A AUTOCOMPOSIÇÃO NA RESOLUÇÃO DE LITÍGIOS SOCIETÁRIOS EM EMPRESAS FAMILIARES NO BRASIL: DISPUTE BOARDS E A PREVENÇÃO À JUDICIALIZAÇÃO DE CONFLITOS.

por Advocatta

Por : Ian Pereira de Carvalho.

Cada vez mais é nítida a sobrecarga do sistema judicial brasileiro, principalmente quando este é chamado a solucionar disputas cujos custos e incerteza se mostram extremamente onerosos. Dentre as disputas que congestionam o Judiciário brasileiro figuram as demandas envolvendo as empresas familiares e seus impasses internos.

De início, o conceito de empresa familiar é precisamente apresentado por Denize Grzybovski e João Carlos Tedesco:

    Assim, considera-se, neste, empresa familiar como sendo aquela organização empresarial que tem sua origem e sua história vinculadas a uma mesma família há pelo menos duas gerações, ou aquela que mantém membros da família na administração dos negócios, ou seja, que é controlada e/ou administrada por membros de uma família.[1]

     Em um primeiro momento, há de ser ressaltado o impacto socioeconômico que as empresas familiares brasileiras possuem. De acordo com dados dos meses de maio e junho de 2022, fornecidos pelo IBGE, as empresas familiares são responsáveis por 65% do PIB nacional e mantenedoras de 75% dos vínculos empregatícios do país. Ainda assim, é importante frisar que, dentro do universo do empreendedorismo familiar, 73% dos negócios não atingem faturamento superior a R$100 milhões.[2]

Em conformidade com a divisão estabelecida no livro “De Geração para Geração”, existem três modalidades de empresas familiares: empresas tradicionais familiares, caracterizadas pelo capital é fechado (é o caso de empresas de micro, pequeno e médio porte), empresas tradicionais híbridas, hipótese em que o capital é aberto, porém a família segue detentora da operação e das quotas majoritárias, e empresas de influência familiar, isto é, contam com o capital aberto, porém a família não possui o controle operacional ou maioria das cotas, se atendo ao exercício de sua expressiva influência no negócio.[3]

Por conseguinte, a pluralidade de configurações empresariais existentes torna extremamente subjetivo e complexo o sopesamento valorativo dos magistrados e tribunais brasileiros quando confrontados com disputas dessas entidades, tendo de adequar uma legislação abstrata a casos concretos repletos de nuances. Cumpre destacar, inclusive, que muitas das disputas judiciais envolvendo entidades empresariais requerem a atuação de peritos, uma vez que o magistrado, apesar de seu notório conhecimento jurídico, não é capaz de preencher lacunas técnicas essenciais das causas. Esses mesmos profissionais são capazes de, por si só, discernir os problemas, dirimir as dúvidas pertinentes e ilustrar possíveis soluções para o litígio. Dessa forma, por que não utilizá-los fora do engessado e engarrafado procedimento judicial?

Ora, sem alternativas extrajudiciais os empreendedores privados tornam-se reféns da morosidade da tutela jurisdicional do Estado até a prolação de uma sentença, o que é extremamente danoso à atividade comercial, sem contar com o dispêndio de tempo e dinheiro pelas partes de uma ação judicial, como abordam Jorge Haber Neto e Marinho Kern:

É inquestionável que o dinamismo da atividade econômica empresarial não pode aguardar a decisão judicial meritória definitiva, sob pena de engessamento da atividade econômica.[4]

    Inegavelmente a atividade econômica exercida na era do apogeu do fluxo informacional globalizado não pode esperar pela lentidão do procedimento judicial, restando aos agentes econômicos nenhuma outra escolha senão o desbravamento de métodos alternativos de resolução de conflitos.

II. Os litígios e o empreendimento familiar

Diferentemente das demais, as empresas familiares contam com aspecto extremamente subjetivo e exclusivo no que diz respeito à relação interpessoal entre seus sócios, visto que seus laços ultrapassam a esfera profissional e adentram a vida íntima e pessoal, o que pode obstar a já árdua missão de empreender. No caso das referidas empresas, o affectio societatis atinge seu estado mais puro, visto que a vontade de constituir sociedade ultrapassa o mero empreendedorismo e acumulação de riqueza, mas emana do próprio cerne familiar.

Por vezes, a sucessão hereditária torna-se um verdadeiro percalço na saúde de uma empresa familiar. Não necessariamente a mudança no quadro de quotistas de uma empresa irá configurar motivo de atrito entre os sócios, porém a má distribuição de quotas aos herdeiros tende a torna-se a fagulha para uma iminente combustão que porá a integridade do empreendimento construído pelas gerações passadas em risco. Não obstante, os impasses das empresas podem ocorrer também pela reprovabilidade da postura de um de seus sócios, ensejando o inconformismo dos demais, como é o caso do abuso de poder de controle pelo sócio administrador.

