Essa Casa acredita que é legítimo que países democráticos que enfrentaram graves crises políticas autoritárias no passado incentivem a dissolução de times que receberam significativo auxílio, endosso ou promoção direta à época do regime

(Exemplo: Real Madrid, Benfica, Flamengo)

Escrito por Gisela Viana Monteiro [*]

Nesta série, apresentamos debates no modelo do parlamento britânico, dos quais participamos na Hermenêutica – Sociedade de Debates da UnB. Nesse formato, há duas duplas de Governo, que devem apresentar argumentos para apoiar a moção (dissolver os determinados times de futebol), e duas duplas de Oposição, que argumentam em sentido contrário. Aqui, apresenta-se as teses e os argumentos de cada lado.

A seguir, será feita a análise dos principais argumentos utilizados pelos Governos, os quais remontam à legitimidade, à justiça e à eficácia da ação, além do atual cenário de crise da democracia. Somados à Oposição, a qual ratifica a ressignificação e a independência de ação e de comportamento dessas comunidades. Ao final, conclui-se com uma breve síntese e algumas considerações sobre os rumos da discussão proposta.

Primeiramente, o Governo constrói o cenário baseado na legitimidade da ação, o quanto são compreensíveis e justificáveis os atos do passado no contexto em que aconteceram, ressaltando a lembrança da dor e a história do autoritarismo relacionados aos referidos times, os quais tornaram-se símbolos desses governos. Em um contexto democrático, em que o povo possui o poder de participação e de decisão quanto às instituições, esse povo também tem o direito de perseguir os símbolos do passado de opressão.

Essa legitimação diferencia-se da justiça e da eficácia, embora também siga esses critérios. É justo, pois os incentivos dados pelos regimes aos clubes fizeram com que eles se tornassem muito maiores dentro daquelas ligas, assim como as torcidas, mediante dinheiro investido, o que implica a acumulação de riquezas em relação aos demais. Portanto, é injusto que esses investimentos passados, alimentados pelos governos antidemocráticos continuem se perpetuando e garantindo vantagens. É esperado que o futebol, como expressão popular democrática, seja pautado por uma justiça histórica, com as mesmas condições de competitividade, o que exige, dessa forma, reparação histórica e simbólica, em respeito não somente às pessoas atingidas pelo regime, mas ao fair play entre as associações.

Ainda sobre a argumentação do Governo, a discussão é atualizada e engajada para o atual status quo de abalos à democracia e da ascensão do conservadorismo, o qual também se apropria das torcidas para realização de campanhas políticas, em destaque para a América Latina, caracterizada tanto por um histórico de regimes autoritários quanto pela tradição esportiva no futebol. Esses fatos relacionam-se, visto o objetivo de tornar as massas manipuláveis e alienadas, em acréscimo ao histórico baixo índice de escolaridade nesses países. Assim, os times eram, e ainda são, utilizados como mecanismos para conquistar o carisma do público e símbolos de autopromoção pelos políticos e governos desse tipo.

Esses países, com democracias instáveis, dentro de um contexto de neoconservadorismo, correm riscos pelos fatores já mencionados, o que dificulta a percepção da importância da defesa da democracia e a garantia de que esses regimes não retornem. No Brasil, reforça-se a necessidade de um esforço para que o cenário pós-Constituição democrática seja solidificado e mantido, em contraste com o surgimento dessas forças conservadoras e reacionárias.

Ainda no contexto de alienação das massas, é possível mencionar que as classes médias e baixas formam o maior número de eleitores, assim como o maior número de torcedores de futebol. Nesse contexto, possuem os jogadores como inspiração e influência, mediante o sentimento de identificação, o qual pode ter o uso político mencionado, como demonstração de força e de popularidade por essas lideranças, mediante a política de “Pão e Circo”. Assim, percebe-se que o impacto dessa mensagem é muito mais perigoso, haja vista o contato com esse discurso e a busca de justificativas para ele, em função do sentimentalismo dos torcedores pelo time.

Contudo, também é válido observar a ressignificação do futebol a partir do caráter político de luta, resistência e manifestação, sendo uma das mais expressivas formas de engajamento sócio-político. O crescimento das causas favoráveis à
democracia, à diversidade, à frente antifascista são pautas de diversos times de futebol. Assim, abre espaço para a prioridade sobre a politização dos torcedores, por meio de alianças políticas progressistas, para a consolidação do futebol como ambiente de discussão e participação democrática popular, com uma linguagem acessível, coerente e sentimental para as populações marginalizadas que acompanhem esse esporte, sendo esse o seu principal papel político-social.

Nesse sentido, é necessário perceber que existem grupos favoráveis à democracia e grupos omissos, os quais não querem perder seus privilégios e assim, posicionam-se favoráveis a quem cumprir seus interesses. Desse modo, é urgente que esses times sejam dissolvidos com fim último de consolidação da democracia e mitigação dos discursos autoritários. Por fim, deve-se ter a garantia de que não haverá utilização do futebol com fim ao favorecimento de interesses antidemocráticos.

