Por Isabela Gurgel
Um dos grandes objetivos aspirados durante a Assembleia Constituinte de 1988 era a garantia formal da igualdade de gênero, o que pode ser percebido ao analisar que, logo no primeiro dos mais de 70 incisos do artigo 5º da Constituição da República, relativo a direitos e garantias fundamentais, prevê-se que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. A observância do princípio, essencial em um Estado Democrático de Direito, relaciona-se a um espaço plural, sem que haja grupos negligenciados.
A prática, todavia, é diferente. Para que as demandas das mulheres sejam atendidas, é fulcral que seja assegurada sua participação na vida política, o que depende de, além de regras formais, análise das relações de gênero na vida social e dos obstáculos informais à atuação nos espaços institucionais[1].
No Brasil, até a promulgação da Constituição Cidadã, os espaços políticos eram historicamente considerados masculinos. Apesar de, já em 1928 – antes mesmo de ser conquistado o voto feminino -, Alzira Soriano de Souza ter sido eleita a primeira prefeita mulher no Brasil, no Município de Lajes, Rio Grande do Norte, de 1945 a 1986 o número de deputadas federais oscilou entre 0 e 5,3% das cadeiras da Câmara dos Deputados e somente uma senadora foi eleita, conforme estudo feito em 1995 pelo Inter-Parliamentary Union (IPU)[2].
Buscando transformar esse cenário, estabeleceu-se, na Lei 9.504 de 1997, que cada partido ou coligação deveria reservar no mínimo 30% de suas candidaturas para cada sexo, expressão que, conforme se manifestou o Ministro Tarcísio Vieira, do Tribunal Superior Eleitoral, refere-se a gênero, e não a sexo biológico[3]. Como a lei não demostrou resultados positivos, já que as vagas eram reservadas de início, mas, a pretexto de que não apareciam mulheres que desejassem se candidatar, candidaturas masculinas excediam os 70%, a Lei 12.034 de 2009, modificou o termo “deve reservar” por “preencherá”, o que aparentemente prometia, à época, mais cadeiras ocupadas por mulheres.
Não foi o que aconteceu. De acordo com o ranking global feito IPU em 2017, que classificou países conforme o percentual de mulheres em seus Parlamentos, o Brasil ocupava a 154ª posição de 193: na Câmara dos Deputados, 10,7% dos ocupantes apresentavam identidade de gênero feminino e, no Senado Federal, 14,8%[4]. O país ficou atrás até mesmo da Arábia Saudita, país em que só se permitiu que mulheres pudessem dirigir em 2018.
A partir daí, percebeu-se que, a fim de cumprir a cota mínima de gênero, partidos lançavam candidaturas femininas fictícias, sem que houvesse financiamento de campanha ou qualquer tipo de propaganda. A solução, portanto, era preocupar-se com a eleição de mulheres, e não somente com sua candidatura.
Assim, nos últimos anos iniciou-se no poder público uma atuação atenta ao fato de que eleger mulheres é essencial em uma sociedade democrática e igualitária. Entre as normas editadas nesse sentido está a Lei 13.488, de 2017, que, alterando a redação do art. 93-A da Lei 9.504/1997, assentou que o Tribunal Superior Eleitoral promoverá “propaganda institucional, em rádio e televisão, destinada a incentivar a participação feminina, dos jovens e da comunidade negra na política[5]”. Além disso, no julgamento da ADI 5617, em 2018, o Supremo Tribunal Federal interpretou uma lei em prol do financiamento de campanhas femininas, de forma a
equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretado como também de 30% do montante do fundo alocado a cada partido, para eleições majoritárias e proporcionais[6].
No mesmo ano, o Brasil conquistou 15% dos assentos na Câmara e 14,8% no Senado, subindo 20 posições noranking da IPU, situação que, ainda que distante do desejado, demonstra melhora significativa[7].
Não é de outra forma que agem os ministros do TSE, que, no REspe 19392, cassaram não só o registro de candidatas femininas fraudulentas, mas também dos outros candidatos homens registrados na chapa, entendendo serem beneficiários[8]. O Tribunal também apresenta iniciativas que valorizem a participação de mulheres na política, como o programa Participa Mulher, lançado pela presidente à época, Ministra Rosa Weber.
Agora, visto que garantias formais estão aliadas a materiais, o quadro é outro. Candidatas têm mais recursos à sua disposição, sua propaganda é incentivada, candidaturas fictícias são combatidas e a importância de que haja diversidade nos cargos de poder está aos poucos sendo reconhecida. As eleições municipais de 2020 prometiam, portanto, bons resultados.
Há, por outro lado, uma mudança na realidade fática que pode frustrar essas expectativas: a Pandemia de Covid-19, vírus extremamente contagioso que obriga que famílias permaneçam isoladas por diversos meses. A situação, que envolve um problema de saúde pública e de risco à vida, exigiu a alteração da data das eleições e a autorização para que convenções partidárias sejam feitas por meio virtual.
Historicamente, a divisão sexual do trabalho favoreceu os homens, já que, com a imposição a mulheres a ficarem em casa, realizando atividades domésticas e criando seus filhos, permitiu-se que eles fossem livres para se engajar em trabalhos remunerados[9]. Mesmo que, com o decorrer dos anos, o percentual de mulheres economicamente ativas tenha aumentado significativamente, tornando-as mais independentes, é possível que a pandemia, ao novamente enclausurá-las no ambiente doméstico sem a possibilidade de deixar seus filhos em creches ou escolas e de obter outras formas de auxílio, altere o cenário, aumentando sua jornada de trabalho e, consequentemente, afastando-as do âmbito público. Além disso, a falta de proximidade ao povo é algo que não fortalece as redes de contatos das candidatas.
Neste país, mulheres foram por séculos desencorajadas a ocupar espaços públicos de poder, ambiente considerado masculinizado e hostil a elas. Nos últimos anos, entretanto, forneceram-se condições materiais para sua eleição por meio de decisões e projetos, idealizados principalmente pelas poucas mulheres nesses espaços. A despeito de a pandemia de Covid-19 dificultar bastante a campanha de candidatas femininas, obstando a concretização dos resultados esperados, as mudanças dos últimos anos não terão sido em vão, pois ainda se espera que haja algum avanço. São essas transformações que permitem a conquista da tão sonhada igualdade de gênero, prevista na Constituição Federal.
Isabela Gurgel é graduanda em Direito pela Universidade de Brasília e integrante do Cravinas – Clínica Jurídica de Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos.
[1] BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: os limites da democracia no Brasil. 1. ed. São Paulo: Bontempo, 2018, p. 171.
[2] Disponível em: http://archive.ipu.org/PDF/publications/women45-95_en.pdf. Acesso em 16 de agosto de 2020.
[3] Disponível em: http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Marco/tse-aprova-uso-do-nome-social-de-candidatos-na-urna. Acesso em 16 de agosto de 2020.
[4] Disponível em https://www.ipu.org/resources/publications/infographics/2017-03/women-in-politics-2017. Acesso em 16 de agosto de 2020.
[5] Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9504.htm. Acesso em 16 de agosto de 2020.
[6] ADI 5.617, Relator Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe 03 de outubro de 2018.
[7] Disponível em: https://www.ipu.org/resources/publications/infographics/2019-03/women-in-politics-2019. Acesso em 16 de agosto de 2020.
[8] REspe 19.392, Relator Ministro Jorge Mussi, DJe 04 de outubro de 2019.
[9] BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: os limites da democracia no Brasil. 1. ed. São Paulo: Bontempo, 2018, p. 28.