Constitucionalismo Sul-Africano: Transformação, democracia e aparato jurídico-político

Por: Gabriel Cabral Furtado

A importância do debate acerca do desenho constitucional de cada Estado ultrapassa a mera circunscrição conceitual, em sentido estrito do termo, e se expande para o estudo de outros conceitos-chave no cenário do Direito Constitucional Comparado, como as ideias de resiliência das constituições e de estabilidade democrática. O arranjo institucional possui forte influência no sentido de determinar o que faz a constituição durar mais em alguns países do que em outros, bem como a força do regime democrático respectivo. 

Nesse sentido, as previsões acerca da articulação dos poderes, organização das formas jurídicas, previsão e garantia de direitos pelo aparelho estatal, forma de governo, partidarismo, federalismo, alterações constitucionais, eleições e outros fatores são fundamentais para determinar a estabilidade da democracia de um país. Ademais, dependendo do arranjo institucional e de outros fatores sociopolíticos, a democracia pode ser enfraquecida em casos de constitucionalismo abusivo ou competitivo e de autoritarismos explícitos ou velados, eventos que utilizam do próprio desenho institucional do Estado para seu sucesso[1].

O estudo do Direito Constitucional Comparado tende a se direcionar aos Estados que demonstram forte influência ocidental, tanto pelos seus ordenamentos, quanto pela configuração das Supremas Cortes. Ainda nesse cenário, outro fator significante é a preferência e predominância da língua inglesa, no sentido de contornar empecilhos linguísticos. A África do Sul encaixa-se em tais premissas. 

A Constituição sul-africana é concebida como “lei suprema” por fornecer a base legal para a existência da república, estabelecer direitos e deveres dos cidadãos e definir estruturalmente o governo. Este funciona segundo um sistema parlamentar, no qual o Presidente é concomitantemente chefe de estado e chefe de governo, sendo eleito em uma sessão conjunta do parlamento bicameral – constituído de uma Assembleia Nacional (National Assembly) ou câmara baixa e um Conselho Nacional de Províncias (National Council of Provinces) ou câmara alta. 

A constituição atual da África do Sul[2], a quinta do país, foi elaborada pelo parlamento eleito em 1994, sancionada pelo presidente eleito Nelson Mandela em 1996 e entrou em vigor a partir de 4 de fevereiro de 1997. No cenário hodierno, tal constituição se aproxima a uma Constituição Forte, diferentemente do verificado majoritariamente no continente africano, que detém uma grande quantidade de sham constitutions[3] — isto é, de constituições que prevêem formalmente numerosos direitos fundamentais, os quais não são, porém, observados de forma material e efetiva na prática da sociedade. Dessa forma, apesar de não estar contida na lista mundial das constituições mais fortes, é considerada próxima àquelas que prometem muitos direitos e os fazem verificar na prática. 

A evolução constitucional sul-africana desde o século XX ao atual é notável: ela não figura mais entre as constituições mais fracas (como figurava em 1981) e jamais figurou entre as piores sham constitutions. Criticamente, houve uma sensível melhora em termos de amplitude de direitos, em virtude também das condições de instituição da constituição atual e de verificação prática na vida dos cidadãos, fato que contribui para um cenário de maior resiliência constitucional e estabilidade democrática.

O sistema jurídico sul-africano é misto, baseado no Civil Law romano-holandês, no Common Law inglês e no direito consuetudinário. A estrutura jurídica do Estado, por seu turno, é composta pelo Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal de Justiça, Tribunais Superiores e Tribunais Magistrados. Do ponto de vista da relação entre os poderes, a Constituição sul-africana pode ser concebida como um documento moderno, vez que regula a separação dos poderes no âmbito dos três órgãos de governo.

 Nesse contexto, o Tribunal Constitucional sul-africano, na prática o árbitro e guardião dos princípios da constituição e moderador de conflitos (jurisprudência interventiva em questões sociais e justiça restaurativa), pressiona o executivo em suas ações. Estas devem estar em conformidade com os valores constitucionais da República – definida como Estado democrático – a saber: dignidade humana, busca da igualdade e avanço dos direitos humanos, liberdades, luta contra o racismo e discriminação sexual, supremacia constitucional em relação às demais normas jurídicas e sufrágio universal.

Quanto à existência de um Bill of Rights, o constitucionalismo da África do Sul é um modelo. A constituição, instituída em um contexto pós-regime segregacionista do Apartheid (este liderado pelo Novo Partido Nacional sul-africano e que perdurou entre 1948 e 1994), foi inspirada no Bill of Rights inglês, de modo a conter, logo em seu capítulo segundo, um Bill of Rights próprio. 

