebe-se que a discriminação com base nos imperativos aqui problematizados não compreendem diferenciação a fim de se garantir o acesso e exercício dos direitos sociais e cidadania, mas discriminação ilícita, absurda e desarrazoada.

Portanto, além da violação ao princípio da igualdade, seja formal, material, seja procedimental, a natureza discriminatória dos imperativos elencados também viola um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, disposto no Art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal (CF)[6]: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Em segundo lugar, ao condicionar o fazer docente ao cumprimento de exigências não previstas em lei, os colégios estarão adotando uma conduta em descompasso com o princípio da legalidade administrativa [7]disposto no caput do Art. 37 da CF; princípio esse que vincula todos os atos da Administração Pública, tanto da administração direta quanto indireta.

Com isso, quero dizer que, diferentemente do que ocorre na esfera privada cujo particular pode realizar tudo aquilo que não seja proibido por lei, em relação aos órgãos e entidades da Administração Pública a legalidade ganha outra conotação, pois a Administração só pode realizar aquilo que está previsto e autorizado por lei. Desse modo, a lei vincula os atos da Administração Pública, não podendo essa agir ou não agir se não quando a lei determine.

Assim, ao condicionar o exercício docente ao cumprimento de exigências que não encontram previsão na legislação, os colégios estarão adotando uma conduta que não encontra recepção na lei, seja constitucional (Art. 3º, inciso IV; Art. 5º da CF) seja infraconstitucional (lei nº 9.394/1996; lei nº 3.362/2017). Portanto, essa conduta deve ser evitada e combatida, pois, além de violar os princípios da igualdade e legalidade pelas razões aqui expostas, fere a liberdade de cátedra conferida ao docente. Uma vez que o direito de ensinar, previsto no Art. 3º, inciso II, da LDB, estará condicionado aos imperativos do corte de cabelo, barba e tatuagem; exigências que não encontram nem recepção na legislação nem se tratam de diferenciação lícita, mas discriminação ilícita e absurda.

Vale ressaltar, por fim, que há decisões judiciais que confirmam os argumentos que defendo aqui; como exemplo cito o Acórdão[8] nº 1025240-33.2021.8.11.0041, proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, no dia 17/04/2023, sob a relatoria do Desembargador Goncalo Antunes de Barros Neto:

 

“Assim, ainda que o padrão militar perpasse pela disciplina e rigor, a modernidade amplia o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, desde que não interfira no campo jurídico de terceiros. As características físicas que formam um cidadão não podem ser visualizadas sob a ótica da adoção de um estereótipo marginalizado, o qual deve ser rebatido e tenazmente combatido. Nesse viés, critérios para o exercício da função pública vai muito além do simples fato de um professor possuir barba, tatuagem e optar pela utilização de brincos. Ser professor está relacionado às habilidades cognitivas do ser humano e sua capacidade de repassá-las ao próximo, elementos que não sofrem interferência das desigualdades naturais saudáveis.”

 

Conforme a citação em destaque, nota-se que o direito ao desenvolvimento da personalidade – e a aparência física encontra-se inclusa nisso –, desde que não interfira no direito de terceiros, não pode ser limitado, pois as características físicas que constituem um cidadão não podem ser visualizadas por meio da adoção de um estereótipo marginalizado – o que configura discriminação ilícita. Além disso, o fato de um professor possuir barba e tatuagem em nada influi ou prejudica no exercício de sua função, uma vez que ser professor, nas palavras do relator, “está relacionado às habilidades cognitivas do ser humano e sua capacidade de repassá-las ao próximo[9]”.

Desse modo, concluo este escrito defendendo que, embora relevante o trabalho desenvolvido pelos colégios militares a fim de, entre outras coisas, resgatar, por meio dos princípios castrenses, o respeito ao professor, não podem estes colégios condicionar o exercício profissional docente ao cumprimento de exigências como o corte de cabelo, barba e cobertura de tatuagens, a fim de escondê-las, pois, além de discriminatórias, essas determinações não encontram recepção em nossa legislação. Portanto, retomo neste encerramento as palavras do Relator, e, assim, finalizo: “Que não se ouse uniformizar, dando sentido de unidade e rigor de acato, a uma atividade que, essencialmente, é a responsável pelo exercício da divergência como forma de permitir e aumentar conhecimento[10]”.

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[1] Graduado em Letras Português pela Universidade Federal do Acre (UFAC), mestre em Letras pela mesma instituição. Atualmente é doutorando do curso de Doutorado em Letras da UFAC e graduando do curso de Direito dessa instituição.

[2] FREIRE. Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

[3] ACRE (Estado). Lei nº 3.362/2017, de 20 de Dezembro de 2017. Dispõe sobre a criação dos colégios militares estaduais de ensino fundamental e médio “Dom Pedro II e Tiradentes”, na Rede Pública de Educação Básica do Estado.  Disponível em: https://www.al.ac.leg.br/leis/?p=13643. Acesso 15 out. 2023.

[4] BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso 15 out. 2023.

[5] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: JusPODVIM, 2022.

[6] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15 out. 2023.

[7] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Administrativo. 20 ed. São Paulo: JusPODVIM, 2022.

[8] Mato Grosso. Tribunal de Justiça. Acórdão nº 1025240-33.2021.8.11.0041. Indenização por dano moral. Relator Goncalo Antunes de Barros Neto. Mato Grosso, 17 de Abril de 2023, grifo nosso.

[9] Ibid.

[10] Ibid.


Referências:

 

ACRE (Estado). Lei nº 3.362/2017, de 20 de Dezembro de 2017. Dispõe sobre a criação dos colégios militares estaduais de ensino fundamental e médio “Dom Pedro II e Tiradentes”, na Rede Pública de Educação Básica do Estado.  Disponível em: https://www.al.ac.leg.br/leis/?p=13643. Acesso em: 15 out. 2023.

 

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 15 out. 2023.

 

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15 out. 2023.

 

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Administrativo. 20 ed. São Paulo: JusPODVIM, 2022

 

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: JusPODVIM, 2022.

 

FREIRE. Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

 

MATO GROSSO (Estado).  Tribunal de Justiça. Acórdão nº 1025240-33.2021.8.11.0041. Indenização por dano moral. Relator Goncalo Antunes de Barros Neto. Mato Grosso, 17 de Abril de 2023. Disponível em: https://pje2.tjmt.jus.br/pje2/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/documentoSemLoginHTML.seam?ca=f167f1ef4471b4c8fe5d3711dbf136c8ff4fc195cf2186e0d6682c4f0ed4a8d79bdcd6720c61a796f2b86fcc375f58d6354d4f2f871d234c&idProcessoDoc=165654675 Acesso em: 15 out. 2023.

 

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