Escrito por Grégori Lucas Dias da Silva [*]
O tema da execução penal no Brasil constitui uma das prolíficas vicissitudes que compõem o nosso sistema jurídico[1]. Em um país de dimensões continentais, com um complexo prisional aquém às demandas de um aparato baseado integralmente na lógica do cárcere e da criminalização em excesso[2], é óbvio que problemas estruturais originados dessa engrenagem social seriam dignos de reparação e cuidado.
Nesse contexto de estado de coisas inconstitucional[3], a previsão de segregação executória da pena de reclusão de pessoas transgênero envolve complicadores de natureza existencial[4]. Parte desses complicadores foram tratados no Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 527, ação de controle concentrado ajuizada pela ABGLT, que buscava remediar o desatino existente entre a identidade de gênero da pessoa transgênero apenada e a população carcerária que dividirá cela com ela ou apartada dela.
Em um primeiro momento, o Ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADPF, autorizou em decisão de caráter liminar[5] que mulheres transgênero e travestis de identidade feminina fossem transferidas para presídios femininos. Após, o Ilmo. Relator determinou que houvesse uma escolha por parte da população carcerária transgênero sobre qual instalação prisional ela deveria cumprir a pena[6]. Depois dessa segunda liminar, quando analisado o mérito, no entanto, o Tribunal decidiu que, por haver uma inovação promovida pela Resolução n.º 366 de 20/01/2021 do Conselho Nacional de Justiça, a ação perdeu objeto, não demandando nova pronúncia do Pretório Excelso[7].
A partir da Resolução n.º 366 do CNJ, os artigos 7º e 8º da Resolução n.º 348 de 13/10/2020, que tratam sobre o cumprimento de pena e a custódia cautelar de indivíduos transgênero, passaram a contar com a seguinte redação:
Art. 7º Em caso de prisão da pessoa autodeclarada parte da população LGBTI, o local de privação de liberdade será definido pelo magistrado em decisão fundamentada.
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- 1º A decisão que determinar o local de privação de liberdade será proferida após questionamento da preferência da pessoa presa, nos termos do art. 8º, o qual poderá se dar em qualquer momento do processo penal ou execução da pena, assegurada, ainda, a possibilidade de alteração do local, em atenção aos objetivos previstos no art. 2º desta Resolução.
- 1º-A. A possibilidade de manifestação da preferência quanto ao local de privação de liberdade e de sua alteração deverá ser informada expressamente à pessoa pertencente à população LGBTI no momento da autodeclaração.
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[…]
Art. 8º De modo a possibilitar a aplicação do artigo 7º, o magistrado deverá:
[…]
II – indagar à pessoa autodeclarada parte da população transexual acerca da preferência pela custódia em unidade feminina, masculina ou específica, se houver, e, na unidade escolhida, preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas específicas, onde houver; e
III – indagar à pessoa autodeclarada parte da população gay, lésbica, bissexual, intersexo e travesti acerca da preferência pela custódia no convívio geral ou em alas ou celas específicas.
Essa regulação editada pelo CNJ permitiu ao Poder Judiciário requalificar o entendimento adotado para a circunstância do cumprimento de pena e de segregação cautelar de pessoas transgênero que antes viviam em um limbo jurídico que as vulnera em uma instalação penitenciária que não admitia a sua identidade de gênero e impunha uma violência atroz contra seu corpo[8].
No Habeas Corpus n. 861.817/SC, com a resolução já produzindo efeitos para a magistratura, o Ministro Jesuíno Rissato asseverou, em consonância com o quanto definido pelo CNJ, que [é] dever do Judiciário indagar à pessoa autodeclarada parte da população transexual acerca da preferência pela custódia em unidade feminina, masculina ou específica, se houver, e, na unidade escolhida, preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas específicas[9].
O writ trazido pela Defensoria Pública do estado de Santa Catarina versava sobre uma decisão do juízo de execução penal que havia determinado o recolhimento de uma mulher transgênero a instalação prisional masculina, ressalvada a circunstância de ter o juízo preteritalmente considerado o presídio incompatível para acolher a paciente em cela privativa ou que acolhesse pessoas transgênero em espaço apartado do convívio geral, não havendo tempo hábil para mudança efetiva nesse quadro no intervalo entre a decisão que negou a conformidade da unidade penitenciária e a decisão que determinou a transferência.
