Por Arthur Rocha de Souza[1]
Este artigo apresenta como objetivo principal a investigação da interconexão entre lawfare, fake news e pós-verdade, analisando o significado de cada um desses termos, bem como a maneira que esses fenômenos influenciam a dinâmica do Estado Democrático de Direito. Por meio de uma revisão bibliográfica, será analisado como o dueto de lawfare e fake news desempenha um papel crucial na construção do período de pós-verdade, resultando na corrupção da comunicação democrática e minando sistematicamente a busca pela verdade no espaço público.
1. Lawfare: A Instrumentalização do Sistema Legal
“Lawfare” é um termo estrangeiro que foi reinterpretado diversas vezes desde sua primeira citação acadêmica em 1975 na obra “Whither Goeth the Law—Humanity or Barbarity” de John Carlson e Neville Yeomans[2]. Esses autores associaram “law” e “warfare” a fim de ilustrar como as palavras e o direito utilitário substituíram as espadas e a violência nas guerras contemporâneas[3]. Posteriormente, Charles Dunlap Jr. e David Kennedy atribuíram ao lawfare um caráter intrinsecamente pejorativo, em que a manipulação e instrumentalização do sistema legal se revelam como elementos fundamentais desse fenômeno[4]. Essa dinâmica é explorada no conceito idealizado por Werner de “reflexive lawfare”[5] o qual evidencia que as leis humanitárias, inicialmente destinadas a fins legítimos e benéficos para a sociedade, abrem brechas nas quais o interesse público é reduzido a finalidades particulares.
A partir da análise desse termo, é possível resumir o lawfare como um uso estratégico do sistema jurídico a fim de alcançar objetivos particulares, políticos e militares, revelando seu caráter de subversão da justiça, politização do direito e instrumentalização do sistema legal. Diante disso, Zaffaroni[6] alega que o lawfare não apenas é responsável pela deterioração do direito penal contemporâneo, mas também se destaca por ser um termo que engloba acontecimentos antigos e recorrentes na sociedade global.
Na Alemanha Nazista, o lawfare manifestou-se no comportamento dos juízes, que emitiam sentenças alinhadas aos comandos de Adolf Hitler. Muitas vezes, negligenciavam a devida tramitação do processo, ignorando completamente a análise das defesas, das acusações e das provas apresentadas nos procedimentos. Esses julgamentos corruptos, denominados “show trial”[7], estavam vinculados a um expressivo interesse político que buscava assegurar a permanência de Hitler no poder e manipular a sociedade civil a partir de meras simulações de um procedimento jurídico legítimo. Assim, o sistema jurídico alemão foi aparelhado por agentes de Hitler, que transformaram as decisões judiciais em instrumentos políticos que validavam o poder do regime nazista, ratificando a presença do lawfare nessa época germânica.
No Brasil, o lawfare pode ser identificado na história da Operação Lava Jato, constituída por uma série de investigações sobre esquemas de corrupção e fraudes na política, em que se explicitou uma clara deterioração do procedimento penal ao transformar processos jurídicos em interesses políticos e midiáticos. A evidência desta constatação se torna clara ao se observar o modo irresponsável com o qual as prisões relacionadas a essa operação foram executadas, contando com o apoio das autoridades e da grande mídia. Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao autorizar prisões em segunda instância, promoveu inúmeras detenções que careciam de uma análise de provas aprofundada, baseando-se muitas vezes apenas em delações premiadas. A operação buscava, principalmente, a desarticulação de adversários políticos e a satisfação da mídia por meio das prisões irresponsáveis, negligenciando a devida avaliação das evidências e abdicando da essência da operação no combate contra a corrupção[8].
Diante desses casos explícitos de uso do lawfare, Zaffaroni[9] aponta duas principais consequências desse fenômeno: o esquartejamento do direito penal verdadeiro e a subversão do caráter de justiça e imparcialidade dos processos jurídicos. Segundo o autor, o lawfare gera um direito penal vergonhoso, marcado pelo descontrole do poder punitivo e pela instrumentalização política e midiática do processo penal. Esse novo direito legitima, de forma discursiva e pragmática, o poder político que, teoricamente, deveria funcionar como um obstáculo para conter “as correntes turvas do poder punitivo”[10]. Além disso, a consequente politização do direito, exemplificada pela Operação Lava Jato, distorce o setor jurídico, que deixa de representar imparcialidade e justiça, passando a ser percebido como uma entidade marginal, comprometida em apoiar intenções particulares.
