Gabriel Pereira Silva[1] e Leandro Mateus dos Santos Valente[2]
Não muito raro nos deparamos com a divulgação de notícias nos meios de comunicação de que determinada empresa X ou Y entrou em regime de recuperação judicial a fim de contornar uma falência iminente.
Um dos mais casos mais recentes e emblemáticos foi o da gigante varejista Americanas S.A.[3], que identificou um rombo bilionário em seus balanços contábeis e não teve outra saída a não ser entrar com um plano de recuperação judicial, aprovado em dezembro do ano passado, a fim de tentar viabilizar a manutenção do seu funcionamento.
Como se demonstrará adiante, nos últimos tempos a recuperação judicial passou a ser utilizada com certa frequência não somente por empresas, como sempre ocorreu, mas também por clubes de futebol brasileiros. Qual é o motivo por trás disso?
Inicialmente, o que é a recuperação judicial e quais são suas principais serventias?
Disciplinada pela Lei n. 11.101/2005[4], a recuperação judicial é um processo legal que tem por objetivo renegociar as dívidas e viabilizar a superação de situação de crise econômico-financeira de certa empresa devedora, como se observa de seu art. 1º:
Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor.
A partir dessa premissa, esse instituto visa permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e, ainda, satisfazer os interesses de seus credores. Dessa forma, promove a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica sem, contudo, lesar aqueles com quem ela possui obrigações.
Assim, a empresa que tem o seu pedido de recuperação judicial deferido consegue tempo e meios para se reorganizar – internamente e em conjunto com o juízo da recuperação e seus credores –, de modo a não falir e poder continuar a exercer sua atividade econômica.
Isso somente é possível pois são adotadas algumas medidas, a exemplo da suspensão das execuções ajuizadas contra a empresa e a proibição da constrição dos seus bens patrimoniais para fins de adimplemento de dívidas. Outra ferramenta fundamental garantida pelo instituto é o da renegociação das dívidas junto aos credores, estabelecendo prioridades e ordem de cumprimento das obrigações através de um plano específico para tanto.
Uso da recuperação judicial ou extrajudicial por clubes de futebol
Apesar de inicialmente ser destinada apenas ao empresário e à sociedade empresária – entendidos no sentido estrito da palavra, isto é, empresas que visam o lucro –, o remédio da recuperação judicial foi estendido aos clubes de futebol com a promulgação da Lei n. 14.193/21[5].
Essa recente Lei é fruto de um movimento global de expansão da exploração financeira de clubes de futebol, tornando-os verdadeiras atividades empresariais que, em alguns casos, chegam a superar a essência desportiva de certos clubes. Nessa linha, a Lei n. 14.193/21 regulamentou o modelo de Sociedade Anônima do Futebol (SAF), já utilizada por alguns clubes de futebol brasileiros, e conferiu novo regramento ao tratamento das dívidas (passivos) dos clubes de futebol de modo geral.
No que ora nos interessa, importa dar destaque a alguns artigos da Lei n. 14.193/21. Em primeiro lugar, o § 1º, I, do art. 1º dispõe o seguinte:
§1º Para os fins desta Lei, considera-se:
I – clube: associação civil, regida pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), dedicada ao fomento e à prática do futebol;
Desse dispositivo se extrai, com a mais simples e direta interpretação, o que a Lei entende por “clube”: associações civis, regidas pelo Código Civil de 2002, que se dediquem ao fomento e à prática do futebol.
Essa definição é fundamental para entender a amplitude do art. 13, II, do mesmo diploma, que trouxe justamente a possibilidade de recuperação judicial ou extrajudicial para os clubes de futebol, inovação ora em comento (grifos acrescidos):
Art. 13. O clube ou pessoa jurídica original poderá efetuar o pagamento das obrigações diretamente aos seus credores, ou a seu exclusivo critério:
II – por meio de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.
Tal dispositivo alcança não somente as SAF’s – como se poderia concluir em uma leitura menos atenta da lei – mas todos os clubes de futebol. Dessa forma, a partir desse entendimento legal, os tribunais nacionais vêm permitindo o uso da recuperação judicial para clubes que não necessariamente sejam constituídos por Sociedades Anônimas do Futebol.
