Por: Asafe Ribeiro de Campos
Quando compreendidos os impactos que advêm da pandemia do COVID-19, pode-se observar um certo espanto quanto ao nível significativo de desigualdade social, dando a entender que isto só se tornou claro devido ao momento atual vivenciado. Há ainda aqueles que supõem que todos os cidadãos experienciam, igualitariamente, o contexto pandêmico. No entanto, é importante compreender que esta esfera de desigualdade não se faz recente nem plenamente compartilhada, mas sim perpassa séculos de formação do Estado brasileiro. Isto confere ao negro uma realidade desigual que implica diretamente em sua qualidade de vida e, além disto, agrava condições já precárias, conferindo um verdadeiro estado de miséria social.
Um importante ponto a ser compreendido e destrinchado é o direito fundamental à vida, o qual a Constituição Federal faz menção em seu art. 5º, caput, e XLVII, a, de forma explícita, porém genérica. A despeito das inúmeras controvérsias e debates quanto ao conceito mencionado,[1] importa aqui compreender a manutenção da vida na sociedade atual, tendo em vista as diversas mudanças na dinâmica social. Neste caso, o ponto central não seria abordar sua significação quanto ao seu início ou fim, mas sim como o Estado brasileiro contribui para assegurar aos cidadãos as condições mínimas para viverem com dignidade.
A partir da Constituição de 1946, e, por conseguinte, de 1988, o direito fundamental à vida passou a não se resumir mais à dimensão de proteção da segurança individual, deixando clara a congruência com demais direitos fundamentais no intuito de conferir um enfoque coletivo.[2] Mesmo posta sua impossibilidade enquanto direito absoluto, o direito à vida guarda certa especialidade, visto o bem jurídico que resguarda e sua essencialidade, além da perfeita congruência com os princípios fundamentais da cidadania e da dignidade da pessoa humana, abordados pela Constituição Federal em seu art. 1º. Ainda em conformidade com a carta magna, tal direito fundamental dirige-se não somente à compreensão do início ou fim do ciclo vital, mas também às condições com as quais este se mantém, resguardando a vida sob todos os seus aspectos, assegurando sua manutenção livre, justa e igualitária.
Há, deste modo, uma compreensão essencial a respeito do direito à vida: seus desafios e complexidades demandam uma ação estatal ainda mais presente e efetiva quando, ao perceber sua conexão com demais direitos fundamentais, a realidade deixa clara a implicação com inúmeros fatores que se envolvem diretamente em sua manutenção. Através disto, é possível observar melhor a miséria na realidade social brasileira, persistente desde sua gênese e que ceifa vidas constantemente, calcada na disparidade de oportunidades e na negação de direitos fundamentais à população negra.[3]
A vida do negro no Brasil é o ponto em destaque, a qual envolve séculos de uma exploração até hoje vigente. Sendo a liberdade um dos aspectos fundamentais para que se possa viver bem, ela aloca-se como ponto de partida para se afirmar que a falsa sensação de abolição jamais teve o fito de conferir ao negro o status de livre. Além de não proporcionar a devida integração da “população de cor” à sociedade, fomentou a ideia de que tal “ação generosa” seria suficiente para os fazer usufruir das oportunidades do meio social, as quais, pelo contrário, foram mais aproveitadas pelos grupos dominantes.
Assim, importa ressaltar que a luta contra os privilégios, desde sempre alocados aos brancos, deu-se exclusivamente pelo esforço da população negra em buscar seus direitos pelo mínimo existencial que lhe era negado, a fim de integrar-se econômico, político, educacional e socialmente.[4] Ainda hoje, há um significativo esforço em negar a luta do negro por seus direitos fundamentais, através da imposição de uma falsa harmonia entre pessoas de diferentes grupos raciais, e por meio ainda do Mito da Democracia Racial.[5] No entanto, este não se mostra suficiente em seu intento, pois a desigualdade racial se escancara até àqueles que se negam a ver tal realidade.
A clareza de tal afirmação se estampa ainda mais conforme compreendemos os efeitos da, ainda em ocorrência, pandemia da COVID-19 no país. A ausência de um plano de combate ao vírus fez com que o Brasil chegasse à exorbitante marca de mais de 525 mil mortes, atualmente. Esta ingerência, no entanto, não atinge o país de forma igual; pesa significativamente mais à população que se encontra em vulnerabilidade social, a qual jamais foi combatida diretamente e de forma eficaz.
