O impacto do caso Shelby County v. Holder no sistema eleitoral estadunidense

por Submissões Independentes

*Por Anna Irene Nunes Mendes de Paula [1]

O caso Shelby Couter vs Holder foi uma disputa que se circundou ao redor do condado de Shelby, no estado do Alabama, e o procurador-geral dos Estados Unidos na época (ano de 2013), Eric Holder. A matéria do caso tinha relação com as leis que regiam o voto eleitoral e suas disposições em estados específicos da federação (os chamados Voting Rights Act) e uma possível contraposição com o artigo 4º e a Décima Emenda da Constituição Americana.

Para entendermos melhor o conflito, é necessário compreender o pensamento por trás do que rege a Lei sobre o Direito do Voto. Essa era diretamente relacionada e derivada das chamadas “emendas de reconstrução”, das quais faziam parte a 13ª, 14ª e 15ª emenda. Essas emendas tratam dos direitos da população negra americana, logo, preocupavam-se com a realidade social dessa população. A 13ª emenda foi a que aboliu a escravidão nos EUA, a 14ª traz a noção de igualdade entre os cidadãos (sem distinção de cor, raça, classe e outros elementos que podem ser utilizados como disparidades) e a 15ª garantiu o direito ao voto a população negra, além de atribuir poderes ao congresso para que tal medida fosse observada e posta em prática.

Nota-se então, que o Voting Rights Act se relacionava de forma mais intrínseca com a 15ª emenda, ao ser uma medida de regulamentação dos dispositivos eleitorais 2 (seção 5) e ao estipular de forma pré-determinada Estados 3 a qual estariam abaixo dessa legislação (seção 4). Também foi estipulado que haveria uma revisão a cada 5 anos sobre o dispositivo da lei e se essa ainda seria necessária.  Tais estados notoriamente fazem parte do Sul do país, região conhecida por uma maior herança escravagista em relação a estados do Norte e que trazem uma cultura de discriminação mais acentuada contra a população negra. Importante destacar que os estabelecidos na seção 4 não foram escolhidos de forma arbitrária, e sim depois de uma avaliação a respeito da própria atuação desses estados na matéria da legislação. Dessa forma, as revisões quinquenais decidiram necessárias as restrições e a mantiveram por 4 décadas, sem também alterar o disposto na seção 4.

Mesmo assim, havia uma possibilidade de um estado ser “excluído da lista”, através do mecanismo de bail out, que trazia a prerrogativa dos distritos eleitorais que comprovassem ter abolido leis eleitorais discriminatórias por 10 anos seguidos não seriam mais regidos pela Lei sobre o Direito do Voto. Nenhum dos estados elencados conseguiu ser reavaliados positivamente.

A defesa do condado de Shelby se baseou na premissa de que, ao reaprovar a legislação do Voting Rights Act continuamente durante o período de revisão, a Suprema Corte estaria ignorando os avanços do tempo e os seus frutos no presente. Para eles, a situação discriminatória entre a população negra e branca já havia sido mitigada e até mesmo superada (a se comprovar por uma maior presença de parlamentares negro e uma maior presença da população negra nas eleições nos estados do sul) e, portanto, não mais se justificaria os dispositivos da seção 5 e 4. Outro argumento utilizado foi, ao se manter uma legislação que atuava diretamente na promulgação de leis estaduais e as suas subsequentes negativas e revogações pelo poder federativo se se constatassem elementos discriminatórios nessas leis; o artigo 4º e a 10ª emenda estariam sendo violadas diretamente, visto que essas estipulavam a independência dos Estados sobre sua própria legislação e a reserva de poder do Estado. Assim, para o condado, tal legislação seria inconstitucional.

Os argumentos dissidentes para tal reinvindicação vieram de Ruth Bader Ginsburg, Breyer, Kagan e Sotomayor. RBG apresentou diversas justificativas pelo qual a legislação ainda era válida e relevante no ordenamento americano e o porquê deveria ser mantida da forma como foi criada. Alguns dos argumentos centraram-se no fato da proposição ter sido apresentada de forma abstrata/geral pelo condado de Shelby e não a partir de uma situação específica que ocasionaria o questionamento (o que entrava em desacordo com o costume das situações recebidas para serem julgadas pela suprema corte), assim, não haveria justificativa para a reinvindicação. Além disso, Ruth também trouxe à tona uma avaliação histórica e cultural desses condados e seus estados, evidenciando a clara disparidade entre a realidade de negros e brancos e como isso claramente se mostrava na questão eleitoral, visto que constantemente o governo federal negou a aprovação de leis discriminatórias vinda desses estados (sendo o Alabama um dos estados que mais apresentavam projetos considerados como inadequados para com a 14ª e 15ª emenda).

Também foi destacado o fato da reavaliação constante da legislação restritiva e suas aprovações demonstram justamente a sua aplicabilidade, visto que o dever do congresso seria o de apenas comprovar que ainda haveria pressupostos para se manter a vigência de tais medidas, o que foi atestado nesses momentos ao se analisar o histórico e a realidade dos estados. Logo, a manutenção das medidas não foi feita de forma injustificada visto que, ao se olhar de maneira mais profunda para a realidade social dos condados, por mais que se verificasse uma maior adesão e participação da população afrodescendente no processo eleitoral, é possível notar outras medidas paralelas existentes utilizadas para se minar uma emancipação completa desse povo e consequentemente, o seu acesso irrestrito ao poder político (sendo essas as barreiras da segunda geração, mais sutis e que também afetam outras áreas).