Em contraste, a Oposição prioriza a ressignificação desses times, não mais associando-os ao regime como um todo. Na verdade, o sentimento de proximidade é enxergado com otimismo, compatível com a democracia, em que já há um estímulo a um ambiente de lazer e fraternidade. Dessa forma, torna-se ilegítimo sacrificar o sentimento e a atual simbologia e mensagem passada, as quais não podem ser ignoradas.

Ademais, não se pode ignorar os backlashes que vêm do sucesso desses times. Sendo assim, é muito mais injusto sacrificar as oportunidades trazidas por eles para a sociedade, como a empregabilidade gerada em ambientes periféricos, e a consequente melhora da qualidade de vida dessas pessoas, o que compõe o novo significado em definição. Essa distinta relação deu-se ao longo do tempo, o que impede a dissolução baseada somente em acontecimentos passados, desconsiderando o atual contexto, a qual configura, assim, em ação não apenas injusta, mas ilegítima e não democrática, contrária à obrigação de zelar pelo sistema e pelas instituições que o compõe.

Também cabe destrinchar a relação construída entre esses clubes e a sociedade, a qual possui intrínsecas a proximidade e a familiaridade, associadas à felicidade, ao prazer e ao bem-estar dos torcedores por meio dos laços construídos. Soma-se ainda a rentabilidade, sob o ponto de vista pragmático, a partir da empregabilidade, benefícios e oportunidades criadas em comunidades, como os Centro de Treinamentos (CTs), na qual jovens garantem um meio de sobrevivência e aprendizado, além de sustentar uma grande equipe de profissionais para a manutenção dessa estrutura, os quais ficariam sem perspectivas caso houvesse a dissolução. Por isso, tal ação caracteriza-se como oposta ao princípio democrático de bem-estar e harmonia social, definindo, por fim, o novo significado alcançado por esses times após o intervalo de tempo desde as redemocratizações.

Sob a análise da independência do uso político ou comportamento específico, argumenta-se, ainda, sobre a possibilidade dessa ocorrência com qualquer time ou qualquer outro veículo de mídia ou esportivo, o que exclui o caso da abordagem política por não atingir um alvo específico. Nesse sentido, a legitimação precisa de um direcionamento, o que não ocorre, pois os times mencionados existiam antes e depois dos regimes antidemocráticos, de forma que não são associados a eles de forma relevante, como mencionado.

Apoia-se sobre uma Justiça de Transição, sendo necessário, para isso, primeiramente, reforçar a democracia, o que confronta a moção sobre a dissolução de comunidades baseadas na afetividade e na comunhão, e sobre o desfavorecimento político dessas coletividades já precarizadas nesse sentido. Continuamente, a Justiça de Transição tem a função de retaliar a ditadura, por mecanismos institucionais, legislativos, políticas públicas e de gestão, além do controle de constitucionalidade e eleitoral.

Em acréscimo, o alvo errado, uma vez que é intercambiável, reforça a ilegitimidade do processo. Se assim fosse feito, haja vista a mudança de contexto histórico, político e jurídico, seria punida, especialmente, a torcida, ao criar uma associação política negativa ao regime, quando, na realidade, não há ligação e há outros meios eficazes, localizados e legitimados, com alvos mais diretamente relacionados ao regime e não indiretamente, depois de um longo período de tempo.

Sob esse raciocínio, também revela-se a inexistência de um saudosismo, frente às atuais vitórias, no período democrático. No contrário, caso haja a dissolução, os torcedores podem se ancorar nas antigas vitórias e então associá-las aos regimes autoritários da época, visto que o sistema dito como democrático propõe-se a destruir sua cultura e a sua comunidade fraterna. Mesmo se realizada logo após, causaria a destruição de uma torcida, uma comunidade com base no afeto, parte mais essencial do futebol, a qual não se associa a nenhum regime específico, mesmo que seja um ambiente político, uma vez que essa afetividade torna-se muito mais relevante.

Por último, reforça-se que o significado transformou-se e, com isso, a associação feita aos referidos times a memórias mais recentes, principalmente após uma Justiça de Transição, o que serve de base para a construção de um legado democrático com o tempo. Dessa forma, a legitimidade depende da retaliação desses clubes com o tempo e da especificidade de ação, a qual é realizada pela Justiça de Transição, mediante a localização dos alvos específicos e mais relevantes no contexto das ditaduras, processo necessário para a consolidação da democracia sem destruir comunidades nem suscitar a injustiça nem o saudosismo aos regimes.

Em síntese, o debate gira em torno da legitimidade (ou não) e da justiça (ou injustiça) da ação, com objetivo final de garantir a democracia, mencionando diferentes meios e implicações para tal. Todas as duplas discutiram a simbologia e a significação antiga e atual desses times de futebol, bem como seus diferentes impactos para a sociedade, seja sob o âmbito político, econômico e até mesmo socioafetivo. Tudo isso sob diferentes análises dos princípios asseguradores de um regime democrático, contrastando ou aproximando acontecimentos do passado com o presente status quo, levantando críticas e perspectivas para a sua manutenção.

[*] Graduanda do 3º período de Direito pela Universidade de Brasília e integrante do Módulos na Sociedade de Debates Hermenêutica, grande interessada em debates políticos e sociais que permeiam a grande área do Direito.

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