Por Maíza Viana
1. INTRODUÇÃO
A Lei de 7 de novembro de 1831 ficou conhecida como “Lei para Inglês Ver” em razão da não concretização de suas disposições normativas.
Contudo, análises mais aclaradas apontam o cuidado com que deve ser tratada a mensuração da eficácia dessa lei. Dentre outros motivos, houve a retomada de seu conteúdo por milhares de escravos que lutaram por sua liberdade junto aos tribunais judiciários nas décadas posteriores.
Nesse sentido, destacam-se as importantes vitórias e julgados favoráveis aos pleitos dos escravos, advogados e abolicionistas. Buscava-se o reconhecimento da ilegalidade da escravização dos africanos que ingressaram no Brasil após a edição da Lei de 07/11/1831.
2. CONTEÚDO DA LEI DE 07 NOVEMBRO DE 1831
Por força de seu conteúdo, declaravam-se livres todos os escravos oriundos de fora do Império, além de impor penas aos importadores dos escravos trazidos ao Brasil nessa condição – os quais eram tratados sob o termo de “africanos livres”.
Nos anos que se seguiram à promulgação da Lei de 1831, as maiores preocupações giravam em torno da proteção jurídica dos donos desses escravos importados ilegalmente, quais sejam: os senhores de engenho.
Nesse sentido:
Contudo, a aprovação da lei de 1831 não significou o fim do tráfico, pois a sociedade brasileira ainda apoiava firmemente a escravidão. A economia cafeeira, em expansão, dependia cada vez mais do braço escravo. Além disso, conforme defende o historiador Luís Henrique Dias Tavares, a continuidade do tráfico estava intimamente associada aos ‘interesses capitalistas’, que lucravam com a existência de tal atividade comercial (SILVA, 2007, p. 50)1.
Com isso, o encerramento efetivo do tráfico negreiro se deu a partir da Lei Eusébio de Queiroz, de 1850, embora tenha sido um encerramento gradual e condicionado ao desenvolvimento de uma consciência coletiva de que a manutenção do tráfico se mostrava insustentável.
3. EFICÁCIA DA LEI DE 07 DE NOVEMBRO DE 1831
A Lei de 07/11/1831 sofreu resistência dos setores anuentes ao comércio negreiro ou dele dependentes, bem como dos próprios integrantes do governo imperial. Estes, autoridades públicas de alto e de baixo escalão, embaraçavam o cumprimento da lei em troca de benefícios pessoais ou pelas pressões dos diretamente interessados na manutenção do sistema escravocrata.
Nesse sentido, o colaboracionismo de juízes, autoridades públicas, funcionários subalternos, políticos e da própria sociedade contribuiu fortemente para o esvaziamento da força normativa da lei 18312.
Todavia, as disposições normativas da lei de 1831 foram de suma importância em um novo contexto: com o passar dos anos – tomando-se como base os anos 1860, 1870 e 1880 -, a opinião pública tornou-se cada vez mais favorável à extinção da escravidão no Brasil, com o recrudescimento dos movimentos abolicionistas.
Desse modo, embora tardiamente, a Lei de 1831 se mostrou contributiva para a consecução de conquistas pelos escravos que lutavam por sua liberdade, bem como pelos abolicionistas que vislumbravam vitórias no âmbito judiciário.
Isto porquanto, embora, na época de sua edição, o entendimento segundo o qual todos os escravos que chegaram ao Brasil após 1831 deveriam ser emancipados não tenha prosperado, na ambiência das décadas posteriores, essa tese foi diversas vezes acolhida pelos tribunais.
4. Retomada da Lei de 1831 nas décadas de 1860, 1870 e 1880
Nas décadas em apreço, houve o recrudescimento dos movimentos abolicionistas e da consciência do caráter moralmente questionável da manutenção da escravidão. Destaca-se a mobilização de bacharéis em Direito e de conhecedores da lei, que passaram a incentivar os escravos a ingressar com ações judiciais contra seus senhores com vistas à obtenção de liberdade.
Nesse contexto, o fato de a Lei de 07 de novembro de 1831 não ter sido revogada até então permitiu que suas disposições normativas fossem retomadas. Estas proibiam o tráfico de escravos oriundos de fora do território brasileiro após a promulgação da Lei de 1831. Assim, embasaram a ilegalidade da posse dos escravos que vieram para o Brasil após esse período.
Assim, bacharéis, juízes, promotores e advogados passaram a questionar a legalidade da posse de escravos trazidos ao Brasil depois de 1831, bem como os próprios escravos passaram a enxergar-se como africanos livres em função de terem sido importados por contrabando3.