Esse processo de reconstrução nacional e reconciliação social envolveu muitas lutas, as quais levaram a fundamentais conquistas, como a liberdade religiosa, casos relacionados à economia social, o reconhecimento do casamento homoafetivo, a igualdade de status entre homens e mulheres, a garantia do direito ao voto para os presos e a participação indígena e tribal. Os inúmeros avanços sociais verificados levam a Constituição à classificação de Constituição Social, configurando um novo começo

Promulgada em uma onda constitucional em reação a regimes de restrição de direitos sociais, em contexto semelhante às ditaduras militares latino-americanas, a Constituição sul-africana engloba a prevalência de valores típicos do Welfare State e a força crescente dos direitos fundamentais e individuais. Ademais, tal constituição é progressista – porque além de proteger os cidadãos dos excessos do Estado, requer do governo a proteção do interesse público no conflito com outras instituições. Nessa sequência, é também classificada como uma constituição liberal e se encaixa em uma concepção de constitucionalismo transformador da realidade restritiva em que foi concebida, a partir do Direito e de forma pacífica.

Como todas as constituições modernas, a Constituição sul-africana prevê um modelo próprio de emenda pelo Parlamento, que pode modificar qualquer dispositivo da Carta de Direitos, e prescreve procedimentos especiais para efetivá-la. Um projeto de lei que altera qualquer disposição constitucional deve ser aprovado pela Assembleia Nacional, com um voto de apoio de pelo menos dois terços de seus membros, e pelo Conselho Nacional de Províncias, com um voto de apoio de pelo menos seis dos nove membros. Importa ressaltar, ainda, que uma emenda constitucional não pode ser incluída em outro projeto de lei que lida com outros assuntos para garantir sua aprovação. 

A força atribuída ao Tribunal Constitucional de realizar um controle de constitucionalidade enseja aplicação da Teoria das Emendas Constitucionais Inconstitucionais, pois há possibilidade de veto de alterações que vão de encontro a valores constitucionalmente preconizados. Desde 1996, a constituição foi formalmente alterada por dezesseis emendas e dezessete já promulgadas, mas ainda não em vigor, não se verificando, portanto, uma cultura de emendas.

Segundo Richard Albert[4] (2012), o sistema de emendas da África do Sul encaixa-se no modelo substantivo, que afirma que emendas à constituição podem ser invalidadas de acordo com o espírito da própria constituição, por mais que estejam em conformidade com o texto constitucional. Do ponto de vista constitucional comparado, ainda, o processo de mudança constitucional formal na África do Sul é restrito e de procedimento único[5]. O autor expande a concepção das regras de emenda constitucional formal como as gatekeepers do texto constitucional, sendo relevante para distinguir esse texto das leis ordinárias e para autorizar os autores políticos a melhorarem a constituição ao mesmo tempo em que limitam a atividade desses sujeitos.

Trazendo o enfoque para a questão democrática, Elkins[6] (2009) defende a desagregação conceitual da democracia para avaliação de sua estabilidade ou decadência. Em sequência, evoca Dahl ao referenciar dois importantíssimos elementos democráticos: competição e participação (eleições competitivas e participativas realizadas em um contexto de direitos e liberdades de ideias). O jogo democrático envolve, também, o direito de fiscalizar os candidatos a cargos públicos e um sistema de transparência e accountability

Uma ideia essencial é a de que a democracia verdadeira inclui algum elemento de limitação ao Executivo, o que pode ser verificado no caso sul-africano a partir do papel do Tribunal Constitucional, de um relacionamento executivo-legislativo autorregulatório e de um judiciário independente. Esses fatores fortalecem o papel das cortes constitucionais como atores críticos na aplicação da constituição, de forma a limitar, assinalar e pressionar os demais poderes no sentido de proteger os valores constitucionais. Hirschl[7] (2014) muito bem aponta, nesse caminho, para uma tendência progressista da Corte sul-africana de encobrir uma histórica segregação.

A democracia na África do Sul, apesar de classificada como flawed democracy ou “democracia imperfeita” pelo Democracy Index[8], encontra-se atualmente mais estável que a de seus vizinhos, do ponto de vista do equilíbrio entre polarização e “estadualização”. Isto é, comparativamente, há um maior grau de oposição de ideias e, ao mesmo tempo, permissibilidade à governança democrática. No entanto, é imperioso destacar que, embora esteja melhor do que seus vizinhos, a África do Sul lida fortemente com escândalos de corrupção, com a prevalência de um único grande partido no plano nacional e com dificuldades de controlar mais diretamente esse sistema.

