Por Maicon Melito de Souza [*]
Acho que não é novidade para ninguém que o debate jurídico parece estar popular na sociedade brasileira, em seus diversos segmentos. Existem várias hipóteses para esse fenômeno, desde a tradição bacharelesca e a enorme quantidade de cursos jurídicos no Brasil até o crescimento da seleta audiência da TV Justiça.
Seja como for, de algum modo, essas discussões mais ou menos críticas/acríticas da dogmática e da práxis podem ser processos dialéticos de um certo direito achado na rua — ou, por vezes, achado no boteco. Este — uma espécie de direito alternativo… ao avesso… — não deixa de ser parte do aparente pluralismo jurídico que há no país.
Como talvez diriam aquelas “trends” de moças empoderadas no Instagram, “este texto [vídeo] não é sobre teorias críticas do direito”, ao menos em parte. Porém, sei que não é somente como o meme filosófico da “rua sem saída” e da “reposta gostosa” que vivem os botecos.
Ainda que não seja por um materialismo histórico e dialético — depois de algumas doses de Jamel, Velho Barreiro, Corote e 51 —, os movimentos sociais dos frequentadores de bar — digo mais sobre atos de socialização do que de ações coletivas coordenadas para mudanças — aparentam ser indícios não somente de embriaguez, mas também de uma certa ressignificação sincrética do direito.
Sem dolo de fazer chicana com coisa séria, embora ciente do risco de ser tipificado sob culpa consciente, apresento-lhes evidência ilustrativa do supramencionado.
Algum tempo atrás, segurando o blazer no antebraço e com a bolsa pendurada no ombro, eu caminhava apressadamente para ir participar de um evento sobre o sistema financeiro nacional. A correria, mais do cotidiano intenso do que daquela curta caminhada à tarde, deixou-me cansado e com sede.
No caminho, encontrei um boteco honesto, que supostamente meu pai frequentava — difícil mesmo era supor um boteco que meu pai não tivesse frequentado —, entrei e peguei uma guaraná semilimpa e semigelada e aguardei desensofrido o atendimento de dois caras no balcão para que eu enfim fizesse o pagamento (sic).
O boteco era um recinto distinto. Enquanto eu aguardava ser atendido, notei que os botequeiros debatiam diversas matérias de forma efusiva, cada mesa uma espécie de câmara de tribunal, o tribunal do boteco.
Em uma das câmaras — digo mesas —, os jurisconsultos de botequim tratavam de teses acerca da inelegibilidade e do sistema de votação. Votos tão distintos e teóricos-conspiratórios que o acórdão provavelmente seria atacado por embargos de declaração.
Na mesa ao lado, talvez de uma seção diferente, os iminentes tontos — “data maxima vênia” — julgavam a legalidade das alíquotas de espécies tributárias, mais especificamente dos impostos IPVA e IPTU. Também pautaram causa de inconstitucionalidade da tributação da cerveja em consagração ao não confisco, embora neguem ferozmente qualquer ativismo judicial.
De todo modo, foi a mesa dos fundos que me surpreendeu. Era um tipo de órgão especial, com várias(os) cabeças brancas. Entretanto, minha surpresa se deu pela matéria, notadamente de competência absoluta daquele colendo órgão. Tratavam de “business and human rights”, ou direitos humanos e empresas, sob um viés transnacional.
Perplexo, pensei comigo:
— Rapaz… o buteco venceu. Business and human rights?!
Embora os termos que eu havia escutado eram “business” e “direitos humanos”, eu logo os associei à matéria. Oras! se até a doutrina diverge quanto ao tema, o que se dirá da jurisprudência de boteco. Era tão inusitado que cheguei a supor se algum membro daquele colegiado era pai de uma virtuosa pesquisadora, e com “animus jocandi”, se alguns deles eram pesquisadores com técnicas pouco convencionais.
Em síntese, porque a discussão era por meio da língua vernácula daquela jurisdição — possivelmente em homenagem ao princípio da oralidade —, discutiam, em tese, a aplicabilidade de um instrumento internacional sobre direitos humanos e empresas transnacionais. Foi quando um dos doutos julgadores, mais de fogo e arrastando os fonemas, bradou:
— Meu filho doutô, um cara ativo, é quem sabe disso… Oh, olha ele ali!
Era meu Pai. Como um insigne vogal, fui em direção a suas excelências, cumprimentando-os com a praxe de estirpe. Invoquei os princípios gerais do direito e manifestei ao meu Excelentíssimo Genitor:
— (…) depende…
Ele, no exercício da presidência da sessão — talvez reconhecendo de ofício causa de impedimento ou de suspeição, divergindo da ementa do meu voto, e percebendo que minhas vestimentas não ornavam com a ocasião —, despachou:
— Hahaha… Vá! seu traje não é compatível com a dignidade do foro.
[*] Advogado e pesquisador. Mestrando em direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo — FDRP/USP. Especialização em direito tributário pela FDRP/USP. Bacharel em direito pela Faculdade de Direito de Franca — FDF.