Ao dispor de direito fundamental subjetivo da parcela transgênero da população, o Estado, como bem lembrado pelo Ministro Rissato, tem a obrigação de resguardar a incolumidade física, moral e psíquica de dissidentes de gênero recolhidas no sistema penitenciário, sob pena de incorrer em violação sistemática aos direitos e garantias de transgêneros.
No bojo da ADI 4275/DF, o Supremo Tribunal Federal definiu que [a] identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la[10]. Sendo manifestação volitiva da própria pessoa que constitui a sua identidade da forma que melhor atender ao direito unipessoal à busca da felicidade[11], compete ao Estado não só evitar qualquer intervenção exógena na constituição de tal identidade (Übermassverbote), como também proteger o direito de celebrá-la socialmente por meio da expressão de gênero e autodesignação (Untermassverbote), incluindo, especialmente, o contexto carcerário sobre o qual o Poder Público deve administrar
Na mesma linha dessa construção doutrinária e jurisprudencial, em decisão da lavra do Ministro Reynaldo Soares Fonseca, o Tribunal da Cidadania determinou que o juízo de Execução do Distrito Federal procedesse à aplicação do inc. II do art. 8º da Resolução n.º 348/2020 do CNJ e promovesse, imediatamente, a transferência da detenta a instalação penitenciária que fosse condizente com a sua identidade de gênero (HC n. 955.966, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, DJEN de 12/05/2025.)[12].
A situação fática do caso supracitado — onde houve manifestação de vontade da detenta solicitando transferência a unidade prisional feminina, na qual não se adaptou bem por ter se identificado à época como um homem cisgênero homoafetivo, para depois requerer o retorno à unidade prisional feminina, por se identificar novamente como mulher trans — fez com que a liminar, a princípio, fosse negada em primeiro plano. Após reiteração do pedido, o Ministro entendeu que não haveria razão jurídica para negar a transferência, pois a resolução confeccionada pelo Conselho Nacional de Justiça não impede que seja retificado o status quo da paciente para ocupar estabelecimento prisional diverso ou ala, ou cela, específicas para acolhê-la.
Nesse contexto, é imperativo considerar que a identidade de gênero não é uma realidade estanque e imutável, insuscetível a alterações de percepção de ordem individual ou coletiva. A autoconcepção pessoal a respeito de quem se é depende, muitas vezes, de fatores alheios à circunstância volitiva do indivíduo atomizado.
Perdura sobre as características de inferência de gênero uma pressão imensurável sobre a identidade de pessoas transgênero, especialmente em um contexto de privação de liberdade com detentos cisgênero que, por ausência de letramento e de interesse sobre questões de dissidência generificada, impõe as suas normas sociais com o uso de violência e grave ameaça.
Com base nisso, entende-se correta a aplicação do direito pelo Ministro Reynaldo Fonseca ao conceder a liminar[13], pois, em um contexto abrangente de um complexo penal eivado de possibilidades de violência simbólica e física, a identidade de gênero perpassa um traço que, infelizmente, pode ser hostilizado por pressões sociais advindas de indivíduos que não compreendem a complexidade da construção de gênero.
Adiro, para fins de investigação perfunctória do fenômeno gênero, o entendimento de Judith Butler. A filósofa da Universidade de Berkeley entende que o gênero é uma expressão de atos performativos e constitutivos, sendo a própria impressão adotada sobre a performatividade dos atos uma estilização de tais atos antropocênicos a partir de uma lente generificada.[14] Isso quer dizer que, a despeito dos melhores esforços daqueles que buscam fidelizar essa categoria a um determinismo biológico tacanho[15], o gênero não é um signo que pode se impor nem se constituir uma única vez no espaço-tempo. Ele é, em sua própria essência fenomenológica, um compêndio de ações performadas e constituídas estilizadamente em um dado espaço temporal.
O direito, assim como as demais ciências sociais, é o campo de exame de tais realidades. Porém, apesar de existir um dever de se analisar tais temas à luz das teorias das ciências sociais, o direito deve ir além, perscrutando tais fenômenos via uma ótica aplicável à realidade, não caindo na armadilha de efetivar diagnósticos e sonegar alternativas exequíveis.
