Direito Agrário:

Entre a propriedade fundiária e a exclusão de grupos marginalizados

Por: Marcos Vítor Evangelista Próbio e Moema Oliveira Rodrigues.

RESUMO

O presente artigo analisa os desafios impostos à reforma agrária e como se estabeleceu a política de inserção da função social da propriedade no ordenamento brasileiro trazida com a constituição de 1988. Em uma leitura histórica da moldura normativa envolvida no Direito agrário com o início da era democrática pós-ditadura de 1964, o artigo expõe barreiras à implementação de uma reforma habitacional que esbarra na lógica de acumulação de riquezas. Incorporado à lógica que favorece os latifúndios o Estado passa estruturar um sistema de injustiças que condiciona a cidadania do indivíduo a seu poder aquisitivo. O combate à negativa do direito à moradia de grupos espoliados no Brasil supera a promulgação da Constituição de 1988 se perpetuando na nova ordem ‘democrática’ através da invisibilização das classes atingidas pela desigualdade, sobretudo no campo.

Reforma habitacional no Brasil e os impasses da cultura jurídica obsoleta à Reforma Agrária

A história da luta por reforma agrária no Brasil ainda hoje é marcada por disputas que expõem a segregação imposta pelo Estado à grupos que lutam pelo Direito à moradia prometida tanto Constituição Federal de 1988, quanto em inúmeros instrumentos normativos que buscaram regulamentar a função social da propriedade. 

No campo, a estagnação das condições de pobreza da população brasileira por meio de ações e omissões estatais que nega aos pobres o acesso à moradia recebe apoio de latifundiários e de grandes multinacionais do agronegócio. A rejeição à reforma agrária de grupos que movimentam em grande proporção a economia brasileira por meio do agronegócio ultrapassam a ingerência política, e, são responsáveis por travar conflitos sangrentos com a população do campo sob a escusa de defesa do património, onde acontecem inúmeras chacinas e mortes violentas de membros de grupos que buscavam o direito à moradia.

O problema da falta de moradia está diretamente ligado à concentração de renda, não só no Brasil a desigualdade social se revela e se intensifica no déficit habitacional. O estabelecimento de metas de controle de moradia em países de Bem Estar Social se tornou essencial para o controle da desigualdade, mesmo que para evitar que fosse piorada pelo problema habitacional. (FURTADO, C. 2002)

Os embates gerados ao redor dos problemas que circundam a efetivação do Direito à moradia no Brasil repercutem em meio social unindo grupos em busca do uso social da propriedade. Em âmbito interno estatal o direito à moradia mobiliza frentes de luta por direitos sociais, alcançando a elaboração de diversas normas em prol da reforma agrária.

Com o início da era democrática brasileira as expectativas acerca do direito de morar uniam frentes populares e fortaleciam movimentos do campo pela reforma agrária. Com o início da assembleia constituinte houve uma emenda proposta pela iniciativa popular de 130.000 eleitores que objetivavam uma reforma urbana (ARRUDA, 2008). A PEC conseguiu inserir no ordenamento a função social da propriedade por meio dos artigos 182 e 183 da constituição, apesar de o exercício do direito só ter sido de fato regulamentada após mais de dez anos, com a lei 10.257 de 10 de junho de 2001, denominada Estatuto das Cidades. (BRASIL, 2001)

Apesar das previsões legislativas, o plano político de reforma agrária não chegou a alcançar grande efetividade, estima-se que, do investimento à nível nacional no setor habitacional, nos anos entre 1995 e 2002, apenas 30% destinou-se a população de baixa renda (BRASIL, 2007). A eficácia do Direito Social Fundamental de moradia na Constituição era ainda comprometida pela adoção práticas internas contrárias ao instituído na Constituição de 1988. (BRASIL, 1988)

