A expansão de poderes dos governantes durante a pandemia: excepcionalidade ou “novo normal”?

Por Matheus de Souza Depieri      

De acordo com a doutrina tradicional, as democracias modernas contam – ou deveriam contar – com uma arquitetura institucional necessária para que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário atuem dentro de suas respectivas competências, devendo esses poderes serem contidos pelos mecanismos de checks and balances existentes e por diversos arranjos institucionais. Apesar dessa concepção básica quanto à dinâmica da relação entre os três poderes, é certo que desde o início do ano, com o progressivo alastramento do Coronavirus, a necessidade de se adotar medidas excepcionais no controle da pandemia tornou mais complexa a divisão de competências, abrindo espaço para que alguma das esferas, não raro o Executivo, expanda os seus poderes e se aproveite da situação calamitosa para buscar concretizar agendas políticas não relacionada à pandemia.[1]

Em um contexto de calamidade pública – e como não poderia ter sido diferente – diversos países adotaram mecanismos similares para o enfrentamento da crise, como o fechamento de fronteiras e a limitação do direito de ir e vir da população. Apesar da essencialidade de tais medidas, tendo em vista a necessidade de preservar a vida dos cidadãos, alguns países podem acabar sofrendo efeitos colaterais dos “poderes excepcionais” de seus líderes caso os mecanismos de checks and balances falhem em garantir a conformidade destas medidas com princípios fundamentais de cada Estado. O risco de abuso dos poderes excepcionais é ainda maior em países com democracias mais frágeis, especialmente aqueles marcados pelo iliberalismo, liderados por populistas ou que experienciaram o emparelhamento das instituições antes da crise sanitária. 

Um caso capaz de exemplificar com clareza tal risco é a Hungria. Considerando que a democracia húngara já estava “imunossupressiva”[2] antes da pandemia, tendo em vista que o primeiro-ministro Viktor Orban tem logrado êxito em corroer os mecanismos de checks and balances na última década, com o emparelhamento do Legislativo (Partido Fidesz) e do Judiciário, o país foi solo fértil para o aproveitamento da situação excepcional para o fortalecimento de seu líder iliberal. Como destaca Csaba Győry[3], a Hungria concedeu um poder quase ilimitado para que seu líder governe por decretos, utilizando como base legal algo similar a um estado de exceção, denominado, de acordo com o Art. 53 da Lei Fundamental, um “estado de extremo perigo”. Tal autorização, votada e aprovada por 2/3 do Congresso, concedeu ao governo “autorização ilimitada para governar por decreto, sem restrições temporais, jurisdicionais ou outras restrições legais, além dos limites consagrados na constituição que protegem certos direitos fundamentais[4].

Apesar de a Hungria ser um caso aparentemente extremo, em função do aparelhamento de longa data das suas instituições, não é difícil achar situações similares na experiência internacional. No Kenya, por exemplo, o presidente Uhuru Kenyatta, em plena pandemia, emitiu a Executive Order nº 1/2020 (de 11 de maio de 2020), alterando o funcionamento do Poder Judiciário, em claro aproveitamento da situação calamitosa para expansão dos poderes do Executivo. De acordo com depoimentos de integrantes da Law Society of Kenya (LSK), esta tentativa de reestruturação consiste em tentativa de erosão da independência do Poder Judiciário, em ameaça a princípios constitucionais[5].

Os exemplos de oportunismos durante a calamidade mundial parecem não ter fim. Em Israel, o Primeiro Ministro Benjamin Netanyahu autorizou a agência de segurança interna do país a monitorar dados de telefones celulares dos cidadãos para refazer os movimentos de pessoas que contraíram o coronavírus, além de identificar outros que deveriam ficar em quarentena por ter cruzado caminho com pessoas infectadas[6]. Na Turquia, o Parlamento aprovou uma lei autorizando a liberação antecipada de mais de 100.000 presos (devido aos riscos da pandemia), mas excluiu da liberação todos os prisioneiros políticos contrários ao regime, a exemplo de jornalistas[7]. No Reino Unido, as eleições das autoridades locais foram canceladas e adiadas em 1 ano por meio de mero decreto governamental[8].

Desse modo, a experiência internacional oferece inúmeros exemplos de medidas extremamente questionáveis adotadas como decorrência da expansão de poderes na pandemia. Apesar de ser natural o pensamento de que tempos extraordinários demandam medidas extraordinárias, não se pode legitimar políticas que contrariem direitos humanos básicos ou que violem a limitação de competências dos Poderes, uma vez que, nas sociedades democráticas, os meios são tão importantes quanto os fins que se deseja atingir. No caso em que os governantes, aproveitando-se dos medos e das incertezas gerados pela pandemia, desrespeitam premissas básicas dos Estados, tem-se o risco de os efeitos colaterais da expansão de poderes serem mais danosos à população do que o próprio vírus que se busca combater.

Além disso, também deve-se ter muita cautela com o “dia seguinte”. Afinal, após a normalização da situação e o controle do Coronavirus, os líderes iliberais irão simplesmente renunciar aos poderes “conquistados” durante a pandemia? Em democracias mais frágeis, será possível o reestabelecimento dos checks and balances? As instituições conseguirão apurar livremente eventuais abusos cometidos nos tempos extraordinários, como eventuais violações a direitos humanos pelas medidas adotadas pelos governos?

Essas questões, por ora, restam abertas ao imaginário público e apenas o tempo as poderá responder. É de se esperar que a democracia e que o Estado Democrático de Direito venha a prevalecer, apesar de a utopia nem sempre se concretizar.


Matheus de Souza Depieri é graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e Editor-Chefe da Revista dos Estudantes de Direito da UnB (RED|UnB).


[1] Esta breve reflexão foi inspirada na aula e nos comentários tecidos pela Dr. Menaka Guruswamy, Senior Advocate da Suprema Corte da India, no curso “Modern Challenges in Constitutionalism: Perspectives from the World’s Leading Experts”, organizado pelo International Forum on the Future of Constitutionalism.

[2] https://www.washingtonpost.com/world/2020/03/31/coronavirus-kills-its-first-democracy

[3] https://blog.petrieflom.law.harvard.edu/2020/06/09/hungary-global-responses-covid19/

[4] Tradução livre de trecho do já citado artigo de Csaba Győry. Original: “unlimited authorization to rule by decree without temporal, jurisdictional, or other legal restrictions, aside from those limits enshrined in the constitution protecting certain basic rights”

[5] https://www.standardmedia.co.ke/article/2001375722/lsk-sues-uhuru-over-executive-order

[6] https://www.nytimes.com/2020/03/16/world/middleeast/israel-coronavirus-cellphone-tracking.html

[7] https://crd.org/2020/05/26/impact-of-covid-19-measures-on-human-rights-and-criminal-justice-in-western-balkans-and-turkey/

[8] https://www.opendemocracy.net/en/openjustice/democracy-autocracy-covid-19-exposing-crisis-uk-constitution/

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