Finalmente, é possível estabelecer uma conexão evidente entre os meios de comunicação e o “lawfare”, o que fica explícito na forma como as mídias contribuem para a criação de um inimigo da nação, comparável aos judeus na Alemanha nazista e aos políticos corruptos na Operação Lava Jato. De maneira análoga, Zaffaroni[11] destaca a construção midiática de um mundo paranoico que influencia e legitima os indivíduos a desrespeitarem procedimentos legais em nome do combate ao inimigo nacional propagado pela mídia. Assim, os meios de comunicação exercem uma considerável influência na propagação do “lawfare”, frequentemente utilizando artifícios antiéticos e ilegais para manipular os receptores de notícias, por meio de informações falsas e sensacionalistas.
2. Fake news: o perigo da desinformação deliberada
Assim como “lawfare”, “fake news” é um termo que se popularizou recentemente, mas é praticado há muito tempo na sociedade. Esse termo consiste em “notícias, estórias, boatos, fofocas ou rumores que são deliberadamente criados para ludibriar ou fornecer informações enganadoras”[12]. Com as inovações tecnológicas e a ascensão da internet, testemunhamos uma transformação na maneira como as notícias são produzidas e compartilhadas, visto que o engajamento se torna mais importante que o compromisso com a verdade. Assim, as novas fontes de comunicação, como as redes sociais, são responsáveis por difundir informações falsas, obscurecendo a verdadeira intenção do emissor de manipular seus seguidores. Esse fenômeno emerge como uma ameaça à sociedade, especialmente em uma era tecnológica em que a habilidade de manipulação é explorada para fins sombrios, como se viu nas eleições presidenciais de 2018 no Brasil.
Nesse contexto histórico, Jair Bolsonaro adotou estratégias semelhantes às utilizadas por Donald Trump em 2016, valendo-se da crescente preferência pela internet como principal meio de comunicação em detrimento dos métodos tradicionais, como comícios e passeatas. Durante sua campanha presidencial, Bolsonaro explorou o uso de “robôs”[13] capazes de disseminar milhares de mensagens por hora, mas que consistiam, na maioria das vezes, em informações falsas acerca de seus opositores políticos e buscavam fortalecer a imagem de Bolsonaro como um suposto salvador da pátria e combatente da corrupção. O compartilhamento incessante dessas notícias falsas por seus seguidores transformou-os em uma massa suscetível à manipulação, revelando a incapacidade de muitos em discernir entre informações verdadeiras e falsas. Ademais, a privacidade dos grupos de WhatsApp fomentou a propagação indiscriminada de mensagens enganosas e agressivas, tornando os chats online verdadeiros ambientes de desenvolvimento do bolsonarismo[14].
Com isso, é possível elencar as principais consequências da propagação de notícias falsas como sendo a corrupção da comunicação na esfera pública e a quebra do equilíbrio entre constitucionalismo e democracia[15]. Esses reflexos decorrem da capacidade das fake news de manipular o pensamento e comportamento públicos conforme a vontade do emissor das notícias, muitas vezes retratando um suposto inimigo do povo que não recebe o mesmo respeito e consideração assegurados em um estado democrático de direito, explicitando uma clara traição dos princípios democráticos e constitucionais. Além disso, a influência nefasta dessas informações distorcidas corrompe o ambiente comunicativo na sociedade, minando debates públicos produtivos e fomentando a polarização política. Dessa forma, associada ao lawfare, as fake news contribuem para a construção de um cenário de manipulação social, no qual a veracidade e a factualidade são cada vez mais desvalorizadas. Esse cenário de convergência entre lawfare e fake news é denominado “pós-verdade”.