São inúmeras as causas plausíveis de desentendimentos internos, como a divergência acerca da melhor estratégia a ser traçada pela empresa, ou até mesmo por intercorrências exógenas ao negócio em si. Todas essas hipóteses tendem a consternar a estrutura societária das empresas familiares, já que nesses casos a alienação de quotas de um dos sócios denota muito mais que uma simples transação econômica, mas a ruptura de relações consanguíneas que ultrapassam a vida profissional destes agentes.

No que concerne aos conflitos supramencionados, deve-se sopesar os custos materiais e imateriais impostos pelo processo judicial aos envolvidos, sem contar no desgaste emocional das relações familiares, de modo pelo qual a fundação da arquitetura familiar tem suas pilastras abaladas, podendo culminar no desmoronamento de toda a sua estrutura.

Em face do exposto, é imperativa a aliança de mecanismos jurídicos extrajudiciais à estrutura societária destas empresas visando soluções, ou ainda, prevenções mais eficazes que sentenças judiciais, em prol da integridade tanto do empreendimento familiar, quanto da família como instituto jurídico e social em si, em tempo hábil e com mínimos custos financeiros.

Sem dúvidas, o mais oportuno uso do Direito não condiz com o conhecimento normativo e processual isolado em um mundo enclausurado à parte, mas com a articulação de seus mecanismos e o correto manejo de suas normas, propiciando terreno fértil à finalidade social do seu usufruto.

III. Os Dispute Boards e os conflitos societários

Visando atender às necessidades do dinamismo da atividade econômica, são propostos os chamados Dispute Boards, que pela definição de Gilberto José Vaz consistem em

[…] uma junta de profissionais capacitados e imparciais formada, em geral, no início de um contrato para acompanhar seu progresso e resolver disputas que, eventualmente, venham a surgir ao longo de sua execução. Essa junta emite recomendações e/ou decisões em face de disputas que são a ela submetidas, apresentando-se, com cada modelo de Dispute Board adotado, uma equação diferenciada de obrigatoriedade para as partes.[5]

    Logo, a institucionalização de um dispute board nas cláusulas do acordo de sócios das empresas familiares agregaria dinamicidade à resolução de relações conflituosas que porventura se desenvolvam em decorrência da atividade empresarial. Composto por profissionais das mais diversas áreas, em comum acordo entre todos os sócios, esse quadro de disputas se torna um apêndice ao empreendimento familiar, exercendo função análoga a um conselho ou comitê.

Sobretudo, uma das mais notáveis vantagens da inserção dos dispute boards em contratos societários é a total personalização do modelo de resolução de conflitos internos, de modo que a sociedade possa moldar a composição e a atuação deste mecanismo extrajudicial, outorgando-lhe os poderes que julgarem convenientes.

Os profissionais contratados, isentos de qualquer parcialidade, se incumbem da emissão de laudos técnicos e periciais acerca das atividades da empresa a fim de nortear a tomada de decisão de seus sócios. Ainda, dependendo dos poderes a eles conferidos, podem inclusive proferir decisões acerca da disputa à qual foram invocados a resolver, atribuindo razão à parte merecedora.

Diante disso, Arnoldo Wald destrincha três hipóteses de atuação dos comitês emergenciais quando acionados:

Os dispute boards (DB) são os painéis, comitês, ou conselhos para a solução de litígios cujos membros são nomeados por ocasião da celebração do contrato e que acompanham sua execução até o fim, podendo, conforme o caso, fazer recomendações (no caso dos Dispute Review Boards – DRB) ou tomar decisões (Dispute Adjudication Boards – DAB) ou até tendo ambas as funções (Combined Dispute Boards – CDB), conforme o caso, e dependendo dos poderes que lhes forem outorgados pelas partes[6].

      Portanto, as múltiplas possibilidades de configuração do dispositivo proposto concedem aos sócios liberdade integral para a elaboração do modelo de resolução de suas divergências cuja conveniência agrade aos integrantes do quadro societário.

O grau de urgência atribuído ao litígio também é passível de adaptação. Assim, o tempo de espera e as formalidades processuais inerentes ao procedimento judicial são superados pela possibilidade de autocomposição entre os litigantes, consoante ao princípio da autonomia privada que rege a vida civil. Cabe ressaltar, como mencionado anteriormente, que a opinião técnica dos conselheiros pode tanto fomentar a razoabilidade dos divergentes e a consequente autocomposição entre os sócios, quanto proferir decisões propriamente ditas que ponham fim à disputa.

A fiscalização do grupo de controle e o abuso de seu poder, além da quebra de lealdade por algum dos sócios, são espécies de conflitos societários que podem ser administradas por um dispute board formado por advogados empresarialistas e contadores, sem contar com a possível atuação de profissionais das mais diversas áreas técnicas, de modo a agregar ao escopo das atividades da empresa (uma incorporadora imobiliária poderia contar também com engenheiros, corretores imobiliários e arquitetos, por exemplo).

