- Introdução – Luta por Direitos:
Foi no dia primeiro de maio de 1943 que o Presidente Getúlio Vargas se dirigiu à sacada do Ministério de Trabalho, situado na então capital, o Rio de Janeiro, para anunciar aquela que seria considerada a maior conquista do movimento trabalhista do país até o momento – a Consolidação das Leis do Trabalho. A novidade, contudo, não partia da bondade e generosidade do Presidente – ao perceber que a organização dos trabalhadores resultaria inevitavelmente na conquista de mais direitos, Vargas tomou para si a função de “salvador da pátria” e promulgou a CLT com o objetivo de apaziguar a insatisfação dos proletários e sufocar as chances de uma insurreição comunista. Esse momento emblemático para a luta proletária brasileira iria ditar, de certa forma, o tom das conquistas subsequentes dos trabalhadores.
Não obstante as intenções de Vargas, a CLT tornou-se de fato um símbolo de vitória para a luta trabalhista, e figura até hoje como um mecanismo de proteção e garantia dos direitos arduamente conquistados pelo proletariado. Nas décadas seguintes, a organização dos trabalhadores resultou em diversos avanços na luta por direitos, como a limitação da jornada de 8 horas diárias, o seguro-desemprego, o direito a greve, a criação do 13º salário, entre outros. No entanto, muitos desses avanços foram interrompidos ou até mesmo desfeitos por conta de retrocessos ocasionados no período da Ditadura Militar, após o golpe de 1964, e viriam a ser recuperados e ampliados somente com a proclamação da Constituição Federal de 1988 e com o retorno da democracia. Dentre as principais marcas deixadas pelo governo militar na legislação trabalhista estavam a proibição do direito a greve e da diminuição da idade mínima de trabalho para 12 anos.
Na década de 90, a recessão econômica e o avanço das pautas neoliberais figuraram entre as mais proeminentes causas de uma ordem de esvaziamento das conquistas sociais firmadas no texto constitucional. Os processos de precarização do serviço e privatização dos recursos estatais, que chegaram ao seu auge com a eleição do Presidente Fernando Henrique Cardoso, seguiram firmes durante grande parte do governo Lula, em especial durante seu primeiro mandato (2003-2006). Nesse contexto, mantiveram-se as estruturas hegemônicas de dominação do capital e monopólio da terra, isso quando não foram ampliadas e incentivadas pelo governo. Contudo, foi após o dia 12 de maio de 2016 que a luta pelos direitos do trabalhador brasileiro sofreu seu maior baque desde a ditadura militar – com o golpe jurídico-parlamentar que arrancou de seu cargo a Presidenta Dilma Roussef, o novo governo de Michel Temer não hesitou a pôr em prática reformas e medidas de austeridade, como a Reforma da Previdência e a Reforma Trabalhista, que buscaram silenciar as conquistas sociais, ao passo que fortaleceram a acumulação de capital pelo empresariado e a precarização do trabalho.
Essa prática executiva, judiciária e legislativa de enfraquecimento da classe trabalhadora se acentuou ainda mais com o governo Bolsonaro e com as medidas de terceirização e flexibilização tomadas nesse período, que, em conjunto com a pandemia de Covid-19, marcaram uma época de perdas imensuráveis ao proletariado e sua luta por dignidade. É nesse contexto que ganha tração a reivindicação pelo fim da escala 6×1, dessa vez durante mais um governo do PT, eleito justamente através de suas promessas de fortalecimento dos direitos sociais e da condição dos trabalhadores brasileiros.
- O direito à vida além do trabalho:
A discussão a respeito da escala de trabalho 6×1 – em que o trabalhador labora por seis dias consecutivos, com apenas um dia de folga – tomou grande notoriedade nos últimos dias, após a deputada federal Erika Hilton apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), em apoio ao movimento Vida Além do trabalho (VAT), para solicitar a revisão da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT): “Não dá para viver só um sétimo da própria vida, não existimos apenas para trabalhar. Nossa Lei precisa mudar” afirmou a deputada. A PEC ultrapassou o número mínimo de assinaturas necessárias para tramitar, evidenciando a urgência de repensar o papel e espaço do trabalho na vida das pessoas, e os limites que devem ser observados para garantir a qualidade de vida e o bem-estar dos trabalhadores.
