Por Anderson Henrique Vieira*, Bruna Érica Dantas Pereira Diógenes** e Lívia Oliveira Almeida***
O governo Lula tornou pública no dia 19/06, a portaria n° 729/2023 que visa regulamentar a distribuição gratuita de absorventes em unidades de Atenção Primária à Saúde, escolas da rede pública, além de unidades de acolhimento do Sistema Único de Assistência Social, presídios e instituições para cumprimento de medidas socioeducativas, no contexto do Programa de Proteção e Promoção da Dignidade Menstrual, criado em março e regulamentado pelo Decreto 11.432/2023, editado pelo atual Governo Federal.
A pobreza menstrual escancarada pela utilização de objetos inadequados justamente em decorrência da ausência de recurso para a compra de coletores, calcinhas absorventes e absorventes (externo e interno), os quais não se encontram de forma gratuita, assim como, a falta de amparo nas prisões femininas, à população trans e pessoas em situação de rua, cenário apresentado pelo UNICEF (2021) e conceituado a partir da “falta de infraestrutura, recursos e até conhecimento”.
Entretanto, apesar da relevância do conteúdo da Portaria Interministerial Nº 729 ao tratar da distribuição de absorventes em espaços relevantes (UBS’s, redes de assistência social, instituições escolares e penitenciárias), essa ação se configura como insuficiente perante o conceito de Pobreza Menstrual insculpido no relatório “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdades e violações de direitos” realizado pelo UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) com o Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA), em que o fenômeno é conferido pela escassez de acesso a produtos de limpeza, higiene, medicamentos, a água, além da escassa divulgação de políticas educacionais em torno da temática (UNICEF, 2021). Assim, a pobreza menstrual reúne múltiplos fatores e indica a existência de um “fenômeno complexo, transdisciplinar e multidimensional” (Idem, 2021). Dito de outra forma, o combate à pobreza menstrual se traduz muito além da mera distribuição de absorventes, que apesar de extremamente relevante, de forma isolada não abarca as diversas facetas desse fenômeno social.
Não por outro motivo, a recomendação nº 21 de 2020 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH, 2021), solicita ao Executivo e Legislativo a criação de um marco legal para superar a pobreza menstrual e garantir a isenção de impostos de tais produtos, levando em consideração os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), como o ODS 5 e o ODS 3, os quais tratam sobre Igualdade de Gênero e Empoderamento Feminino e Saúde e Bem Estar. Ainda neste recorte, a Organização das Nações Unidas (ONU), desde 2014 considera o acesso à higiene menstrual um direito que pertence as problemáticas de saúde pública e de direitos humanos, pois a população mais exposta a essa realidade coexiste com índices extremos de vulnerabilidade social e econômica. Contudo, isso não ocorre na prática.
No Brasil, em âmbito estadual, no ano de 2020, o absorvente higiênico feminino passou a ser incluído no rol dos itens que integram a cesta básica no estado do Rio de Janeiro, conforme a Lei n° 8.924/2020, cenário em conformidade à Lei n° 6.779/2021 do Distrito Federal de iniciativa da deputada Arlete Sampaio (PT) em conjunto com a Fundação Girl Up¹ com o objetivo de garantir o acesso a absorventes para pessoas em situação de vulnerabilidade econômica em postos de saúde e escolas públicas.
Já no Estado do Maranhão, o Projeto de Lei nº 370/2021, de iniciativa do Poder Executivo, inclui novo dispositivo à Lei nº 10.467/2016, e visa viabilizar a distribuição do absorvente higiênico na cesta básica. Em Minas Gerais, com o mesmo objetivo, foi aprovado o Projeto de Lei 1.428/20, sendo sancionado pelo Governador Romeu Zema, garantindo assim o direito das pessoas em vulnerabilidade ao acesso gratuito de absorventes higiênicos no estado.