Durante ditadura militar iniciada em 1964 no Brasil, com o fim de amenizar a expectativa de reforma agrária, o governo criou isenções e financiou o ingresso de capital no campo, possibilitando a criação de grandes empresas rurais. A nova constituição, portanto, submeteu a reforma agrária à única possibilidade de ocupação de terras chamadas improdutivas, excluindo desta qualificação as terras que, apesar de improdutivas, foram contempladas por projetos elaborados com o objetivo de torna-las produtivas, o que, juntos com outras medidas infraconstitucionais, congelaram a reforma agrária. As medidas apenas foram revistas após a repercussão internacional de um massacre de sem terras que virou notícia em 41 línguas diferentes ao redor do mundo. A mudança, que consistiu na edição de novas leis, não mudou o “ritualismo da apropriação da terra nos efeitos práticos”. (p. 100 BALDEZ 2002) 

As conquistas surgidas através do processo de elaboração de lei no decorrer dos anos incluem, também, a criação do ministério das cidades e, com ele, da secretaria geral de habitação, em 2003. Aos órgãos incumbia a diminuição do déficit habitacional que enfrentava a população da classe baixa. Em 2007 mais um avanço legislativo foi alcançado em favor da reforma agrária, a Lei 11. 481 alterou a previsão legal que versava sobre o parcelamento de solo e incluiu medidas de implementação para uma política fundiária social. (BRASIL, 2007)

A falta de terra para morar de uma parcela da população brasileira alcança desmedidas proporções e agrava a situação de pobreza desse grupo que encontra na negação do direito de moradia mais um impasse ao exercício na cidadania, que em modelos capitalistas se limita de acordo com o poder aquisitivo dos indivíduos. (GERRA; COSTA. 2013)

Resultada da negação do direito à moradia, a necessidade de terra se impõe ao trabalhador rural como outra condição de intensificação da segregação social, à medida que as distorções de princípios do Direito apontam para o comprometimento da ordem legal com o mercado imobiliário e grandes detentores de terra.

Em âmbito interno, a norma fundamental de direito à moradia não consegue alcançar os grupos do campo, nas mesmas circunstâncias, o Estado não demonstra interesse sequer em amenizar a condição degradante que compõe o cotidiano deste grupo, seja pela execução de políticas públicas ou por meio do judiciário. 

Desse modo, os desafios à erradicação do problema da reforma agrária centralizam-se, ainda, na existência de um poder Judiciário de cultura conservadora que defende o interesse de grandes obtentores de terra em contra-posição ao instituto da função social da propriedade cuja força e efetividade não foram alcançados. (MOLINA, 2002) 

Assim, o aparato jurídico institucional brasileiro funciona através de  um sistema de violência estrutural sustentado pela cultura que repercute e intensifica o interesse ligado à propriedade da terra, sendo possível observar, por exemplo, a escusa do provimento do Direito à moradia, tendo como suposto fundamento o princípio da reserva do possível, onde alega-se que o estado não possui reserva financeira para que possa um magistrado ou outro membro do poder público prover direitos essenciais à população, justificativa que vem afastando o poder judiciário da defesa dos direitos fundamentais.

O uso de um princípio para romper os deveres do Estado de garantir o mínimo existencial demonstra ainda o esvaziamento da motivação jusfundamental, estando o ordenamento negando direitos fundamentais por meio da lógica positivista, e constitui por meio do judiciário a impossibilidade da implementação das políticas públicas reguladas pelas leis de habitação popular.

Andreas Krel, ao comparar o uso do princípio da reserva legal no Brasil e a destinação para qual foi criado na Alemanha afirma que o princípio é utilizado de modo equivocado e distorcido e que leva a um controle judicial que compromete a eficácia de Direitos Sociais.

Para Jose Afonso da Silva, a adoção de princípios norteadores que negam a efetividade de direitos gera uma insegurança interpretativa o que leva ao comprometimento da construção de um aparato constitucional de compromisso democrático. (SILVA, A. 1999). 

Observa-se, de modo geral, que a cultura da política brasileira gera uma violência estrutural, que repercute e intensifica o interesse ligado à propriedade da terra (MOLINA, 2002) não só em âmbito administrativo e legislativo, mas judiciário também. 