Existe uma questão complexa posta a debate, sendo a necessidade de se incluir corpos dissidentes na lógica de um direito penal minimamente humano, e para que a solução para essa questão seja adequada ao paradigma constitucional eleito em 1988[16] é imprescindível acompanhar a complexidade dos fenômenos sociológicos sem olvidar que sobre eles se encontram ali uma pessoa humana, com dignidade inerente[17] e direitos inalienáveis, mesmo para o onipotente e onipresente aparato repressivo do Estado. Não devemos nunca nos esquecer que sobre cada processo repousa uma pessoa, que transcende a “mera dogmática positivista do direito. Urge, portanto, um compromisso ético e uma empatia minimamente constituída de operadores de direito para evitar que as injustiças se perpetuem sem qualquer desafio legal — mesmo que o punitivismo míope nos impeça de enxergar um horizonte positivo sobre o destino daqueles que estão recolhidos ao cárcere.
[1] Tornou-se lugar-comum entre juristas classificar o sistema penal brasileiro como um aparato “que prende muito, mas prende muito mal”. Essa frase já foi dita pelos Ministros Alexandre de Moraes (https://g1.globo.com/politica/noticia/2016/10/brasil-historicamente-prende-muito-mas-prende-mal-diz-ministro.html), Raul Jungmann (https://www.iea.usp.br/noticias/crime-organizado-e-corrupcao), Gilmar Mendes (https://sbtnews.sbt.com.br/noticia/justica/temos-prendido-muito-e-prendido-mal-diz-gilmar-mendes), Ricardo Lewandowski (https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2025/03/21/lewandowski-diz-que-justica-solta-porque-policia-prende-mal-veja-a-repercussao-da-fala.htm), Luis Roberto Barroso (https://www.migalhas.com.br/quentes/417141/stj-discute-aprimoramento-e-preconceitos-no-reconhecimento-de-pessoas), etc.
[2] Sobre o tema das deficiências inerentes ao sistema de prisões nacionais, recomendo a sustentação oral na ADC 43, 44 e 54 do jurista José Eduardo Cardozo, ex-Ministro da Justiça e Advogado-Geral da União, ao tratar sobre a questão do sistema carcerário do ponto de vista governamental à época que figurava no topo do Ministério da Justiça do governo Dilma. Disponível em: https://youtu.be/KaFtW7XXwIM?si=DHSn7GRySKQPuwOF.
Remonta-se também a sempre incidente discussão sobre o direito penal mínimo adotado enquanto panorama constitucional e o cenário instalado pela criminalização secundária no Brasil — que suscita o Estado-penal como a primeira via de solução dos conflitos daqueles agentes que, selecionados a dedo pelas agências de controle formais, são submetidos ao escrutínio e ao poder de penar do Poder Público. Na dicção do professor Claudio Brandão, “[N]o discurso criminológico sobre a questão criminal, a criminalidade é um status atribuído pelas as agências de controle penal, traduzindo-se em um ato de poder. Assim, a criminalidade não é imputada “em face do que alguém fez”, mas sim é uma imputação que se realiza em função da convergência de interações de várias partes, incluindo todos os que fazem as normas, os que as interpretam e os que executam, de um lado, e de outro os que as infringem. Essa imputação da criminalidade é um bem negativo, conferindo um estigma a alguns indivíduos, tornando-os “clientes” do sistema penal.” (BRANDÃO, C. PODER E SELETIVIDADE: OS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO NA AMERICA LATINA E OS SEUS IMPACTOS NA CRISE DO DISCURSO PENAL. POWER AND SELECTIVITY: THE LATIN AMERICAN CRIMINALIZATIONS PROCESS AND ITS IMPACTS IN THE CRISES OF THE CRIMINAL ARGUMENTATION. Caderno de Relações Internacionais, [S. l.], v. 10, n. 18, 2019. DOI: 10.22293/2179-1376.v10i18.1039. Disponível em: https://revistas.faculdadedamas.edu.br/index.php/relacoesinternacionais/article/view/1039. Acesso em: 18 maio. 2025.)
[3] ADPF 347, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: LUÍS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 04-10-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 18-12-2023 PUBLIC 19-12-2023.
[4] Rememoro, com fins de registro da historicidade, a ordem prolatada pelo Ministro Luís Roberto Barroso no Habeas Corpus n. 152.491/SP em 2018. O remédio constitucional cuidava de pedido de habeas corpus repressivo de paciente travesti que, enquadrada em uma prisão masculina, estava ilegalmente exposta a situações de violência e coação moral e física. A paciente pleiteava a liberdade para recorrer do édito condenatório e, se não concedido o pleito, que a menos pudesse cumprir a pena em regime menos gravoso. A ordem foi denegada pela Quinta Turma do STJ, por inadequação da via eleita, e, impetrado novamente um writ, foi concedida a ordem de ofício pelo Supremo Tribunal Federal para as pacientes serem postas em presídios compatíveis com as suas identidades de gênero enquanto travestis, erroneamente tratada como orientação sexual pelo ilustre Relator. Apesar do Ministro considerar a gravidade do crime em concreto e a possibilidade “fundada” de reincidência relativa para manutenção do recolhimento em unidade prisional, critérios estes próprios de um exame de Futurologia, a decisão foi importante para reconhecer o direito de detentas dissidentes de gênero a instalação prisional diversa daquela que o Estado entende burocraticamente que informa a sua identidade à luz do paradigma autoritário de seleção biologicista cisgênero.
