A Constituição de 1988 como a mais social e inclusiva da história em controvérsia com o racismo estrutural na atualidade

Por Sandryelle Cristina Alves da Silva


1. INTRODUÇÃO

Ao nos debruçarmos sobre a história de nosso país, podemos visualizar como as pessoas não brancas são importantes para a evolução do Brasil ao se firmar como uma nação independente e de renome perante o mundo. Entretanto, apesar dessa grande importância, a história nos mostra que este reconhecimento veio diante de muita luta e sangue derramado. Mesmo com a abolição da escravatura em 1888, a discriminação racial é um problema que persiste até os dias de hoje e torna visíveis as consequências de mais de 300 anos de escravidão.

Em 1889, nos tornamos República, pouco tempo depois, em 1891, surge a primeira Constituição Federal como uma nação de fato e de direito independente de Portugal. A partir disso, já passamos por alguns textos constitucionais, nenhum deles com tantos direitos e garantias para o cidadão quanto a Constituição Federal de 1988, razão pela qual é amplamente conhecida como “Constituição Cidadã”.

Esse aspecto social surge como uma grande e importante e revolucionária inovação trazida pelo atual texto constitucional, ainda mais num contexto de redemocratização. O art. 5º da CF/881 é o exemplo mais claro desse viés social ao prever um rol de direitos e garantias inerentes ao ser humano.

Porém, analisar o cotidiano é um exercício que nos mostra facilmente como esses direitos e garantias muitas vezes não são respeitados, especialmente no que se refere às pessoas racializadas. O reflexo dos tempos de escravidão pode, inclusive, ser percebido na forma em que a atuação estatal é seletiva ao exercer suas funções basilares.

2. A MAIS SOCIAL DAS CONSTITUIÇÕES

Após 31 anos de ditadura militar, em 1985,  Brasil conquistou a redemocratização. Para firmar de vez a democracia, surgiu a necessidade de uma nova constituinte, uma vez que a Constituição de 1967 não mais refletia a realidade brasileira. Desse modo, em 05 de outubro de 1988, um novo texto constitucional entra em vigor e, mais de 30 anos depois, ainda permanece em vigência.

O estigma social da atual Carta Magna do Brasil vem do caráter inovador e de maior garantia de direitos que ela propõe. Observando de forma comparativa com as demais constituições do país, de fato, a atual é a que melhor desempenha o papel social e inclusivo. Por exemplo, ela amplia os direitos trabalhistas, garantindo uma menor jornada de trabalho, e garante alguns direitos que antes ou não estavam previstos, ou haviam sido retirados do texto normativo constitucional.

A CRFB/1988 também é a responsável por incorporar os chamados direitos e garantias fundamentais inerentes à pessoa humana. O art. 5º, em seus mais de setenta incisos, prevê direitos como a igualdade entre os gêneros, a liberdade religiosa e de expressão, além de trazer expressamente em seu caput que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

De maneira ainda mais inovadora, o art. 6º define os direitos sociais, os quais também são previstos a todo e qualquer ser humano: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (BRASIL, 1988)

A partir dessa análise fria do texto constitucional, é compreensível que esta seja denominada como “Constituição Cidadã”, ainda mais tendo como parâmetro comparativo as Constituições anteriores que ignoram abertamente a concepção social do direito constitucional.

3. A NEGLIGÊNCIA COM O POVO NEGRO

Seria ideal se aquilo que está escrito no texto constitucional fosse aplicado de maneira igualitária entre todos os cidadãos. Porém, sabemos que não é o que acontece, afinal, a Assembleia Constituinte de 1985 foi formada majoritariamente por homens brancos que, consequentemente, redigiram o texto constitucional para outros homens brancos, os quais não representam nem metade do povo brasileiro que, desde aquela época, é formada majoritariamente por mulheres e pessoas não-brancas.

