Morar, lar, despejar

As desocupações forçadas durante a pandemia do Coronavírus

por AJUP Roberto Lyra Filho

Por Hádyla dos Santos Pereira[1], Hanna Luíza Souza Pereira[2] e Henrique Costa Pinto[3]

A pandemia de Covid-19 reconfigurou profundamente as dinâmicas sociais, econômicas e políticas em escala global. No período entre 2020 e 2023, designado com status de emergência global pela Organização Mundial de Saúde (OMS), tanto instituições privadas quanto públicas passaram por transformações internas, visando enfrentar os desafios deixados por esse cenário. Os impactos socioeconômicos tornaram-se cada vez mais tangíveis na realidade brasileira ao longo dos três anos em que o coronavírus se entrelaçou com a vida cotidiana daqueles que residiam no Brasil.

O cenário econômico enfrentado pelos brasileiros passou por transformações significativas em resposta à situação gerada pela pandemia. Em 2022, após dois anos em que o status de emergência global se fez presente, observou-se um aumento expressivo nos custos em setores cruciais, como supermercados (31%), conta de luz (33%) e gasolina (44%). Simultaneamente, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do IBGE, revelaram que o país enfrentava uma alta taxa de desemprego, atingindo níveis recordes em 20 estados do país. Nesse contexto desafiador, o impacto do aumento dos preços recaía de maneira acentuada sobre aqueles que perdiam seus empregos, seus entes queridos e sua saúde.

Ao longo desses três anos, a população se viu confrontada diretamente com a insegurança alimentar, o desemprego e o aumento nas fatalidades associadas à pandemia. Nesse contexto desafiador, os brasileiros socioeconomicamente desfavorecidos que perdiam seus empregos enfrentavam simultaneamente os desafios da fome e as dificuldades no acesso à moradia. Essa configuração de realidade social tornou-se prevalente durante o período, refletindo as transformações e carências que afetavam a economia global.

Aproximadamente 41 mil famílias e um milhão de pessoas sofreram com o despejo forçado desde o começo da pandemia de Covid-2019 até o início de 2023, quando o contexto de calamidade pública finalmente foi apaziguado. Ainda nesse período, cerca de 218 mil domicílios foram ameaçados de desocupação obrigatória, de acordo com o Mapeamento Nacional de Conflitos pela Terra e Moradia organizado pela campanha Despejo Zero. Dentre esses números, é necessário realizar um recorte social, veja: mais da metade daqueles despejados ou ameaçados de despejo são pessoas negras e mulheres, e 56% do total era composto por crianças ou idosos[4].

A reintegração de posse é um outro nome usado para a prática de retirar as famílias de seu local de vivência. Tal processo é validado por meio judicial, em vista de determinação legislativa. Em contrapartida, um auxílio aluguel era pago àqueles que perdiam a sua moradia, suas raízes e suas recordações, mas o mesmo constantemente era depositado com atraso e deixava as famílias em uma situação de insegurança ainda maior[5].

A Fundação João Pinheiro já havia denunciado, em 2019, que 17,4 milhões de pessoas viviam em situação de habitação precária, coabitação ou ônus excessivo com aluguel, demonstrando como o direito à moradia, apesar de garantido constitucionalmente, não era aplicado na prática[6]. Com o isolamento social imposto em 2020, a taxa de desemprego brasileira foi elevada a níveis altíssimos, cenário que desaguou na massiva perda de residência da população mais pobre, que não tinha mais condições de pagar aluguéis superfaturados, sem contar que o lema “fique em casa” não abarcava aqueles que já não possuíam um teto para morar.

Neste contexto, fez-se mister a implementação de medidas que visassem assegurar a dignidade e a segurança das famílias que seriam vítimas de despejos durante o período. A iniciativa veio do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que propôs, em abril de 2021, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 828/DF, pleiteando a interrupção de todas as formas de desocupação e a defesa do direito à moradia. Em atendimento à demanda, Luís Roberto Barroso, Ministro do Supremo Tribunal Federal, proferiu decisão determinando: a suspensão, pelo prazo de seis meses, das medidas administrativas ou judiciais que objetivassem a remoção forçada ou a reintegração de posse de natureza coletiva em imóveis de moradia ou de sede de trabalho de populações carentes estabelecidas antes da pandemia; a autorização ao Poder Público de impedir a consolidação de ocupações formadas posteriormente ao início da pandemia, condicionada ao devido amparo da população removida; a suspensão, pelo prazo de seis meses, da possibilidade de concessão do despejo liminar nos contratos de locação residencial, quando o locatário fosse pessoa carente.

Em adição à decisão supra, foi editada a Lei n° 14.216/2021, que tratou de estabelecer medidas excepcionais em razão da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) decorrente da pandemia do coronavírus. Em linhas gerais, o dispositivo legal suspendeu até 31 de dezembro de 2021 o cumprimento de medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resultasse em desocupação ou remoção forçada coletiva em imóvel privado ou público, exclusivamente urbano, bem como os efeitos de atos ou decisões judiciais, extrajudiciais ou administrativos de mesmo objeto. A lei em apreço teve sua vigência prorrogada até 30 de junho de 2022. O senador Paulo Paim (PT-RS) chegou a apresentar projeto de lei (PL 1.718/2022) que propunha a extensão do período até 31 de março de 2023, porém a iniciativa só foi apreciada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa em agosto de 2023, e rejeitada com a justificativa de que a Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional teve fim em maio de 2023, após declaração da Organização Mundial de Saúde. A decisão de Barroso, por sua vez, produziu efeitos até 31 de outubro de 2022, período a partir do qual o Ministro previa a instituição de regime de transição para garantir a dignidade das famílias despejadas.