[5] Ministro garante a presas transexuais direito a recolhimento em presídios femininos. STF Notícias. Disponível: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/ministro-garante-a-presas-transexuais-direito-a-recolhimento-em-presidios-femininos/.
[6] Transexuais e travestis com identificação com gênero feminino poderão optar por cumprir pena em presídio feminino ou masculino, decide Barroso. STF Notícias. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/transexuais-e-travestis-com-identificacao-com-genero-feminino-poderao-optar-por-cumprir-pena-em-presidio-feminino-ou-masculino-decide-barroso/
[7] Higídio, José. CNJ já definiu que trans podem escolher local de cumprimento da pena, decide STF. Consultor Jurídico. Online. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-ago-15/cnj-definiu-opcao-trans-onde-cumprir-pena-stf/.
[8] A Constituição Federal, nos incisos XLVII, alínea ‘e’, e XLIX do art. 5º, veda que as penas privativas de liberdade promovidas pelo Estado sejam cruéis e desrespeitem o direito dos apenados à proteção da integridade física e moral. Valorado tal axioma normativo, é consectário lógico enxergar nestes postulados de proteção do indivíduo a salvaguarda necessária para evitar que pessoas transgênero e travestis sofram uma sanção não em função do delito que cometeram, mas sim pela sua identidade, impedindo que a permanência em estabelecimento carcerário que repute inapropriado para a sua identidade de gênero seja empregado como um castigo cruel adicional infligido pelo Estado (privilegiando o paradigma do Direito Penal do Fato e não o do Autor). Leciona o professor Gilmar Ferreira Mendes em sede doutrinária que “[O]s direitos fundamentais não podem, portanto, ser considerados apenas como proibições de intervenção. Expressam, igualmente, um postulado de proteção. Utilizando-se da formulação de Canaris, pode-se dizer que os direitos fundamentais contemplam não apenas uma proibição de excesso (Übermassverbote) como também uma proibição de proteção insuficiente (Untermassverbote). Sob esse ângulo, é fácil ver que a ideia de um dever genérico de proteção, fundado nos direitos fundamentais, relativiza sobremaneira a separação entre a ordem constitucional e a ordem legal, permitindo que se reconheça uma irradiação dos efeitos desses direitos sobre toda a ordem jurídica.” (BRANCO, Paulo Gustavo G.; MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional – Série IDP – 19ª Edição 2024. 19. ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2024. E-book. p. 527). Igual conclusão pode ser inferida em Direito Comparado no caso recentíssimo DOE v. MCHENRY, 1:25-cv-00286, (D.D.C.), no qual o juiz federal Royce C. Lamberth concedeu uma Temporary Restraining Order (um tipo análogo de tutela provisória) suspendendo os efeitos jurídicos da Medida Provisória (Executive Order) de n. 14168 do Presidente Donald Trump que previa a transferência compulsória de presas transgênero a presídios masculinos, citando violações à 8ª Emenda da Constituição dos EUA, que proíbe punições cruéis e heterodoxas.
[9] HC n. 861.817/SC, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, julgado em 6/2/2024, DJe de 15/2/2024.
[10] STF – ADI: 4275 DF – DISTRITO FEDERAL 0005730-88.2009.1.00.0000, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 01/03/2018, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-045 07-03-2019
[11] Na dicção do Ministro Celso de Mello, o direito à busca da felicidade “[d]ecorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o princípio da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais” (ADI 4275, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 01/03/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-045 DIVULG 06–03–2019 PUBLIC 07–03–2019)
[12] Decisão de teor semelhante, tratando de direito de adolescente transgênero a cumprir medida socioeducativa em estabelecimento educacional destinada ao gênero que melhor a contemple, foi tomada pelo Ministro Ribeiro Dantas, em caráter liminar, para conceder o writ determinando a transferência imediata (AgRg no HC n. 983.241, Ministro Ribeiro Dantas, DJEN de 05/03/2025.)