Tal vulnerabilidade apresenta-se de forma escancarada, com base no difícil acesso não só a empregos, mas também à alimentação, saúde, dentre outros serviços básicos e essenciais à manutenção da vida. Para entender melhor tal situação, há dados que corroboram este peso desigual: no ano de 2020, a taxa de desocupação quanto às pessoas negras atingiu uma superioridade de 58% com relação aos brancos; e, para além do enorme número de óbitos, os negros apresentaram um número de mortes 40% maior do que os brancos.[6] Há, ainda, um estudo referente à cidade de São Paulo, mostrando que a população que compreende os pobres, negros e pessoas com baixa escolaridade possuem mais chances de morrer por Covid.[7] Isto representa não somente a falta de políticas públicas que contemplem populações em vulnerabilidade, mas também a falta de acesso à vacinação em massa, que poderia ter poupado milhares de vidas.
Ao apontar a discriminação na realidade racial, Abdias do Nascimento faz um importante apontamento que corrobora com as ideias que aqui perpassam. Segundo o autor, a falta de oportunidades nos âmbitos da moradia, emprego e educação, faz com que se crie um “beco sem saída” entre a discriminação racial e a ausência dos meios necessários à melhoria das condições de vida.[8] A dinâmica dos diversos princípios quanto ao direito à vida reforça a necessidade de se compreender esta dimensão desafiadora e complexa, a qual requer ações efetivas para que se concretize.
Negar a cidadania ao povo negro compreende negar-lhes uma vida digna, e todas as condições que a possibilitam. Mais do que isso, negar-lhes a cidadania compreende ainda a negação da condição de ser humano, de sujeito de direito, o qual a nossa Constituição jurou proteger e preservar. O que seria então o desvalor do corpo negro? Seria, aqui, passar por cima de todas as barreiras confrontadas pela população negra, todos os obstáculos vencidos, todos os estigmas imperantes que minimizam sua força e reduzir sua luta à mera vitimização. Reconhecer seu valor não configura um privilégio ou premiação, configura o mínimo para a manutenção de sua existência, tendo em vista que o período pandêmico vivenciado atualmente reforça ainda mais as barreiras que se tem enfrentado e que hão de ser enfrentadas.
Asafe Ribeiro de Campos é graduando em Direito pela UnB, membro da RED|UnB e do Projeto ASAS.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
[1] Debates que envolvem a discussão em torno do conceito de vida e suas implicações: STF: ADPF 54, rel. Min. Marco Aurélio; DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2009; MARTEL, Letícia de Campos Velho. Dilemas Constitucionais sobre o início e o final da vida: um panorama do estado da arte no direito brasileiro. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin; FREIRE, Alexandre (orgs.). Direitos fundamentais e jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, pp. 647-686.
[2] SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021, p. 154.
[3] Estado de Minas, Economia. Taxa de desocupação de pretos é 49,6% maior do que a de brancos, mostra IBGE. Disponível em: < https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2021/03/10/internas_economia,1245161/taxa-de-desocupacao-de-pretos-e-49-6-maior-do-que-a-de-brancos-mostra-ibg.shtml>. Acesso em: 06 jul. 2021.
[4] FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo: Global, 2007.
[5] Para compreender melhor este termo e suas implicações: FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São Paulo: Global, 2007; FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. São Paulo: Global Editora, 2006; NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3. ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.
[6] MITTELBACH, Juliana. Brasil de Fato. Que abolição é essa que mantém povo escravo da fome e da morte? Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2021/05/13/artigo-que-abolicao-e-essa-que-mantem-povo-escravo-da-fome-e-da-morte>. Acesso em: 06 jul. 2021.
[7] AMOROZO, Marcos. Revista Piauí. Desigualdade que mata. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/desigualdade-que-mata/?_ga=2.122838798.405502072.1625483368-2119969479.1622951752>. Acesso em: 06 jul. 2021.
[8] NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3. ed. São Paulo: Perspectivas, 2016, pp. 100-1.