Observando especialmente a problemática racial, mesmo com grande parte da população se autodeclarando negra, os anos de opressão sofridos por essa classe até hoje têm consequências em como a sociedade visualiza e trata essas pessoas. Em sua obra denominada “Políticas da Inimizade”, Achille Mbembe2 define de maneira precisa o racismo estrutural e como ele afeta até hoje as relações sociais:

“O racismo alimenta a necessidade de diversão e permite escapar ao aborrecimento geral e à monotonia. Parecemos acreditar que são apenas inofensivos, sem o significado que lhe atribuímos. Ofendemo-nos que nos policiem quando nos privam do direito de rir, do direito a um humor que nunca é dirigido contra si mesmo (autoderisão) ou contra os poderosos (a sátira, em particular), mas sempre contra o mais fraco – o direito de rir à custa daquele que pretendemos estigmatizar. O nanorracismo hilariante e desordenado, bastante idiota, que tem prazer em chafurdar na ignorância e que reivindica o direito à estupidez e à violência geradas pela ignorância – eis a mentalidade vigente.” (MBEMBE, pg. 101, 2017)

Ora, ao ler este trecho, resta claro que o racismo, mesmo que dito como “piada”, não apenas contribui para a manutenção de uma sociedade que ridiculariza o negro, mas também para que esta mesma sociedade seja a causa de inúmeros tipos de violência racial.

São justamente esses atos considerados pequenos ou, nas palavras de Mbembe, esses “nanorracismos” que, de pouco em pouco, vão contribuindo para uma sociedade cada vez mais racista que mata e prende negros sob a justificativa de serem “suspeitos de crime” única e exclusivamente em virtude da estética racista. Não é à toa que a maior parte da população carcerária do Brasil é negra – de acordo com informações retiradas do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2015/2016.

Além disso, o racismo também está presente nas oportunidades de mobilidade social. Em suma, se um branco nasce pobre, ele tem mais chances de se ascender financeiramente que um negro. Nesse sentido:

“Acrescente-se ainda a essas estruturas geoeconômicas de desigualdades raciais uma outra: o acesso assimétrico ao sistema educacional e às oportunidades de escolarização. A substantiva importância da dimensão educacional se coloca na medida em que a educação formal se mostra essencial para os não brancos (mais do que para os brancos, proporcionalmente) como mecanismo disparador de chances maiores de mobilidade social ascendente.” (SILVA, 2013)3

Se não há igualdade nem na mais básica das oportunidades e no mais básico dos direitos sociais, como essa igualdade constitucional poderá ser alcançada? Não podemos falar em meritocracia quando uma pessoa negra deve se esforçar duas vezes mais que um branco para chegar a um mesmo lugar

4. A GARANTIA AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A CONSTANTE INVISIBILIZAÇÃO DO POVO NEGRO

Um texto normativo que diz garantir a todos os cidadãos direitos fundamentais, básicos e sociais como a vida, a educação, a dignidade entre inúmeros outros, se mostra completamente ineficaz e contraditório quando um negro é assassinado por simplesmente estar portando um guarda-chuva e este ser confundido com um fuzil pela polícia militar4, ou quando crianças negras deixam de ir à escola pois já são obrigadas a trabalhar para não verem sua família morrer de fome5, ou até mesmo quando a população carcerária, de maioria negra, não possui condições minimamente dignas de subsistência.

O racismo existe e persiste quando um carro em que estava uma família negra, que não possuía – e nem tinha qualquer indício de possuir – relação com a prática de crimes, é alvejado por 80 tiros de fuzil por membros das forças armadas de forma inexplicável6. Ou quando uma pessoa negra e acometida por esquizofrenia é parada por Policiais Rodoviários e, mesmo sem demonstrar qualquer reação ou desrespeito, é aprisionada no porta-malas da viatura junto com gás de pimenta vindo a falecer7.

Em um artigo escrito em fevereiro de 2019 pelo advogado e editor do jurídico do “Carta Capital”, Igor Leone, ele cita o caso do jovem negro e desarmado que acabou sendo morto em um supermercado por um guarda de segurança. “Não é por acaso, portanto, que a vítima do assassinato no supermercado tenha sido um cidadão negro. A segurança privada, naquele caso, é um espelho da atuação das polícias no Brasil”, diz ele em um trecho do artigo.

