Por Ana Beatriz Rodrigues Soares
Eu aposto que você já comeu um hambúrguer no Hungry Jack’s. Você pode pensar “Hungry Jack’s? Eu nunca ouvi falar nesse restaurante!”. Isso porque aqui no Brasil (e em quase todo o mundo) este restaurante se chama Burger King.
Na Austrália[1], todavia, o estabelecimento é conhecido por Hungry Jack’s pois, quando a franquia chegou no país em 1971, já havia um restaurante local chamado Burger King, o que impediu o registro da marca original da rede de fast food.
Somente 20 anos depois, quando a marca do restaurante local expirou, a sede internacional do Burger King conseguiu abrir franquias com este nome e, posteriormente, conquistou os direitos da marca por meio de um processo judicial em 2001.
Porém, era tarde demais: após mais de 30 anos de luta pelo registro da marca, a substituição para o nome original seria uma autossabotagem para o marketing. O restaurante Hungry Jack’s já estava consolidado e permanece sendo o nome popular entre os australianos.
Uma história como essa dificilmente aconteceria no Brasil, haja vista que o país é signatário da Convenção da União de Paris para Proteção da Propriedade Industrial[2], um acordo internacional o qual visa à proteção especial a marcas notoriamente conhecidas.
São assim classificadas as marcas que possuem amplo reconhecimento em seu ramo de atividade, independente de depósito ou registro prévio no país[3]. Dessa forma, mesmo que ainda não estivesse registrado no Brasil, o Burger King poderia ser classificado como uma marca notoriamente conhecida, em razão da sua popularidade mundial enquanto rede de fast food.
Por isso, devido à proteção especial prevista tanto pela Convenção da União de Paris, quanto pela Lei de Propriedade Industrial[4], o INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) poderia indeferir de ofício o pedido de registro de uma marca local que tentasse reproduzir a marca notoriamente conhecida, nos termos do art. 126,§ 2º, da Lei nº 9.279/96.
Ou seja, em um cenário hipotético no qual não houvesse Burger King no Brasil, seria pouco provável o registro deste nome no ramo de lanchonetes no país, considerando a notoriedade internacional do fast food e o consequente amparo na proteção especial da legislação.
Em outro cenário hipotético, imagine agora que não exista Burger King no mundo inteiro, exceto por uma pacata lanchonete no interior do Goiás, a qual detém o devido registro da marca perante o INPI. De repente, surge uma lanchonete também chamada “Burger King” em São Paulo, que se populariza e começa a abrir franquias por todo o país, mesmo sem estar devidamente registrada. Quem teria os direitos exclusivos sobre a marca?
Para a legislação brasileira, a resposta é simples: o proprietário será quem registrou a marca primeiro. Isto é, ainda que a lanchonete de São Paulo tenha crescido e se desenvolvido mais, o registro da marca goiana ocorreu antes e, portanto, prevalece.
Observe que o registro perante o INPI não só garante a exclusividade sobre os direitos da marca, como também legitima o proprietário a ajuizar uma ação de indenização por uso indevido de marca, ainda que não haja comprovação do prejuízo (REsp n. 1.327.773/MG)[5].
Ademais, o proprietário também fica resguardado no âmbito do Direito Penal, uma vez que a reprodução de uma marca sem autorização do titular configura crime, cuja pena é de detenção, de três meses a um ano, ou multa, conforme dita o art. 189, I, da Lei nº 9.279/96.
Mas, novamente, estas são as previsões legais no Brasil. Países diferentes têm formas diferentes de regulamentar o registro de marca e, por isso, os Estados Unidos resolveriam (e resolveram) o caso hipotético de forma diferente.
Veja, a hipótese ilustrada acima foi baseada em uma história real[6] que ocorreu entre uma pequena lanchonete em Mattoon, interior do estado de Illinois, chamada Burger King e a famosa rede de fast food homônima originária da Flórida, a qual começava a se expandir pelos Estados Unidos no final da década de 1950.