Outras leis que traziam separações de autorização de condutas entre diferentes estados foram apresentadas como exemplos de legislações que também traziam estipulações específicas para diferentes estados, o que quebraria a noção que a Lei sobre Direito ao Voto seria tão inconstitucional e arbitrária, como foi apresentado pelo condado de Shelby. O condado de Shelby, em si, também não teria argumentos para apresentar a queixa em relação a legislação restritiva justamente pelo estado do Alabama ser recordista em projetos de leis discriminatórios negados para a promulgação, o que atesta que os desafios raciais não estão em todo superados.

A decisão final da Suprema Corte, abarcada pela maioria formada por John Roberts, Scalia, Thomas, Alito e Kennedy foi a de inconstitucionalidade da seção 4 da Voting Rights Act e sua subsequente revogação, trazendo a vitória do condado de Shelby.

Dessa forma, a seção 5, por mais que não tenha sido alterada, ficou sem embasamento visto que era necessário determinar os estados a qual ela se aplicaria. Assim, o impacto dessa decisão se apresentou quase de forma instantânea na legislação dos estados centrais contemplados anteriormente.

Foram verificadas mudanças na legislação eleitoral e revogação de medidas que estimulavam/facilitavam o voto em 15 estados desde 2013. Entre eles, foi verificado a exclusão do “Souls to the poll”, medida que estimulava eleições após os cultos de domingo, trazendo uma maior porcentagem maior de participação negra visto que esses se concentravam de maneira exponencial nas igrejas durante o domingo; “same day voter registration”, registro online, o pré-registro online de pessoas menores de 18 anos para o voto, entre outras medidas que estimulariam o voto e facilitariam o acesso as eleições, desburocratizando processos que poderiam ser considerados como desestimulantes para cidadãos (principalmente aqueles que teriam dificuldades de mobilidade para ir votar). Também foram noticiados o fechamento de estações de votos, o que diminuiria as opções para os votantes.

Desde a decisão da suprema corte e entendendo os impactos de tal medida, surgiram tentativas de parlamentares de reviver os parâmetros das seções 4 e 5 ou algo alternativo que tivesse conexão com as determinações originais. Dentre essas tentativas, tivemos o “The Voting Amendement act of 2014”, o “The Voting Amendement act of 2015”, o “The Voting Amendement act of 2017” e o “The Voting Amendement act of 2019”. Todas essas proposições, por mais que também se alinhassem com reinvindicações populares (notoriamente dos setores de esquerda) não possuíram força legislativa suficiente para avançarem e serem aprovadas.

Assim, nota-se um esforço para que propostas legislativas que apresentem algum nível de restrição ou fiscalização as atuações dos estados em matéria eleitoral não tomem força a ponto de serem promulgadas. Isso se expõe de forma mais explicita ao notarmos esforços em mudar os números em diversos estados nas eleições de 2020, através de governos republicanos passando leis que deteriam a facilidade ao acesso ao voto. Logo, a sem a proteção das disposições conjuntas do Voting Rights Act, tal setor político se encontra fragilizado.

As eleições de 2020 entre Donald Trump e Joe Biden destacaram-se principalmente pelo seu processo eleitoral. Considerado de uma maneira geral como um processo arcaico e incongruente com os níveis de tecnologia desenvolvidos pelos Estados Unidos, os períodos de eleição sempre são centro de muita discussão, principalmente em relação à legitimidade dos números finais apurados (devido a contagem manual, suscetível a erros).

Dessa forma, através das discussões apresentadas, evidencia-se que as preocupações de Ruth Bader Ginsburg e a própria justificativa por trás da criação das seções 4 e 5 da Lei sobre o Direito de Voto se mostraram mais do que válidas ao observarmos os acontecimentos posteriores e a mudança de postura por parte de certos estados, principalmente aqueles liderados por partidos republicanos.

O voto é talvez o artifício mais importante numa sociedade democrática e talvez ainda mais relevante no contexto político dos Estados Unidos, que contém duas fases separadas de votação (voto direto e indireto), diretamente atrelado ao colégio eleitoral e aos setores políticos dominantes. Assim, evidencia-se a necessidade de uma regulamentação firme e a assertiva em cima desses processos se presenteia como atual e relevante ao pensarmos que os mecanismos de opressão são os mesmos contra as camadas mais vulneráveis, porém, apresentados de maneira diferentes (relacionados com a realidade atual) e por isso, devem ser combatidos.

 

REFERÊNCIAS

[1] Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Ex-presidente e membra do Conselho de
Representantes. Coordenadora-discente do projeto de extensão HABEAS LIBER, sediado na
Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Foi monitora de Teoria Geral do Processo 2,
ministrada pelo docente Vallisney de Souza Oliveira na Faculdade de Direito da Universidade de
Brasília. Membra do Centro de Estudos Constitucionais Comparados (CEEC/UnB).

Robalinho, Ana Beatriz. Shelby County v. Holder, 2013. O direito ao voto igualitário no

sistema norte-americano. Acesso em 03/03/2022. Disponível em:

file:///C:/Users/55619/Downloads/Shelby%20County%20v.%20Holder,%202013.pdf.

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