É importante destacar, contudo, que a Lei n° 14.216/2021 e a decisão judicial aqui apreciada tinham alcance limitado, vez que tratavam somente das ocupações ocorridas até 31 de março de 2021 e daquelas que ainda não se encontravam perfectibilizadas até a data de publicação da lei, isto é, 7 de outubro de 2021, bem como abrangiam somente habitações coletivas. Destarte, embora as iniciativas tenham sido fundamentais para evitar um prejuízo social ainda maior, foram registradas mais de 40 mil famílias despejadas no período de março de 2020 até dezembro de 2023, conforme levantamento da campanha Despejo Zero, realizado a partir do mapeamento de denúncias da população em geral e de grupos e movimentos que atuam na linha de frente junto às comunidades em situação de risco.

Essa situação reflete o permanente dilema em que se vê o Estado diante da resolução de conflitos entre o direito de propriedade e o direito à moradia e à dignidade das famílias socialmente vulneráveis. Nessa toada, há de se observar dois pontos essenciais. Primeiramente, cabe ao Poder Público a implementação de políticas públicas voltadas à habitação, à reforma agrária e ao amparo às comunidades carentes, políticas, estas, fortemente fragilizadas no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Um avanço interessante nesse sentido foi a retomada do programa Minha Casa Minha Vida anunciado pelo presidente Lula em fevereiro de 2023.

Em segundo lugar, é necessário garantir que o regime de transição nas desocupações proposto pelo Judiciário seja devidamente aplicado na prática. Em novembro de 2022, o STF formou maioria pela criação de comissões nos Tribunais de Justiça e Regionais Federais incumbidas de elaborar estratégias para a retomada das reintegrações de posse, bem como de realizar inspeções judiciais e audiências de mediação antes da determinação do despejo. Ademais, as comissões devem ouvir as comunidades envolvidas e conceder um prazo razoável para a desocupação. O STF determinou também que as pessoas em vulnerabilidade social devem ser conduzidas para abrigos e proibiu a separação de familiares. O que se observa de fato, entretanto, são operações policiais violentas realizadas na madrugada e o desamparo às famílias desabrigadas. É de suma importância, nesse aspecto, a contínua fiscalização e a luta de partidos e de movimentos sociais pelo respeito à dignidade das pessoas despejadas e às regras estabelecidas pela Suprema Corte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS. Alerrandre. Com pandemia, 20 estados têm taxa média de desemprego recorde em 2020. Agência de Notícias IBGE. 10 mar. 2021. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/30235-com-pandemia-20-estados-tem-taxa-media-de-desemprego-recorde-em-2020>. Acesso em: 25 dez. 2023

BRASIL. Lei n° 14.216/2021, de 7 de outubro de 2021. Estabelece medidas excepcionais em razão da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) decorrente da infecção humana pelo coronavírus SARS-CoV-2. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14216.htm. Acesso em: 24 dez. 2023.

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n° 1.718/2022, de 21 de junho de 2022. Altera a Lei nº 14.216, de 7 de outubro de 2021, para prorrogar a suspensão da execução das ordens de despejo de locações de imóveis residenciais e comerciais e dá outras providências. Brasília: Senado Federal, 2022. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/153716. Acesso em: 24 dez. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 828/DF. Brasília, 15 de abril de 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6155697. Acesso em: 24 dez. 2023.

BRUM, Gabriel. Cerca de 41 mil famílias foram despejadas desde o início da pandemia. Agência Brasil, 2023. Disponível em <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-02/cerca-de-41-mil-familias-foram-despejadas-desde-o-inicio-da-pandemia>. Acesso em 26 dez 2023.

CAMPANHA DESPEJO ZERO. Campanha Despejo Zero: Mapeamento Nacional de Conflitos pela Terra e Moradia, 2020. Página de Mapeamento. Disponível em: https://mapa.despejozero.org.br/?modo=mapa&recorteTerritorial=mr. Acesso em: 24 dez. 2023.

OMS declara fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional referente à COVID-19. OPAS, 5 maio 2023. Disponível em: <https://www.paho.org/pt/noticias/5-5-2023-oms-declara-fim-da-emergencia-saude-publica-importancia-internacional-referente>. Acesso em: 25 dez. 2023.

LUCENA, André. Mais de 40 mil famílias sofreram despejo no Brasil desde o início da pandemia. Carta Capital, 2023. Disponível em <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/levantamento-mais-de-40-mil-familias-sofreram-despejo-no-brasil-desde-o-inicio-da-pandemia/>. Acesso em 26 dez 2023.


[1] Graduanda do 2° semestre em Direito pela Universidade de Brasília. Integrante da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho.

[2] Graduanda do 8º semestre em Direito pela Universidade de Brasília. Bolsista e pesquisadora do Projeto de Educação Tutorial – PET Direito/UnB e integrante da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho.

[3] Graduando do 1° semestre em Direito pela Universidade de Brasília. Integrante da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho.


Referências

[4] LUCENA, André. Mais de 40 mil famílias sofreram despejo no Brasil desde o início da pandemia. Carta Capital, 2023. Disponível em <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/levantamento-mais-de-40-mil-familias-sofreram-despejo-no-brasil-desde-o-inicio-da-pandemia/>. Acesso em 26 dez 2023.

[5] BRUM, Gabriel. Cerca de 41 mil famílias foram despejadas desde o início da pandemia. Agência Brasil, 2023. Disponível em <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-02/cerca-de-41-mil-familias-foram-despejadas-desde-o-inicio-da-pandemia>. Acesso em 26 dez 2023.

[6] LUCENA, 2023.

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