Frente ao direito à moradia negado à população, observa-se  tanto na tardia regulamentação infraconstitucional da função social da propriedade, quanto na adoção de uma exegese deturpadora de princípios que limitam os deveres democráticos do Estado, a relutância de diversas esferas da burocracia Estatal que restringem a eficácia de Direitos sociais, atuando contra a reforma agrária e comprometendo garantias referentes moradia, cuja tutela não é reconhecida quando se tratam de grupos vulnerabilizados.

A posição do Estado brasileiro, portanto, evidencia que, apesar do reconhecimento do Direito à moradia e a aprovação de inúmeros instrumentos normativos, não há efetividade desses Direitos, havendo ainda a imposição de barreiras às formas alternativas de implementação dessas políticas.

Marcos Vítor Evangelista Próbio é graduando em Direito na Universidade de Brasília (UnB) e membro da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho – AJUP da Universidade de Brasília.

Moema Oliveira Rodrigues é bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB, membra da Assessoria Jurídica Universitária Roberto Lyra Filho da Universidade de Brasília, e pesquisadora no grupo de pesquisa Direito Achado Na Rua.

Referências

ARNAULD, Andre Jean. Direito Entre Modernidade e Globalização. Belo Horizonte: Renovar, 1999. 

ARRUDA, Inácio. Reforma Urbana e Projeto Nacional. São Paulo: Revista Princípios, n. 94, fev/mar, 2008, p. 71-79. Disponível em: <http://revistaprincipios.com.br/artigos/94/cat/739/reforma-urbana-e-projeto-nacional-.html> Acesso em 04/03/2019

BALDEZ, Miguel Lanzellotti: A terra no campo: a questão agrária. In MOLINA, Mônica Castagna et al. Introdução crítica ao Direito Agrário. Brasília: UNB, 2002. Disponível em: < http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/XIVCongresso/003.pdf>

BISOL, Jairo. Judicialização  desestruturante: reveses de uma cultura jurídica obsoleta. In: Alexandre Bernadido (org). Introdução crítica ao Direito à Saúde. Brasília: Universidade de Brasília 2009. p.  327-332.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

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BRASIL. Lei 10.257 de 10 de junho de 2001. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm#:~:text=LEI%20No%2010.257%2C%20DE%2010%20DE%20JULHO%20DE%202001.&text=Regulamenta%20os%20arts.,urbana%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.&text=Art.,de%20que%20tratam%20os%20arts.> Acesso em 03.08.2018.

BRASIL, Lei 11.481, de 31 de maio de 2007. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11481.htm> Acesso em 09/03/2020.

FURTADO, Celso. Em busca de novo modelo: reflexões sobre a crise contemporânea, 2ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002, pp. 17-19.

GUERRA, G. R.; COSTA, A. B. Direito a que cidade: A construção social do direito à moradia e ao convívio dignos na paisagem urbana. In: COSTA, A. B. (Ed.). . Direito Vivo: leituras sobre constitucionalismo, construção social e educação a partir do Direito Achado na Rua. Brasília: Universidade de Brasília, 2013. p. 105–38. 

MOLINA, Monica. A legitimidade do conflito: onde nasce o novo Direito. In: Monica Castagna (Org.). Introdução crítica ao Direito Agrário. Brasília: Universidade de Brasília, 2002. p. 29-36.

OLIVEIRA, Eldécia Viga de. Uma janela histórica: regulamentação da reforma agrária. In: Monica Castagna (Org.). Introdução crítica ao Direito Agrário. Brasília: Universidade de Brasília, 2002. p.165-175.

PRESSBURGUER, Tomas Miguel. A reforma Inacabada. In: Monica Castagna (Org.). Introdução crítica ao Direito Agrário. Brasília: Universidade de Brasília, 2002. p. 113-120.

SARLET, Ingo. A eficácia dos Direito Fundamentais: Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na perspectiva constitucional. 13ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34ª ed., São Paulo: Malheiros, 2011.

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