A mobilidade urbana e o exercício da cidadania

Uma análise do Distrito Federal

por PET Direito - UnB

Por Flávio Magalhães*

As cidades são fenômenos históricos e sociais e, por isso mesmo, somos capazes de remontar uma linha cronológica repleta de evoluções e debates em relação à capacidade do homem em se adequar aos espaços geográficos e exercer poder. Dessa forma, olhar para o mundo atual, para a conformação citadina, nos exige lançar os olhos para os mecanismos que possibilitaram a conformação das grandes cidades no formato em que conhecemos hoje. No caso brasileiro, em seu contexto histórico, a urbanização deu-se de forma desordenada e levada pelas necessidades de um povo desabrigado, seja pelo êxodo rural dos anos 1950 a 1970, ou pelos filhos da cidade que não foram atendidos por políticas necessárias para a sua inserção no direito à moradia¹. No caso em discussão, proponho uma análise no contexto do surgimento da capital federal, que se desenvolveu sob a égide de uma utopia, de povoamento controlado, pensada para poucos e para os carros. Diante disso é que faço algumas reflexões sobre o transporte público do Distrito Federal e a sua falência como projeto de integração das regiões administrativas ao centro do poder. 

Em primeira análise, remonto a ideia do direito à cidade, em que todos nós, como descrito no Estatuto da Cidade (Lei no 10.257/2001)², temos o direito a uma cidade sustentável, capaz de nos conferir o direito à terra urbana, à infraestrutura urbana e ao transporte. Desse fato, entende-se que as cidades devem conformar um rol de direitos em sua concepção e ação. Outrossim, é importante enxergar os aglomerados urbanos como organismos vivos, seja na capacidade de se adequarem ou  de reagirem às proposituras de seus administradores e cidadãos. O interessante desse processo é que essas ações e reações são capazes de configurar um novo espaço urbano, seja quando as demandas são atendidas e bem-sucedidas ou, quando não, na falência de atenção aos interesses do povo, quando da inconformidade das políticas aos anseios da sociedade. De toda forma, o estatuto vem como meio de reafirmar o protagonismo da sociedade no exercício da cidadania e do direito de uma cidade saudável. 

Assim sendo, a mobilidade urbana se configura como meio de acesso populacional aos espaços geográficos dos centros urbanos e periféricos, principalmente exercendo o papel de inserção do trabalhador no sistema produtivo e na participação da sociedade nas cidades. Dessa forma, como coautor, o cidadão é parte da cidade e dela deve usufruir na medida de suas necessidades. Outrossim, a cidadania é garantida por uma cidade que possibilite a liberdade de seus indivíduos, a mobilidade urbana como pressuposto para a consolidação de um cidadão completo. Disso decorre a necessidade de se olhar para o transporte de uma cidade não só como movimento de massas, mas sim como mecanismo de integração das potencialidades dos indivíduos. 

Nessa linha, em decorrência do desenvolvimento capitalista, as economias conformaram-se em um processo multifacetado, levadas por uma onda de um mundo globalizado e puxado pela necessidade de centros de produção cada vez maiores. Em consequência desse movimento, tem-se uma sociedade alimentada nos anseios do individualismo e do consumo sem consciência, daí decorre o aumento do número de automóveis particulares e a incapacidade da malha viária em comportar cada vez mais carros. Ademais, no contexto histórico brasileiro, em que a indústria automobilística foi priorizada e o transporte individual, carro particular, foi difundido como a melhor opção para o exercício da liberdade urbana, é que observamos hoje um país que se conformou para os carros e excluiu, como projeto urbano, uma cidade integrada pelos mais diversos modais de mobilidade.  Desse fato, retira-se a constatação do colapso do sistema de mobilidade urbana e da deterioração da saúde das cidades³.

O caso do Distrito Federal não se distingue do movimento dos grandes centros urbanos do país, como São Paulo ou Belo Horizonte. Pelo contrário, é aqui que podemos observar como esse projeto de cidade fracassou em olhar para o cidadão como parte integrante de um carro, ou em outras palavras, Brasília foi pensada para os carros⁴. O fator inegável dessa constatação é fácil de se evidenciar, basta olhar para a conformação arquitetônica da mancha urbana brasiliense, com suas enormes vias transversais e longitudinais que cortam o espaço urbano como um sistema de ângulos perfeitos, o indivíduo é deixado de lado quando dissociado do automóvel. A ideia de perfeição arquitetônica excluiu o pedestre, excluiu os diversos modais que interligam o espaço urbano. Por isso, proponho um exercício – o deslocamento de um trabalhador que sai de Ceilândia para o Lago Norte – se ele possui um carro, não é tão difícil alcançar o seu destino, apesar da distância e do tempo médio de 1 (uma) hora. Todavia, se esse mesmo trabalhador se desloca utilizando o transporte público, o seu deslocamento beira a uma peregrinação, seja pelo número de conduções necessárias como também o tempo muito superior ao do deslocamento por carro.  

E é aqui que reside o nosso problema, o caso acima é um mero exemplo dos milhares de quem precisa se locomover na capital do país. Não há cidade saudável com esse tipo de tratamento da mobilidade de seus cidadãos, dessa forma, é inconcebível que se desenvolva um exercício da cidadania e do acesso da sociedade a uma cidade equilibrada com essas falhas de mobilidade. Disso decorre que a má gestão do sistema de transporte de uma cidade provoca a exclusão do cidadão no exercício do direito a um espaço integrado. Outro fator que explica essa exclusão são os fenômenos sociais e geográficos provocados pelo crescimento desordenado dos centros urbanos e pela ausência de planos diretores que possibilitem uma cidade saudável. 