Muito embora as iniciativas legislativas mencionadas sejam importantes, em razão da complexa estrutura que envolve a questão, o seu enfrentamento requer a articulação com diversos elementos, tais como: econômicos, tributários, patriarcais, habitacionais e educacionais. Portanto, cabe delinear especificamente sobre a forma com que tais fatores podem impactar na garantia à dignidade menstrual. Em torno dos aspectos econômicos, o custo atribuído aos absorventes consome muito da renda familiar², de modo que para uma população que tenta sobreviver com os auxílios oferecidos pelo governo ou com o valor simbólico do salário mínimo, torna-se necessário escolher entre assumir custos com alimentação e produtos de higiene, entre eles, aqueles necessários ao ciclo menstrual. Isso porque, o acesso a coletores e materiais de higiene necessários a saúde feminina só ocorre perante a compra, em decorrência da sua indisponibilidade em postos de saúde e em cestas básicas, ao mesmo tempo que preservativo e lubrificante são disponibilizados de forma gratuita a população, por ser igualmente uma questão de saúde pública.
Associado a essa questão, tem-se ainda um preocupante tratamento diferenciado do ponto de vista tributário entre produtos masculinos e femininos, já que o custo tributário dos produtos femininos, em grande parte, é maior quando comparado aos do gênero masculino, não havendo diferença na matéria prima utilizada, este fenômeno veio a ser denominado de “imposto rosa” (WEISS-WOLF, 2018). Esta realidade tributária foi fator chave na Medida Provisória Nº 433/2008 e na MP de n° 609/2013 as quais propuseram zerar a alíquota de tributação para produtos de higiene, dentre eles os absorventes, contudo, ambas foram vetadas por inadequação financeira. Além das medidas já citadas, o Decreto n° 8.950/2016 instituído na gestão de Michel Temer estabeleceu a alíquota zero de tributação sobre TIPI (Imposto sobre produto Industrializado), que envolve produtos de higiene de modo geral, sendo incluídos absorventes e tampões higiênicos. Entretanto, a medida foi alvo de revogação pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Além disso, o contexto patriarcal interfere na garantia da dignidade menstrual em face da estigmatização, como uma espécie de tabu, em decorrência do suposto caráter negativo que lhe é atribuído desde períodos pretéritos, como sinônimo de sujeira e impureza, aspectos depreciativos recorrentemente atrelados a condição feminina que se encontra respaldada por marginalização, silenciamentos e violências (ROLNIK, GUATTARI, 2000).
Ainda nesse cenário, os produtos associados ao corpo feminino são considerados supérfluos e, portanto, desnecessários, ainda mais quando se verifica que as políticas públicas brasileiras são pensadas e implementadas majoritariamente por homens, os quais não vivenciam o fenômeno biológico da menstruação, como também não detém conhecimento sobre a dimensão dos seus efeitos. Ainda é possível elencar que o preconceito e a banalização em torno do tema dificultam o acesso à informação por parte de toda a população de modo a dificultar a implementação de políticas efetivamente garantidoras da dignidade menstrual em suas múltiplas concepções.
Assim, o preconceito, a banalização e invisibilidade da temática, contribui para o agravamento da saúde feminina, pelo acometimento de doenças provenientes do uso de substâncias/produtos inadequadas durante o ciclo menstrual, como pedaços de pano, miolo de pão, o que prejudica a saúde feminina e fere os direitos reprodutivos e sexuais (art. 6° CF/88). Outra questão que contribui para a situação de pobreza menstrual e representa, portanto, outra dimensão do fenômeno, são os fatores habitacionais. Isso porque, o aspecto habitacional reúne dentre seus principais elementos, o acesso ao saneamento e a água limpa. Entretanto, conforme o relatório “O Saneamento e a Vida da Mulher Brasileira” (FREITAS, MAGNABOSCO, 2018) em 2016, 14,3% da população não possuía acesso a água tratada e 1,585 milhão de mulheres brasileiras não possuíam banheiro em suas residências ou não os possuíam com a estrutura adequada. Esse número se torna mais preocupante quando o enfoque é dado à região Nordeste em que 4 em cada 10 mulheres vivenciam o quadro de pobreza menstrual (AGÊNCIA TATU, 2022).
Mediante as razões expostas no presente texto torna-se imprescindível a implementação de uma política voltada à garantia da dignidade menstrual de forma a incluir todos os seus aspectos, habitacionais, culturais, educacionais, de saúde, tributários, econômicos, e principalmente, jurídicos. Dito isto, por mais que a Portaria nº 729 busque regulamentar a temática e assuma posição importante no combate à pobreza menstrual, vale frisar que a articulação que tal fenômeno requer para o seu efetivo funcionamento diante das inúmeras realidades femininas, ainda se encontra distante.