De antemão, note que há uma expressiva diferença entre a legislação brasileira e a estadunidense quanto à territorialidade: enquanto, no Brasil, o registro de marca é válido em todo território nacional; nos Estados Unidos, o registro é feito por estado.
No caso real, o Burger King da pequena cidade de Mattoon realizou o registro em 1952, o que, em tese, impediria novos registros dessa marca no estado. Todavia, em 1961, a rede de fast food abriu o primeiro restaurante em Illinois e, em seis anos, já possuía ao menos 50 estabelecimentos no estado.
É evidente que os donos da lanchonete local estavam insatisfeitos, afinal, foram os primeiros a garantir os direitos exclusivos da marca no estado de Illinois. Assim, adentraram à seara judicial em 1967, dando início ao processo que ficou conhecido por “Burger King of Florida, Inc. v. Gene Hoots and Betty Hoots d/b/a Burger King”.
Na decisão judicial, entendeu-se que, apesar do registro antecipado da lanchonete de Mattoon, a rede Burger King já alcançava um nível nacional, logo, teria o direito à marca também em Illinois.
Felizmente, o registro do Burger King de Mattoon não foi completamente infrutífero. Ficou determinado judicialmente que a rede de fast food deveria manter distância do restaurante local em um raio de, no mínimo, 32 quilômetros.
Nota-se, portanto, um contraste legal. Nos Estados Unidos, a análise da relevância dos restaurantes foi levada em consideração, de tal modo que esta relevância é uma nítida consequência da descentralização do registro de marca por estados. No Brasil, como a marca tem abrangência nacional, um desfecho como este não seria possível, ou seja, apenas a anterioridade do registro seria suficiente para garantir a propriedade industrial.
A história da marca Burger King é impressionante e nos incentiva a estudar mais sobre propriedade industrial em uma perspectiva comparada. Ainda hoje não há uma franquia da rede de fast food em Mattoon. Assim como não existe nenhum restaurante com esse nome na Austrália.
Faça o teste e pesquise no Google Maps. O único estabelecimento localizado em Mattoon será o “The Burger King”, uma lanchonete em estilo retrô do qual em nada se assemelha ao “BK” que estamos acostumados. Já na Austrália, após não encontrar nenhum Burger King, pesquise novamente por “Hungry Jack’s” e se surpreenda com os resultados.
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[1] Why it’s hard to find a Burger King in Australia. CBC Radio, 20 de fev. de 2020. Disponível em: https://www.cbc.ca/radio/undertheinfluence/why-it-s-hard-to-find-a-burger-king-in-australia-1.5469678#:~:text=When%20Burger%20King%20got%20to,the%20name%20Hungry%20Jack%27s%20instead. Acesso em: 27 de set. de 2023.
[2] CONVENÇÃO da União de Paris para Proteção da Propriedade Industrial. 8 de abr. de 1975. Disponível em: https://www.gov.br/inpi/pt-br/servicos/marcas/arquivos/legislacao/CUP.pdf. Acesso em: 27 de set. de 2023.
[3] O que é marca. Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Manual de marcas, 3ª Edição, out/2019. Disponível em: http://manualdemarcas.inpi.gov.br/projects/manual/wiki/02_O_que_%C3%A9_marca. Acesso em: 27 de set. de 2023.
[4] BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial.Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1996.
[5] “O dano moral por uso indevido da marca é aferível in re ipsa, ou seja, sua configuração decorre da mera comprovação da prática de conduta ilícita, revelando-se despicienda a demonstração de prejuízos concretos ou a comprovação probatória do efetivo abalo moral” (REsp n. 1.327.773/MG, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 28/11/2017, DJe 15/2/2018)
[6] JERMAINE, J. The burger king and queen of Mattoon. Illinois Times, Illinois, 20 de nov. de 2003. Disponível em: https://www.illinoistimes.com/news-opinion/the-burger-king-and-queen-of-mattoon-11449463. Acesso em: 03 de out. de 2023.