3. Pós-Verdade: O dueto de lawfare e fake news
Em 2016, o termo “pós-verdade” foi eleito a palavra do ano pelo dicionário Oxford[16]. De acordo com essa instituição, o vocábulo em questão, de origem baumaniana, denota “circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal”[17]. O que fomentou o uso dessa palavra foram todos os acontecimentos intrínsecos à campanha eleitoral de Donald Trump[18], em que a alienação, a manipulação, a disseminação de fake news e a instrumentalização do sistema legal foram determinantes para a vitória do candidato, consolidando, assim, um cenário explícito de pós-verdade.
Diante desse contexto, é possível afirmar que a conjunção de fake news e lawfare forma um dueto perigoso que contribui para a construção da pós-verdade. Essa união do caos conta com a instrumentalização e com a politização do sistema jurídico, fomentadas pela natureza manipuladora e antidemocrática da disseminação planejada de notícias falsas. Com isso, essa parceria capacita uma pequena parcela de elites políticas e midiáticas a exercer controle sobre a política do país, a moldar o judiciário conforme suas vontades e a construir um cenário pós-verdadeiro, no qual a veracidade e a facticidade perdem relevância.
Portanto, diante da análise feita acerca dos conceitos de lawfare, fake news e pós-verdade, é evidente que essas práticas têm raízes profundas na história da humanidade, como evidenciado na Alemanha nazista. No entanto, com a ascensão da era tecnológica, testemunha-se uma ampliação exponencial da capacidade de manipular todo o sistema para satisfazer interesses políticos, pessoais e midiáticos. Dessa forma, é notório que o dueto de lawfare e fake news está progressivamente aprofundando o período de pós-verdade já identificado por Bauman. Tal cenário é responsável não somente pela corrupção da comunicação, mas também pelo aniquilamento dos pilares da justiça e da pluralidade do estado democrático de direito. Esse cenário ressalta a urgência de enfrentar os desafios impostos por essa aliança sinistra, a fim de preservar os fundamentos democráticos e garantir a estabilidade dos sistemas jurídicos.
[1] Graduando do 3º semestre do curso de Direito da Universidade de Brasília, membro da área de pesquisa do Veredicto (Projeto de Extensão – UnB). E-mail: arthursowza@gmail.com.
Referências
[2] Werner, 2010. p 63.
[3] Andrade, 2019. P 28.
[4] Werner, 2010. P 69.
[5] Andrade, 2019. P 29
[6] Zaffaroni, 2021. P 16-19
[7] Ibidem
[8] Souza Neto 2020. p 130-143.
[9] Zaffaroni, 2021. p 32.
[10] Zaffaroni, 2021. p 86.
[11] Zaffaroni, 2021. p 33.
[12] Santaella, 2019. p 18.
[13] Souza Neto 2020. p 142-143.
[14] Ibidem
[15] Tomaz, Bastos, 2019. p 11
[16] Santaella, 2019. p 31
[17] Disponível em: <https://www.dictionary.com/browse/post-truth>. Acesso em: 15 jan. 2024.
[18] Tomaz, Bastos, 2019. p 10
Referências
ANDRADE, Regina L. S. A. M. A (in)sustentabilidade do foro por prerrogativa de função pelo combate ao lawfare, 8 abr. 2019. Disponível em: <https://bdm.unb.br/handle/10483/21767>. Acesso em: 16 jan. 2024.
SANTAELLA, Lucia. A Pós-Verdade é verdadeira ou falsa? Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2019.
SOUZA NETO, Cláudio P. de. Democracia em crise no Brasil: valores constitucionais, antagonismos políticos e dinâmica institucional. São Paulo: Ed. Contracorrente, 2020.
TOMAZ, Mateus Rocha; BASTOS, M. V. F. Fake news e pós-verdade no paradigma constitucional do estado democrático de direito: uma análise crítica à luz da teoria habermasiana do discurso e da teoria dworkiana da integridade no direito e na política. In: X Congresso da ABraSD: 55 anos de ensino da Sociologia Jurídica no Brasil, Recife, 2019.
WERNER, W. G. The Curious Career of Lawfare, Case Western Reserve. Journal of International Law, v. 43, n. 1, p. 61-72, 2010.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl (et al). Bem-vindos ao LawFare! Manual de passos básicos para demolir o Direito Penal. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021.