O Distrito Federal cresceu e cresce de forma inadequada a uma política de mobilidade inteligente. Em primeiro ponto, o sistema de transporte por ônibus conta com uma malha de corredores exclusivos de baixa extensão e com pouca abrangência. Em segundo, o sistema metroviário atende apenas a parte central, oeste e sudoeste do Distrito Federal, deixando de lado uma grande parcela de cidades que não contam com outros meios que não sejam o sistema rodoviário. Disso decorre uma baixa integração do sistema de mobilidade aos diversos pontos do DF. Como consequência, há uma grande adesão ao transporte individual e um agravamento dos engarrafamentos pela incapacidade, das vias públicas, de absorverem a demanda de circulação nos horários de pico. 

Outro fator que o exemplo denuncia é o movimento pendular, sendo o fenômeno em que a massa trabalhadora se movimenta em conjunto em determinados horários, causando o colapso do sistema de transporte urbano. A esse fenômeno, tem-se aliado o processo de gentrificação, na qual os grandes centros urbanos se conformam pela concentração de renda das partes centrais da mancha urbana, ou seja, aqueles que não possuem um padrão socioeconômico alto são empurrados para as zonas periféricas. Outrossim, basta olhar para a conformação espacial, urbanística e social do Plano Piloto, em que é levado a sério a capacidade do indivíduo em pertencer àquele espaço, desse fato, entende-se o espaço urbano usado como exercício de poder, seja pela capacidade de intervenção que esses indivíduos possuem, bem como estarem no território em que o poder é exercido. Consequentemente, todos aqueles que são excluídos do centro espacial citadino, também são excluídos do centro do poder, do direito de dizer o direito. 

Consoante a isso, historicamente Brasília foi pensada em um projeto para poucos, dessa forma, a expansão da mancha urbana se deu de maneira desorganizada e sem a devida intervenção do sistema público na ordenação de um plano urbanístico adequado às necessidades de movimentação da massa trabalhadora⁵. Como consequência, o processo de travamento da mobilidade se dá também pelas distâncias entre os pontos de trabalhos e as moradias de seus trabalhadores. É comum encontrar indivíduos que se deslocam mais de 30 km por dia para chegarem em seu ponto de trabalho. Dessa forma, Brasília não conformou um sistema de integração capaz de reduzir o percurso do trabalhador aos seus empregos. Pelo contrário, aqui se praticou uma arquitetura hostil, em que a massa socialmente menos privilegiada foi afastada do Plano Piloto e dos espaços de poder.

Por fim, em uma reflexão geral, do papel da mobilidade e do exercício da cidadania, entendo que podemos fazer inferências da capacidade do cidadão em ser de fato compreendido em seus anseios, dado a sua integração e participação no espaço urbano. Dessa forma, olhar para a mobilidade urbana, como projeto de poder e também como meio de participação das cidades é uma possibilidade para inserirmos todos os debates no centro do poder. No caso de Brasília, dado todas as suas peculiaridades, a existência de um transporte público eficiente, saudável e equitativo é o melhor meio para inserir o cidadão nas discussões das cidades. Outra medida possível é a descentralização do poder das zonas centrais. Brasília possui uma macrocefalia do exercício do poder, os empregos, as decisões e os debates se dão, primordialmente, dentro dos palacetes e distanciados do povo. Ademais, é necessário a construção de uma concepção comunitária, o brasiliense deve ser influenciado a utilizar o transporte público e assim, o carro particular passará a ter função acessória, quando de fato necessário. Para isso, demanda-se a mudança de política estatal voltada para o coletivo, pois só teremos uma sociedade integrada e participativa quando a mobilidade urbana for capaz de integrar todas as diferenças e o cidadão usufruir das cidades em sua integralidade.


* Graduando em Direito pela Universidade Brasília, Brasília/DF, Brasil. Membro do Programa de Educação Tutorial de Direito na Universidade de Brasília como bolsista. Monitor na matéria de Teoria Geral do Estado.


[1] CAMARANO, A. A.; ABRAMOVAY. R. Êxodo rural, envelhecimento e masculinização no Brasil: Panorama dos últimos 50 anos. IPEA, Rio de Janeiro, n. 621, p. 1-28, jan 1999.

[2] Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70317/000070317.pdf Acesso em: 4 nov, 2023.

[3] WESTPHAL, M. F.; OLIVEIRA, S. C. Cidades Saudáveis: uma forma de abordagem ou uma estratégia de ação em saúde urbana? Revista USP, São Paulo, n. 107, p. 91-102, out./dez. 2015.

[4] CARVALHO, L. D. Mobilidade Urbana e Cidadania no Distrito Federal: Um Estudo do Programa Brasília Integrada; Dissertação UnB, Brasília, p.124, 2008.

[5] Idem.


Referências

CAMARANO, A. A.; ABRAMOVAY. R. Êxodo rural, envelhecimento e masculinização no Brasil: Panorama dos últimos 50 anos. IPEA, Rio de Janeiro, n. 621, p. 1-28, jan 1999. 

CARVALHO, L. D. Mobilidade Urbana e Cidadania no Distrito Federal: Um Estudo do Programa Brasília Integrada; Dissertação UnB, Brasília, p. 124, 2008.

WESTPHAL, M. F.; OLIVEIRA, S. C. Cidades Saudáveis: uma forma de abordagem ou uma estratégia de ação em saúde urbana? Revista USP, São Paulo, n. 107, p. 91-102, out./dez. 2015

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0 comentário

Thaís março 7, 2024 - 3:14 pm

Excelente reflexão.

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