Por fim, vale dar destaque ao próprio preâmbulo da Lei das SAF’s (grifos acrescidos):
Institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de […] tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico; e altera as Leis nºs 9.615, de 24 de março de 1998, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)
Percebe-se, portanto, a evidente permissão para que mesmo um clube de futebol que não tenha, necessariamente, fins lucrativos – requisito essencial para a caracterização da atividade empresarial – possa utilizar o processo da recuperação judicial, nos termos da Lei n. 11.101/05.
Essa ponderação e percepção é fundamental para evitar eventuais confusões, pois, à primeira vista, ao fazer uma leitura isolada do art. 1º da Lei de recuperação judicial, extrajudicial e falência o leitor pode imaginar que apenas os clubes constituídos por Sociedades Anônimas do Futebol estariam autorizados a utilizar o instituto da RJ. Com efeito, o que se compreende a partir da análise da Lei das SAF’s é que o uso de tal instituto se estende a todos os clubes de desportos do futebol, sejam eles integrantes de sociedades empresárias ou não.
Casos recentes de clubes de futebol que utilizaram o instituto da recuperação judicial ou extrajudicial
Inicialmente, vale comentar os casos do Figueirense Futebol Clube e da Associação Portuguesa dos Desportos, que, a despeito de não se utilizarem da Lei das SAF’s para fundamentar os seus pedidos de recuperação judicial, são representativos da discussão em tela.
Pode-se dizer que o Figueirense “furou a largada” na “corrida pela recuperação judicial” em clubes de futebol. Antes mesmo da Lei das SAF’s entrar em vigor, o Figueirense já havia ingressado com seu pedido de recuperação judicial, fundamentado, principalmente, na natureza empresarial das atividades de um clube de futebol, mesmo que seja legalmente uma associação civil. O pedido do clube foi deferido após a promulgação da Lei das SAF’s, no final de 2021, e, ainda que não a tenha usado como embasamento para o pedido da RJ, foi um marco inicial do entendimento de que clubes de futebol têm, sim, direito a tal remédio.
Por sua vez, embora não tenha ingressado com um pedido de recuperação judicial, a Associação Portuguesa dos Desportos também foi parte em um processo que se mostra de grande importância para a solidificação do entendimento de que os clubes não-empresas também podem ser amparados pela Lei n. 11.101/05, bem como para sedimentar a ideia de que a Lei n. 14.193/21 conferiu os mesmos direitos e tratamentos tanto aos passivos das sociedades anônimas do futebol quanto aos clubes de futebol (associações civis).
Na ocasião, a Portuguesa requereu a instauração de regime centralizado de execuções, com fulcro nos artigos 14 a 24 da Lei nº 14.193/2021. Esse regime está previsto no art. 13, I, da Lei das SAF’s e possibilita a concentração tanto das execuções cíveis quanto das trabalhistas em um único juízo, o que evita eventuais cobranças que extrapolem as capacidades da empresa e conflitos de competência jurisdicional.
Por mais que, a princípio, o pedido de centralização das execuções não pareça ter conexão com a recuperação judicial, observa-se que o art. 14 regula exatamente as hipóteses do art. 13, incluindo a hipótese do inciso II, que dispõe sobre a RJ. Dito de outra forma, ao entender que o clube teria direito ao regime centralizado de execuções, o TJSP reconhece a validade da aplicação de todo o art. 13 não só às SAF’s como também aos clubes de futebol.
Feitos esses destaques, a inovação legal que conferiu novo tratamento aos passivos dos clubes de futebol parece ter sido bem recebida pelas associações do desporto, haja vista que diversos clubes – SAF’s ou não – já ingressaram com pedidos de recuperação e obtiveram êxito no pleito.
