Impactos da COVID-19 nos Contratos de Prestação de Serviço nas Instituições Privadas de Ensino

Por Rodrigo Costa

Em virtude dos impactos econômicos causados pela situação extraordinária de calamidade pública de âmbito nacional e internacional, o equilíbrio contratual de inúmeras relações de consumo foi comprometido. As medidas de isolamento social e restrição do funcionamento das atividades econômicas impactaram a renda tanto do trabalhador/consumidor quanto das empresas.

No setor de prestação de serviços educacionais, a suspensão das atividades presenciais gera nos alunos a compreensível expectativa de que as mensalidades serão proporcionalmente reduzidas. Contudo, as instituições continuam ofertando seus serviços a distância, por meio de sistemas próprios, de modo que a suspensão integral da contraprestação prestada pelo estudante não seria razoável.

Nessa situação, qual interesse deve prevalecer? Soa quase instintivo que a exigência de pagamento integral das mensalidades por parte dos alunos/consumidores não parece ser razoável, pois o valor foi pactuado sob outras circunstâncias, objetivamente alteradas com o avançar da doença e adoção de medidas restritivas de circulação e da atividade econômica. As instituições de ensino, por outro lado, têm mantido o funcionamento de suas atividades principais, ainda que de modo virtual, embora sem os gatos ordinários, como água e luz.

Percebe-se que são dois valores constitucionais postos em choque (proteção do consumidor e livre iniciativa), de modo que a situação se mostra bastante complexa e exige um aprofundamento na construção de uma solução que não se mostre simplista demais, privilegiando uma parte em relação a outra. Desse modo, embora o Código de Defesa do Consumidor apresente uma solução que à primeira vista parece a mais atraente, é preciso uma visão ampla do cenário para a correta compreensão do fenômeno contratual que se observa na situação emergencial.

CDC adotou a teoria do rompimento da base objetiva do negócio jurídico, conforme se vê no art. V, do CDC, segundo a qual a ocorrência de um fato superveniente que cause onerosidade excessiva ou desequilíbrio negocial autoriza a revisão contratual, posto que o fato superveniente modificou as circunstâncias anteriormente negociadas e repercutiu no equilíbrio das obrigações, causando onerosidade excessiva a uma das partes. 

A solução do Código Consumerista, em uma primeira análise, amolda-se perfeitamente à hipótese: a pandemia do COVID-19 é um fato superveniente, cujas consequências repercutem no equilíbrio contratual, causando onerosidade excessiva à uma das partes. Contudo, se é uma verdade que os consumidores foram extremamente afetados pelas consequências patrimoniais da crise sanitária, o mesmo se pode dizer para os prestadores de serviço, aí incluídas as instituições privadas de ensino. Importante destacar que o Superior Tribunal de Justiça já salientou que a aplicação do CDC pode ser mitigada, “se necessário o redesenho do sistema para evitar o seu colapso (exceção da ruína) (AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.451.846 – SP). Assim, constatado o aumento de demandas revisionais em face de instituições de ensino, a aplicação acrítica dessa teoria poderia ocasionar um verdadeiro colapso econômico, com repercussões concorrenciais e que poderiam, em última análise, impactar diretamente os consumidores.

Os reflexos da crise nessas instituições são muitos: aumento da taxa de evasão, diminuição de matrículas, especialmente na educação infantil e, como consequência da inadimplência e dos descontos em mensalidades, a demissão de professores[1]. Assim, a aplicação acrítica da teoria do rompimento da base objetiva poderia onerar sobremaneira tais instituições e levá-las à ruína, fato que não é desejável tanto do ponto de vista concorrencial – posto que a preservação da empresa é um importante estímulo à atividade econômica como um todo e para a produção de empregos e riquezas para a sociedade –, quanto civilista, uma vez que a função social do contrato vincula as partes às exigências de boa-fé e tutela da dignidade entre si e perante terceiros. Trata-se da atuação inter partes e ultra partes da função social do contrato.

À luz desse cenário, o melhor caminho seria que instituições privadas que prestam serviços educacionais e alunos/consumidores pudessem negociar entre si, para que possam buscar alternativas para o pagamento das mensalidades. Nesse sentido, o Procon do Estado de São Paulo divulgou nota técnica em que estabelece diretrizes para a negociação contratual entre consumidores e instituições privadas, com o objetivo de “compatibilizar a proteção do consumidor com a necessidade da continuidade do desenvolvimento econômico”.

O documento, que pode ser encontrado na íntegra aqui, estabelece dez diretrizes, entre as quais a necessidade de um canal de atendimento ao consumidor, que seja célere e busque tratar das questões financeiras do estudante. Trata-se de uma importante iniciativa para a busca da autocomposição e reequilíbrio contratual, pautados pela boa-fé, cooperação, proteção e conservação do contrato.

Sobre o tema, o grande jurista brasileiro Flávio Tartuce discorre sobre a necessidade de as partes comunicarem sua situação econômica para a outra, no intuito de buscarem a solução consensual, em atendimento aos deveres de informar e de transparência, relacionados à boa-fé objetiva[2]. Além da busca por uma solução consensual, seria interessante que a Lei 14.010/2020 (Lei Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus) tivesse previsto de maneira expressa sobre esses contratos e resolvido de maneira efetiva a insegurança jurídica que se instala com a intervenção judicial nas relações contratuais.

A conclusão do jurista citado é sem dúvida a mais eloquente e compatível com um ordenamento jurídico que promove a solução consensual[3], quando afirma que 

chegou o momento de as partes contratuais no Brasil deixarem de se tratar como adversários e passarem a ser comportar como parceiros de verdade. Ao invés do confronto, é preciso agir com solidariedade. De nada adiantará uma disputa judicial por décadas, com contratos desfeitos e relações jurídicas extintas de forma definitiva. Bom senso, boa-fé e solidariedade. Essas ferramentas serão essenciais, no presente e no futuro, muitas vezes mais do que os remédios ou instrumentos jurídicos antes citados, sejam aqueles que geram a extinção ou a conservação dos negócios. 

Desse modo, conclui-se que seria aconselhável que as partes possam, em conjunto e pautados pela boa-fé objetiva, construir uma negociação que preserve os interesses de ambos. A aplicação acrítica da solução do Código de Defesa do Consumidor não abarca a complexidade da situação e pode, ao revés, acarretar o aumento da crise que se instalou nesse setor, gerando mais instabilidade e insegurança.


Rodrigo Costa é graduando em Direito pela Universidade de Brasília.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

[1] Maioria das escolas particulares perdeu mais de 10% dos alunos, diz pesquisa. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/07/maioria-das-escolas-particulares-perdeu-mais-de-10-dos-alunos-diz-pesquisa.shtml?utm_source=mail&utm_medium=social&utm_campaign=compmail.

[2] O Coronavírus e os Contratos. Extinção, Revisão e Conservação. Boa-fé, Bom Senso e Solidariedade. Disponível em: http://www.flaviotartuce.adv.br/artigos. Acesso em: 12/07/2020.

[3]  Código de Processo Civil 2015. Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei. § 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

você pode gostar

Deixe um comentário

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Vamos supor que você está de acordo com isso, mas você pode optar por não participar, se desejar. Aceitar

Privacy & Cookies Policy