Para tanto, a reformulação de cláusulas do acordo de sócios que versem acerca das vias de resolução de conflitos internos nas empresas familiares é essencial e deve contar com a institucionalização de um dispute board. Torna-se igualmente relevante a determinação principiológica dos dispute boards voltados para empresas familiares e seus objetivos, isto é: não somente para quê, mas por que instaura-los?

Destarte, a função primordial destes dispositivos é a manutenção do bem-estar do negócio e a conservação do instituto familiar, tão fundamental à estruturação não só da empresa, como da sociedade em geral. O dispute board, então, deve se ater às particularidades da família presente no quadro societário da empresa, prezando pela coesão entre seus integrantes e pela integridade do empreendimento comercial.

Em um segundo momento, torna-se indispensável refletir acerca da viabilidade desta operação.

É preciso considerar que este conselho pode ser nomeado esporadicamente com o surgimento de um novo conflito. Porém, com a alvorada de um novo impasse, é possível que as partes não se disponham a aceitar as indicações dos demais à composição do dispute board, inclusive pela própria natureza subjetiva e fervorosa característica dos conflitos humanos.

É razoável, portanto, vislumbrar o estabelecimento prévio dos quadros de conselheiros em relação ao desentendimento dos sócios, na medida em que é necessário se pensar na guerra em tempos de paz, figurativamente, parafraseando Maquiavel[7]

Sabendo, contudo, da possibilidade da substituição destes profissionais no decurso do tempo, quer por vontade da sociedade, quer por vontade do profissional, torna-se esta matéria inerente a um documento de teor alterável e de natureza aditiva ao acordo de sócios.

A qualificação dos peritos, portanto, deve se dar por meio de contrato, com valor de termo aditivo ao acordo societário da empresa familiar, preferivelmente redigido com cláusulas que tratem da instituição do(s) dispute board(s) e seus devidos poderes outorgados, com deveres e obrigações atribuídos a ambas as partes.

Outras questões também devem ser abordadas neste termo aditivo, a exemplo dos critérios de estipulação dos honorários da atividade consultiva e/ou decisória dos conselheiros.

No mais, as disposições acerca da função, do critério de escolha de membros, da motivação, dos poderes concedidos e das hipóteses de atuação dos dispute boards são inerentes ao próprio contrato societário da empresa familiar, visto que são condições e princípios fundamentais para a segurança jurídica e a devida legitimidade deste apêndice resolutivo.

IV. Conclusão

Por fim, os dispute boards devem ser vislumbrados como uma alternativa em prol do alívio, ainda que mínimo, do fluxo processual inesgotável do Poder Judiciário brasileiro.

Longe de configurarem, necessariamente, resistência à intervenção estatal na vida privada, mas um modo pelo qual será possível dinamizar as relações socioeconômicas de uma era tão veloz quanto a atual, conferindo aos particulares livre iniciativa para a resolução pacífica e conciliadora de seus litígios e ao Estado maior disponibilidade e foco para lidar com questões nas quais sua competência jurisdicional é indispensável, ao contrário das disputas privadas mencionadas

Dito isso, entende-se por pertinente às empresas familiares, pelos motivos acima trazidos, a adoção do sistema de comitês internos de resolução de conflitos societários, ou dispute boards, com o foco principal na conservação dos laços familiares e na preservação da integridade do engarrafado sistema judiciário do país.

 

 

[1] GRZYBOVSKI, Denize; TEDESCO, João Carlos. Empresa Familiar X Competitividade: tendências e racionalidades em conflito. Revista Teoria e Evidência Econômica, Passo Fundo, 1998. vol. 6, n.11, p. 37.

[2] FDC Empresas. 2022. Pesquisa Médias Empresas de Alto Crescimento: Um recorte das empresas de controle familiar. Setembro, 2022.Disponível em:  https://empresas.fdc.org.br/inteligencia/medias-empresas/.

[3] GERSICK, Kelin E.; DAVIS, John A.; HAMPTON, Marion McCollom; LANSBERG, Ivan. De Geração para Geração: ciclos de vida da empresa familiar. São Paulo: Negócio Editora, 1997.

[4] NETO, Jorge Rachid Haber; KERN, Marinho Dembinski. Dispute Boards como Mecanismo de Solução de Controvérsias. In: Soluções Alternativas de Controvérsias Empresariais: Princípios, Mecanismos, Sistemas e Metodologias, vol. 1, Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2017, pp. 233 – 253

[5] VAZ, Gilberto José. Breves considerações sobre os dispute boards no direito brasileiro. In: WALD, Arnoldo (org.). Arbitragem e mediação: mediação e outros modos alternativos de solução de conflitos. Coleção doutrinas essenciais: arbitragem e mediação, vol. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[6] WALD, Arnoldo. A Arbitragem Contratual e os Dispute Boards. In: Revista de arbitragem e mediação. São Paulo, vol. 6, p. 9-24, jul/set, 2005.

[7] MAQUIAVEL, Nicollò, O Príncipe. trad: Dominique Makins (a partir da edição inglesa de W.K. Marriott). Barueri-SP: Novo Século Editora, 2015, p. 116.

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