Assim, o conteúdo do ato normativo analisado não se faz totalmente suficiente. Isso porque, a distribuição de absorventes nos espaços públicos não impedirá que outras problemáticas continuem a existir, justamente porque sua funcionalidade opera mediante a integração de diferentes camadas de atuação, de forma que, o sujeito que detém acesso aos produtos de higiene disponibilizados a partir da regulamentação legal realizada, não necessariamente terá informação e local adequado para a utilização de tais instrumentos, como as pessoas em situação de rua. No fim, não há garantia à dignidade menstrual com a mera regulamentação da Lei nº 14.214/21.
Ainda cabe salientar, como exposto, que a problemática nutre íntima relação com aspectos sociais, educacionais e culturais, na medida em que a informatividade acerca do período menstrual deve ser disseminada e para isso, é necessário antes de tudo, que o tema seja tratado com naturalidade, pois a menstruação é um fenômeno biológico semelhante a muitos outros do corpo humano, como a respiração, digestão e outros que ocorrem de forma micro sem atribuição de juízo de valor. E porque acerca da menstruação, enquanto fenômeno metabólico e fisiológico como qualquer outro, é conferido um lugar de desprestígio? Desse modo, é necessário combater narrativas patriarcais, fortemente arraigadas na sociedade, através de conceitos como o devir mulher (DELEUZE, GUATTARI, 2012), que representa a potencialidade de articulação entre diferentes afetos na busca por novos formatos de existência dos corpos femininos, de forma a se considerar a implementação da dignidade menstrual, sob a ótica dos múltiplos elementos que a compõe, um dos modais de contributo a presente questão.
* Doutorando em Direito pela UFPB, mestre em Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido (Uern), bacharel em Direito (UFCG) e professor substituto UFCG.
** Graduanda em Direito pela UFCG e membro do LPCCJS.
*** Graduanda em Direito pela UFCG e membro do LPCCJS.
[1] Para vias de maior conhecimento sobre a organização, sugere-se o acesso ao site da Girl Up Brasil: https://girlup.org/pt/brasil.
[2] Os dados do Instituto Aurora demonstram que a quantidade de absorventes por ciclo menstrual é em média de 20 unidades, de forma que o custo mensal e anual corresponde a R$12,00 e R$144 reais, respectivamente. Importante salientar que estes dados estão sujeitos a alterações, tendo em vista que a quantidade utilizada depende da duração e do volume do ciclo de cada pessoa que menstrua.
Referências
BISCAIA, M. Pobreza menstrual: O que a menstruação tem a ver com a justiça e a inclusão social? Instituto Aurora, s/d. Disponível em: https://institutoaurora.org/pobreza-menstrual-o-que-a-menstruacao-tem-a-ver-com-a-justica-e-a-inclusao-social/#:~:text=Mesmo%20sendo%20algo%20biol%C3%B3gico%20do,desigualdade%20social%20e%20de%20g%C3%AAnero. Acesso em: 01 jul. 2023
DANTAS, K. Pobreza menstrual afeta 4 em cada 10 mulheres no Nordeste. Agência Tatu, Maceió – AL, 28/07/22. Disponível em: https://www.agenciatatu.com.br/noticia/pobreza-menstrual-afeta-4-a-cada-10-mulheres-no-nordeste/. Acesso em: 07 de jul. 2023.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 2, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. – São Paulo: Editora 34, 2012. 2. ed. Coleção TRANS, 557 p.
FREITAS, F. G.; MAGNABOSCO A. L. Benefícios econômicos da expansão do saneamento. Instituto Trata Brasil. São Paulo: Ex Ante Consultoria Econômica, 2018. Disponível em: < http://www.tratabrasil.org.br/images/estudos/itb/beneficios/sumario_executivo.pdf > Acesso em: 30 jun. 2023.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolíticas. Cartografias do desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
UNICEF. UNFPA. Pobreza Menstrual no Brasil: Desigualdades e violações de Direitos. Maio, 2021. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-unfpa_maio2021.pdf. Acesso em: 02 jul. 2023.
WEISS-WOLF, J. US Policymaking to Address Menstruation: Advancing an Equity Agenda. Wm. & Mary J. Race Gender & Soc. Just., v. 25, p. 493, 2018.