Argumentos contrários ao fim da escala 6×1, geralmente apresentados por empresários e setores da economia que priorizam a continuidade das operações, ignoram um ponto central: a proteção dos direitos dos trabalhadores não pode ser avaliada a partir da perspectiva empresarial, visto que estes argumentos são provenientes de um raciocínio neoliberal que desqualifica os trabalhadores enquanto seres humanos, colocando-os como meros instrumentos de produção. Enquanto as empresas desfrutam dos benefícios financeiros de manter uma escala rígida, os trabalhadores pagam o preço com sua saúde e bem-estar, visto que, ao serem submetidos a jornadas desgastantes, têm sua saúde comprometida. De acordo com estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), as longas jornadas de trabalho são responsáveis por cerca de um terço do total estimado da carga de doenças relacionadas ao trabalho, estabelecendo-se como o fator de risco com a maior carga de doenças ocupacionais.
Nesse contexto, o movimento pelo fim da escala 6×1 emerge como uma resposta aos desafios impostos pelo capitalismo, onde a exploração intensiva da força de trabalho é priorizada em detrimento do bem-estar humano. De acordo com Marx, no modo de produção capitalista, o trabalhador produz não para si, mas para o capital, sendo produtivo o trabalhador que produz mais-valor para o capitalista ou serve à autovalorização do capital. Este modelo evidencia a visão desumanizada do trabalhador, que é tratado como um instrumento de capitalização, não se beneficiando da própria força de trabalho. Assim, ao limitar o tempo de descanso para apenas um dia na semana, privando o trabalhador de seu tempo como individuo, a lógica neoliberal capitalista restringe suas oportunidades de desenvolvimento humano, reduzindo-o a um meio para alcançar os objetivos econômicos do empregador. Tal lógica ignora o direito fundamental ao descanso e ao lazer, bem como a necessidade de espaços que permitam o desenvolvimento integral do trabalhador, impedindo a existência de uma vida além do trabalho.
Dessa forma, após concluir que a produtividade empresarial não pode se sobrepor ao direito do trabalhador a condições dignas e saudáveis de trabalho, vale ressaltar que o argumento de que o fim da escala 6×1 prejudicaria as empresas e a economia do país também não deve prosperar. A possibilidade de reduzir a escala para jornadas menos intensivas, com dias de descanso mais frequentes, permite que os trabalhadores se recuperem física e mentalmente, trazendo ganhos em qualidade de vida e, potencialmente, em produtividade. Estudos da OMS e da AIT apontam que a extensão das jornadas sem pausas adequadas prejudica a qualidade de vida e o desempenho no trabalho, reduzindo a capacidade de concentração e aumentando o risco de acidentes. Cabe acrescentar que o Brasil é o segundo país com mais casos de síndrome de burnout, acometendo aproximadamente 30% dos trabalhadores brasileiros, doença ocupacional reconhecida pela OMS causada por excesso de trabalho e situações desgastantes, fato que pode ser relacionado aos longos períodos de trabalho sem descanso. Logo, este cenário causa desmotivação, cansaço excessivo, risco de erros, diminuição da produtividade, consequentemente prejudicando também as empresas. Assim, ao persistirem na escala 6×1, empresas estão negligenciando o potencial e, acima de tudo, a saúde dos trabalhadores em nome da suposta eficiência.