É o caso da Associação Chapecoense de Futebol, popularmente conhecida apenas como Chapecoense, que ingressou com pedido de recuperação judicial no juízo da 1ª Vara Cível da Comarca de Chapecó/SC. O clube fundamentou o pedido de recuperação na sua situação de crise econômico-financeira originada, principalmente, em razão do acidente aéreo que ocorreu em novembro de 2016 e o posterior rebaixamento que sofreu para a Série B do futebol brasileiro. O pedido da Chapecoense foi deferido com fundamento, entre outros, justamente na previsão contida na lei em comento.
Sob circunstâncias muito similares a da Chapecoense, diversos outros clubes de futebol tiveram seus planos de recuperação judicial deferidos. São os casos do Avaí Futebol Clube, do Sport Club do Recife, do Clube Náutico Capibaribe, do Santa Cruz Futebol Clube, do Coritiba Foot Ball Club e outros.
Por sinal, o caso do Coritiba Foot Ball Club é emblemático, pois foi um dos poucos clubes – talvez o único até o momento – que teve a aprovação de formação e venda de sua SAF deferida pelo próprio plano da recuperação judicial aprovada enquanto ainda era apenas uma associação civil[6].
Pontua-se que também há, por óbvio, clubes que se enquadram no novíssimo modelo da Sociedade Anônima de Futebol e igualmente se valeram desse remédio legal. É o caso do Botafogo Futebol e Regatas que, recentemente, entrou com pedido de recuperação extrajudicial – que possui a mesma regulamentação que a recuperação judicial – para buscar liquidar passivos que somam cerca de R$ 404,9 milhões[7]. Foi também o caso do Cruzeiro Esporte Clube que, na condição de SAF, teve homologado seu plano de recuperação judicial em 2023.
Em conclusão, pode-se afirmar que a adesão ao uso da recuperação judicial por clubes de futebol brasileiros que se encontram em situações econômico-financeira delicadas cresce cada dia mais, o que só é possível a partir da consolidação do entendimento de que esses clubes desempenham papel econômico importante e devem ser contemplados por remédios jurídicos que viabilizem a manutenção de suas atividades.
[1] Aluno da graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Estagiário do escritório de advocacia Dias de Souza. Monitor da disciplina “Direito Processual Civil 3” da FD/UnB, ministrada pelo professor Doutor Benedito Cerezzo Pereira Filho.
[2] Aluno da graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Estagiário do Gabinete da Vice-Presidência do STJ (Min. Og Fernandes). Monitor das disciplinas de “Direito de Família” e “Direito Romano e Direito Civil Contemporâneo”, ministradas pelo professor Dr. João Costa-Neto. Pesquisador do programa de iniciação científica da UnB, com bolsa concedida pelo CNPq, sob orientação do professor Dr. João Costa-Neto.
Referências
[3] MIATO, Bruna. Americanas, 123 Milhas, Starbucks: as empresas que entraram em recuperação judicial ou faliram em 2023. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2023/12/29/americanas-123-milhas-starbucks-as-empresas-que-entraram-em-recuperacao-judicial-ou-faliram-em-2023.ghtml>. Acesso em: 31/3/2024.
[4] BRASIL, Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Brasília, DF: Diário Oficial da União. 2005.
[5] BRASIL, Lei n. 14.193, de 6 de agosto de 2021. Institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico; e altera as Leis nºs 9.615, de 24 de março de 1998, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Brasília, DF: Diário Oficial da União. 2021.
[6] GE, Redação do. Coritiba concretiza a venda de 90% da SAF à Treecorp por R$ 1,1 bilhão. GE. Disponível em: <https://ge.globo.com/pr/futebol/times/coritiba/noticia/2023/06/22/coritiba-concretiza-a-venda-de-90percent-da-saf-a-treecorp-por-r-11-bilhao.ghtml>. Acesso em 7/4/2024.
[7] LEAL, Kariny. Botafogo tem 90 dias para adesão de credores após Justiça aceitar plano de recuperação. Valor Econômico. Disponível em: <https://valor.globo.com/empresas/noticia/2024/01/09/botafogo-tem-90-dias-para-adeso-de-credores-aps-justia-aceitar-plano-de-recuperao.ghtml>. Acesso em: 9/1/2024.