Todavia, verificou-se, principalmente no período histórico subsequente à promulgação da nova constituição, uma cultura política de massas, calcada na confiança, na tolerância e na recepção ao regime democrático, em oposição ao restritivo-segregacionista. Ademais, o país não passa por um período de decadência democrática, abuso constitucional ou autoritarismo velado. Isto se afirma pois há adoção de mecanismos coibitivos, tais como um sistema de emendas constitucionais em nível nacional e provincial; separação clara de poderes; judiciário fortemente independente e que pressiona o executivo; judicial review e um modelo de convergência, conforme aponta Vicki Jackson[9] (2006), de incorporação de leis internacionais como forma de controle das normas legais internas (cortes constitucionais internacionais).

O arranjo institucional sul-africano dificulta movimentos que se utilizam de alterações constitucionais formais para enfraquecimento democrático ou de atitudes e estratégias que parecem democráticas, mas não o verdadeiramente são. Evita-se um cenário de decadência, caracterizado por tentativas de subjugar o poder judiciário ao executivo, de desequilibrar o sistema de freios e contrapesos, e de concentrar o poder no executivo – dando margem para o controle de todas as esferas do governo e levando ao autoritarismo. Em um possível cenário de crise democrática, o Tribunal Constitucional poderia atuar para impedir que o Estado violasse o texto constitucional.

Por último, coloca-se que a noção de Constitucionalismo vai além do texto constitucional, englobando desenho constitucional, modelo de organização político-jurídico, evolução material, formal e informal dos documentos, e conceitos de povo e de democracia. A democracia, como expressão da voz da maioria, necessita do constitucionalismo como forma de limitação para, dentre outras consequências, evitar o perigo das facções. O constitucionalismo, sob outro vértice, depende da democracia como forma de legitimação. Tem-se, portanto, um paradoxo binomial entre possibilidade e limitação. 

A submissão de ambos a riscos, ciclicamente em alguns Estados, evoca a necessidade de elaboração de mecanismos de proteção da democracia constitucional. Nesse sentido, o judicial review – como sistema de verificação e correção da conformidade de um ato em relação à constituição –, o desenho das regras de emenda constitucional – a saber, quanto aos quóruns necessários e à restrição de matérias passíveis de alteração ou vigência constitucional –, a doutrina de “emendas constitucionais-inconstitucionais” – em conceder poder às Cortes para derrubarem projetos de emenda que firam a essência constitucional –, e as cláusulas de democracia, em um contexto de transição do regime democrático para um não democrático, são alguns dos elementos que contribuem para a resiliência constitucional e democrática, essencial à estabilidade política e à governança de modo geral.


Gabriel Cabral Furtado é graduando em Direito pela Universidade de Brasília. Estagiário na Defensoria Pública da União (DPU-DF). Membro do Grupo de Estudos “Observatório da LGPD/UnB”. Pós-júnior da Advocatta.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

[1] BLOUNT, Justin; ELKINS, Zachary; GINSBURG. Does the Process of Constitution-Making Matter? In: GINSBURG, Tom.

[2] The South African Constitution. Disponível em <http://www.justice.gov.za/legislation/constitution/constitution.htm > Acesso em: 30 jun. 2020.

[3] LAW, D. S.; VERSTEEG, M. “Sham Constitutions”. California Law Review, v. 101, n. 863, p. 863, 2013

[4] ALBERT, Richard. The Structure of Constitutional Amendment Rules. Wake Forest Law Review, v. 49, p. 913-975, 2014. Comparative Constitutional Design. Cambridge: CUP, 2012, p. 31-68.

[5] KEOGH, Bryan . Explainer: what’s involved in changing South Africa’s Constitution Disponível em <https://theconversation.com/explainer-whats-involved-in-changing-south-africas-constitution 101044> Acesso em: 30 jun 2020

[6] ELKINS, Z. “Is the Sky Falling? Constitutional Crises in Historical Perspective”. In: Graber, M. A.; S. Levinson et al. Constitutional Democracy in Crisis? Oxford: Oxford University Press, 2018

___________, T GINSBURG, & J MELTON, The Endurance of National Constitutions, Cambridge University Press, Cambridge, 2009.

[7] HIRSCHL, Ran. Comparative Matters: The Renaissance of Comparative Constitutional Law. First edition. Oxford: Oxford University Press, 2014. (Introdução, Capítulos 5 e 6).

[8] Índice do The Economist que avalia a democracia das nações com base em cinco critérios: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis. Os países são classificados em “democracias plenas”, “democracias imperfeitas”, “regimes híbridos” e “regimes autoritários”. Na classificação de 2019, a África do Sul alcançou alta nota no critério de participação política (8,33), porém baixa no de cultura política (5,00), recebendo a categoria flawed democracy.

[9] JACKSON, Vicki C. Constitutional Comparisons: Convergence, Resistance, Engagement. Harvard Law Review, v. 119, p. 109–128, 2006.

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