- Estado da luta por dignidade:
O capítulo atual da luta pelo fim da escala 6×1 se deu a partir de mobilizações dos trabalhadores nas redes sociais que, cansados pela exploração degradante do sistema de trabalho, externaram suas indignações e conseguiram dar repercussão a seus desabafos e propostas. Neste contexto estava o então balconista de farmácia Rick Azevedo (PSOL-RJ), hoje vereador eleito, que participou ativamente das mobilizações e se consagrou como fundador do movimento VAT – Vida Além do Trabalho. A partir dos esforços de protesto e divulgação da causa, o VAT, em conjunto com outros movimentos sociais e setores de organização proletária, conseguiu trazer o pleito dos trabalhadores aos holofotes de todo o país. Contando com diversas manifestações e eventos de mobilização pública ao longo do último ano, entre eles uma petição virtual que já soma mais de 2,9 milhões de assinaturas, a luta por dignidade tornou-se impossível de ser ignorada pela mídia tradicional e atraiu a atenção dos agentes burgueses, os responsáveis e maiores beneficiários da degradação da classe trabalhadora.
Desse modo, teve início o período mais desafiador da luta até então. Em parceria com a Deputada Federal Erika Hilton (PSOL-SP), o VAT protagonizou a divulgação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que tem como objetivo inserir na Constituição Federal a proibição da jornada de trabalho 6×1, limitando a carga horária de trabalho para 36 horas semanais. A proposta necessitava de 171 assinaturas parlamentares para que pudesse começar a tramitar institucionalmente na Câmara dos Deputados, e, por conta da mobilização nacional dos trabalhadores e da pressão social em cima dos representantes eleitos do povo, conseguiu alcançar a marca. Agora, resta à PEC ser analisada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara, para que enfim possa ser discutida e aprovada em plenário. Espera-se que o processo seja conduzido de forma transparente e participativa, um desafio frente a enorme influência da burguesia e dos setores conservadores sobre grande maioria dos deputados e senadores, dentre eles a própria presidente da CCJ, Caroline de Toni (PL-SC).
No entanto, apesar dos avanços significativos, a luta por dignidade ainda enfrenta muitos obstáculos, seja no âmbito institucional, político ou social. Como costuma acontecer com as reivindicações dos trabalhadores brasileiros (à exemplo da proclamação da CLT mencionada anteriormente), a mobilização popular, que demonstrou sua força com os protestos realizados por todo o país na data da Proclamação da República (15/11), não foi bem recebida de início por alguns agentes estatais. Após defender a discussão da pauta por meio de acordos coletivos entre empregadores e empregados, sabendo do estado de esvaziamento dos sindicatos e de disparidade de forças das negociações nesse âmbito, o Ministro do Trabalho Luiz Marinho (PT-SP) voltou atrás (apenas após as manifestações populares do dia 15/11) e manifestou publicamente o apoio à PEC, entrando para o rol de ministros do Governo Lula que declararam seu apreço à proposta, a despeito do silêncio do presidente. Infelizmente, persistem na luta contra o direito dos trabalhadores personalidades como o atual presidente do Banco Central, entre outros agentes outrora relevantes ao país.
- Conclusão – De encontro aos Desafios:
A partir de todo o processo de mobilização social e articulação política que tomou conta do país nos últimos dias, resta à classe trabalhadora e a outros setores sociais permanecerem unidos em prol do fim da escala 6×1 e da desumanidade que marca o mercado de trabalho, pressionando seus representantes institucionais e articulando-se internamente como os únicos defensores dos direitos sociais, em frente aos tantos opositores poderosos. A luta do proletariado é sempre protagonizada por ele, e as conquistas derivadas desse processo não pertencem ao presidente que as reconhece ou ao político que as propõe – mas sim ao trabalhador, reconhecido como sujeito de direitos. Afinal, a conquista dos direitos sociais não parte da classe política, empresarial ou burocrática, mas da única classe revolucionária que existe, a classe trabalhadora, que traz nas mãos o futuro.
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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Tradução de Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998. Página 49.
Os autores:
Samuel Leão Marrara: Graduando em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) da Faculdade de Direito da UnB.
Giovanna Melgaço Barbosa: Graduanda em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membra do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) da Faculdade de Direito da UnB.