[13] A interpretação do § 1º do art. 7º da Resolução 366 do CNJ deve ser extensiva e axiológica a fim de congregar o direito à mudança da vontade da pessoa trans por permanência em unidades prisionais distintas ou alas/celas específicas, haja em vista que o próprio texto da resolução não disciplina a quantidade de pedidos de transferências que podem ser requeridas pela pessoa apenada. Como leciona Hans Kelsen no contexto da Teoria Pura do Direito, aquilo que não é juridicamente proibido pela norma geral negativa ou compelido pela regulação positiva, é juridicamente permitido.
[14] “Nesse sentido, o gênero não é de modo algum uma identidade estável nem lócus de agência do qual procederiam diferentes atos; ele é, pelo contrário, uma identidade constituída de forma tênue no tempo – uma identidade instituída por meio de uma repetição estilizada de atos. Além disso, o gênero, ao ser instituído pela estilização do corpo, deve ser entendido como a maneira cotidiana por meio da qual gestos corporais, movimentos e encenações de todos os tipos constituem a ilusão de um “eu” generificado permanente. Essa formulação desloca o conceito de gênero para além do domínio de um modelo substancial de identidade para um modelo que exige uma concepção de temporalidade social constituída. Significativamente, se o gênero é instituído por atos internamente descontínuos, o aparecimento da substância é precisamente isso: uma identidade construída, uma realização performativa na qual a plateia social cotidiana, incluindo os próprios atores, vem a acreditar, além de performar como uma crença. Se o fundamento da identidade de gênero é a repetição estilizada de atos no tempo, e não uma identidade aparentemente homogênea, existem possibilidades de transformar o gênero na relação arbitrária entre esses atos, nas várias formas possíveis de repetição e na ruptura ou repetição subversiva desse estilo.” (BUTLER, Judith. Os atos performativos e a constituição do gênero: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista. (Caderno de leituras, n. 78). Disponível em: https://chaodafeira.com/wp-content/uploads/2018/06/caderno_de_leituras_n.78-final.pdf.)
[15] Cito a sentença na queixa constitucional 1 BvR 2019/16 do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, traduzida livremente pela Dra. Karina Nunes Fritz: “Variações no desenvolvimento sexual não são doença, segundo o estudo. Não se poderia cogitar de sua “cura”. Nenhuma intervenção médica ou psicológica mudaria o estado de indeterminação per se. O trato com pessoas com variações no desenvolvimento sexual seria, em regra, um problema sócio-político e precisaria ser pensado num contexto social mais amplo (Arbeitsgemeinschaft der Wissenschaftlichen Medizinischen Fachgesellschaften e.V. – AWMF, S2k-Leitlinie Register Nr. 174/001, Stand: 07/2016, Varianten der Geschlechtsentwicklung, p. 4). Nas ciências médicas e psicossociais há vasta concordância de que um gênero não se deixa determinar ou sintetizar apenas por caracteres genético-anatômicos e/ou cromossômicos, mas é também determinado por fatores sociais e físicos (por exemplo: Bundesärztekammer, a.a.O., p. 5, 7; Pschyrembel, Klinisches Wörterbuch, 266 ed., 2014, palavra-chave: gênero; RichterAppelt, in: Irrsinnig weiblich – Psychische Krisen im Frauenleben, 2016, p. 107, 116).” (destaquei)
[16] “A importância da realidade no processo de concretização da norma constitucional bem reflete a impossibilidade de a Constituição ser vista numa dimensão estática, indiferente ao entorno sociopolítico do momento de sua aplicação: ela interage com a realidade e é diretamente influenciada por seus intérpretes, que, a partir de antigos significantes (textos), encontram significados (normas) atuais e revigorados.” (GARCIA, Emerson. Conflito entre normas constitucionais: esboço de uma teoria geral, 2ª edição. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2015. E-book. p. 35.)
[17] “A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos46 e a busca ao Direito à Felicidade.” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional – 40ª Edição 2024. 40. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2024. E-book. p. 17.)
[*] Graduando em Direito na Escola de Direito do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa em Brasília. Foi integrante da Clínica de Direitos Humanos do IDP. É membro da Liga LGBT do IDP e fez parte da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). É membro ouvinte da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/DF (2025-2027). É integrante do Grupo de Pesquisa sobre Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da EDAP/IDP e do (R)existir – Núcleo LGBT+ da Universidade de Brasília (UnB).