O argumento principal das ações que requeriam a liberdade desses escravos centrava-se no art. 1º da lei de 7 de novembro de 1831, que previa a liberdade de todos os africanos que tivessem entrado no Brasil a partir da vigência daquela lei.
Esse argumento, na década de 1860 e nas duas posteriores, embasou as ações movidas por africanos importados ilegalmente. Um dos principais abolicionistas que auxiliaram esses escravos foi Luís Gama, que atuou na província de São Paulo.
Apesar de recebidas com muita cautela pelas autoridades judiciárias, tímida, lenta e paulatinamente, essas teses foram sendo acolhidas pelos tribunais. Com efeito, o fato de que milhares de escravos haviam sido importados de forma ilegal estimulava uma posição mais conservadora pelos tribunais.
Em grande verdade, a prosperidade de vitórias judiciais com base nessas disposições normativas só veio a ocorrer na década de 1880, em que a popularidade do abolicionismo atingiu o seu auge.
Nesse sentido, a título de exemplificação da imponência normativa que o art. 1º da Lei de 7 de novembro de 1831 adquiriu na década de 1880, afigura oportuno mencionar o caso de uma senhora que abdicou do senhorio sobre seus escravos e decidiu não prosseguir com o litígio. Sua decisão foi tomada com base nas peculiaridades de seu caso e nas cada vez mais numerosas vitórias de escravos no tribunal em que corria a ação em que figurava como ré.
É o que se depreende da carta que a senhora em apreço enviou ao juiz municipal competente para julgar a controvérsia:
Eu D. Maria Thereza de Jesus possuindo a mais de 30 anos em boa-fé a africana Victoria, e dela nasceram seus dois filhos Morsina e Possidônio, que comprei, e porque seja vedado conforme a lei vigente possuir-se africanos e sua prole depois do ano de 1831, e eu ignorando a proibição desta lei os possuía e portanto sem querer me opor aos preceitos da lei abro mão e desisto de toda e qualquer questão que possa embaraçar-me, ficando todos em plena liberdade, e p ql fim mandei passar a presente desistência. Caetité, 19/dez/1886. A rogo de m tia D. Ma Thereza de Jesus, Avelino Garcia de Souza (SILVA, 2007, p. 282)4.
Isto implica dizer que, àquela altura, tendia a prevalecer o entendimento de que a Lei de 7 de novembro de 1831 estabelecia um marco entre os escravos cuja propriedade era lícita e os escravos cuja propriedade era eivada de vício de legalidade.
Dessa forma, é possível observar que, em que pese a notada ausência de eficácia da Lei de 1831 em sua própria época, nas décadas posteriores, seu conteúdo normativo – notadamente o art. 1º – foi utilizado como premissa legal basilar para a libertação de milhares de escravos que lutavam por sua liberdade.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora não tenha sido efetivamente acolhida quando de sua promulgação, a Lei de 7 de novembro de 1831 foi retomada nas décadas seguintes, sendo utilizada como pedra angular das ações movidas pelos escravos contra seus senhores. A tese sustentada consistia no entendimento de que, conforme previsto em seu art. 1º, todos os escravos que foram trazidos para o Brasil após a vigência da lei em apreço deveriam ser libertos em razão da ilegalidade de sua obtenção.
Com o passar dos anos, as vitórias dos escravos nos tribunais do país se tornaram cada vez mais recorrentes, a ponto de a probabilidade de vitória pelos escravos ser tão alta, que alguns senhores chegavam a abdicar da posse de seus escravos em vez de travar batalhas judiciais que supunham perdidas.
Desse modo, depreende-se que a Lei de 7 de novembro de 1831 foi essencial para a emancipação de escravos mediante as moções judiciais que eclodiram nos tribunais brasileiros ao longo das décadas de 1860, 1870 e 1880.
Maíza Viana de Gusmão Lins é graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora em História do Direito (PIBIC 2022/2023).
Referências bibliográficas:
[1] SILVA, Ricardo Tadeu Caíres. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos, senhores e direitos, 2007;
[2] COSTA, Alex Andrade. Os juízes de paz são todos uns ladrões: autoridades públicas e o tráfico de escravos no interior da província da Bahia (c. 1831 – c. 1841). Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 32, nº 66, p. 123 – 142, janeiro – abril 2019;
[3] DA COSTA BRITO, Ênio José. MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos Livres. A abolição do tráfico de escravos no Brasil. REVER-Revista de Estudos da Religião, v. 18, n. 3, p. 251-257, 2018;
[4] SILVA, Ricardo Tadeu Caíres. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos, senhores e direitos, 2007.