No mesmo artigo, Igor Leone expõe dados acerca da assembleia constituinte que culminou na elaboração da atual constituição vigente no país:

“Várias formas de resistência surgiram, desde a fundação da Frente Negra e da Liga Negra, na década de 1930, passando pelo Teatro Experimental do Negro, a partir dos anos 1940, até os vários movimentos que culminaram no estabelecimento do Movimento Negro Unificado, em 1978. Na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 houve uma intensa atuação de militantes do movimento negro, especialmente na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Ali foram realizados debates, durante audiências públicas, que tematizaram de forma aberta a questão do racismo brasileiro.” (LEONE, 2019)

Observa-se, então, que, mesmo com uma maior participação negra na sociedade e com a conquista de cada vez mais direitos para esta classe, ainda assim é grande negligência estatal quanto à sua garantia e efetivação. Em outras palavras, não parece que os direitos foram conquistados quando eles são continuamente violados e mitigados.

5. CONCLUSÃO

Diante de tudo que foi exposto, é evidente que chamar a Constituição Federal de 1988 de “Constituição Cidadã” quando esta cidadania não se aplica a todos os cidadãos é uma das maiores hipocrisias do Direito brasileiro. No artigo de Igor Leone8, previamente citado, ele pontua justamente esse contraponto entre a Constituição e o racismo no Brasil:

“A Constituição permanece atual, 30 anos após sua promulgação. Seu compromisso pela igualdade exige que a sociedade brasileira tome consciência do racismo estrutural que persiste entre nós, da violência endêmica contra a população negra e das incessantes tentativas de flexibilizar as regras jurídicas que rejeitam todas as formas de escravidão. Isso só poderá ocorrer pela adoção de políticas de inclusão e formas de reparação que envolvam o reconhecimento das violências passadas e presentes.” (LEONE, 2019)

Para finalizar, é de extrema importância exaltar artistas negros que expõem essa realidade racista ao resto do mundo que permanece ignorante acerca do assunto. O rapper brasileiro Baco do Exu Blues9, em sua música intitulada Bluesman, traz uma grande crítica à invisibilização do negro que pode ser resumida no verso “tudo que quando era preto era do demônio e depois virou branco e foi aceito eu vou chamar de Blues”.


Sandryelle Cristina Alves da Silva é graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Membro do Centro de Estudos Constitucionais Comparados da UnB. Editora de Projetos da Revista dos Estudantes de Direito da UnB.


Referências bibliográficas:

[1] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>

[2] MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. Portugal. Antígona. 2017.

[3] SILVA, René Marc da Costa. A Constituição de 1988 e a discriminação racial e de gênero no mercado de trabalho no Brasil. Revista de Informação Legislativa. 2013. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/50/200/ril_v50_n200_p229.pdf>. 

[4] EL PAÍS BRASIL, PM confunde guarda-chuva com fuzil e mata garçom no Rio, afirmam testemunhas. 19 de set. de 2018, Rio de Janeiro, RJ. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/19/politica/1537367458_048104.html>.

[5]CNN BRASIL, Pobreza leva crianças e adolescentes para trabalho informal e evasão escolar. 04 de dez. de 2021. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/pobreza-leva-criancas-e-adolescentes-para-trabalho-informal-e-evasao-escolar/>.

[6] FOLHA. Exército dispara 80 tiros em carro de família no Rio e mata músico. 08 de abr. de 2019. Rio de Janeiro, RJ. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/04/militares-do-exercito-matam-musico-em-abordagem-na-zona-oeste-do-rio.shtml>.

[7] G1 GLOBO. Homem morre após ser abordado e colocado em porta-malas de viatura da PRF em Sergipe; veículo estava tomado por fumaça. 25 de mai. de 2022. Aracaju, SE. Disponível em: <https://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2022/05/25/homem-morre-apos-abordagem-de-policiais-rodoviarios-federais-em-umbauba.ghtml>.

[8]LEONE, Igor. Caminhos do Racismo Brasileiro: Violência, trabalho, escravidão. Brasília. Carta Capital. 2019. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/justica/caminhos-do-racismo-brasileiro-violencia-trabalho-escravidao/>

[9] BACO EXU DO BLUES. Bluesman. 2018. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=82pH37Y0qC8>

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0 comentário

Isadora Morozzo junho 28, 2022 - 11:57 pm

Reflexão importante na sociedade atual, que ainda é extremamente racista. As indagações trazidas pela autora são necessárias e pertinentes.

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