Por Ana Beatriz Santiago de Souza*
Com o início dos julgamentos das ações penais que apuram os crimes cometidos em Brasília em 08 de janeiro de 2023, algumas questões penais e processuais penais têm causado certo alvoroço entre advogados, réus e espectadores do desenrolar da responsabilização pelos atos que chocaram o Brasil.
Uma das principais questões e que merece especial atenção, visto que trata do ponto inicial da persecução penal judicial, é relativa à individualização das condutas, ou à sua falta, nas denúncias apresentadas pelo Ministério Público nas mais de 232 ações penais que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal. O debate surge após acusações das defesas de que as iniciais acusatórias apresentadas pelo Ministério Público apresentariam similaridades assustadoras, e de que, naquelas em que há mais de um réu, faltaria a individualização dos fatos e da imputação ao longo da narrativa ministerial.
No entanto, apesar de válidas as insurgências contra a atuação do Ministério Público, pois aqueles que minimamente dominam a prática penal conhecem bem as lacunas acusatórias validadas pelo judiciário diariamente, no caso em análise há de se ter atenção para um ponto basilar: o próprio tipo penal e seus desencadeamentos na seara do processo penal.
Isso, pois os crimes analisados pelo STF consistem, em sua grande maioria, em crimes multitudinários. É exatamente isso o reconhecido pela Corte quando do julgamento das APs nº 1060,1183 e 1502.
Os crimes multitudinários, nas palavras de Nelson Hungria, são aqueles praticados “por uma multidão em tumulto, espontaneamente organizada no sentido de um comportamento comum contra pessoa ou coisas” [1].
No entanto, a questão de “comportamento comum” é sensível à doutrina. Certos autores entendem pela necessidade de um liame subjetivo entre os integrantes da multidão, com conexões psicológicas entre os indivíduos, os quais, mesmo não orientados necessariamente ao cometimento de um mesmo crime ou até mesmo sem saber inicialmente que crimes serão perpetrados naquele momento, unem-se pelo frenesi da horda e participam dos eventos vindouros. É essa a posição defendida por Bittencourt, o qual destaca que, mesmo sendo a situação traumática para parte da multidão, não há como se negar a existência de um liame subjetivo, uma conexão psicológica entre os atores, necessária ao concurso penal [2].
A posição adotada pelo autor se relaciona diretamente com a teoria monista do Código Penal. A legislação penal brasileira dispõe que todos que engajarem na prática de uma ilicitude respondem pelo seu resultado, mesmo se a autoria direta for incerta, ante a assunção do risco do resultado ilícito. Em outras palavras, fazer parte de uma multidão delinquente é assumir o risco do ilícito penal, de maneira que, caso esse ilícito penal realmente venha a se concretizar, os integrantes do grupo respondem por concurso penal. Isso pode significar a desnecessidade de uma denúncia altamente individualizada, ante o papel fundamental da ação coletiva.
Por outro lado, uma linha doutrinária entende de forma diversa. Rogério Greco defende que a conexão psíquica entre os integrantes da multidão não seria suficiente para se traçar coautoria criminosa, respondendo cada um pelo ilícito e por seus resultados de forma individual [3]. Nesse sentido, a peça inicial da acusação deveria descrever minuciosa e pormenorizadamente a atuação de cada indivíduo da multidão e qual o resultado ilícito que sua ação gerou.
Dessa forma, o que se tem é que a existência ou não do liame subjetivo no crime multitudinário se associa à própria estruturação da denúncia e o preenchimento dos requisitos para seu recebimento, bem como tem implicações diretas na condução da instrução criminal.
Como bem se sabe, o art. 41 do Código de Processo Penal elenca os requisitos para que uma denúncia esteja apta a ensejar a persecução penal. Versa ele:
Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas [4].
Para além do art. 41 do CPP, a jurisprudência destaca a necessidade de uma descrição individualizada da atuação do réu na conduta a ele imputada, sob pena de inépcia da denúncia e consequente extinção da ação penal [5].
No entanto, quando nos deparamos com crimes multitudinários, a realidade é um pouco diferente. Isso, porque, por serem crimes cometidos por multidões, com número de integrantes e prejuízos difíceis de estimar, o que se observa é uma denúncia cujos requisitos de individualização e descrição pormenorizada são superados pela própria natureza do crime, ante a dificuldade que uma exposição minuciosa traria para a aplicação da lei penal [6].
Assim, o entendimento de uma porção doutrinária e o que vem sendo aplicado pelo STF no julgamento das ações penais do 8 de janeiro é pela desnecessidade de uma denúncia que descreva de maneira individualizada a atuação de cada um dos envolvidos nos crimes perpetrados por multidão, sendo necessária somente uma exposição narrativa e demonstrativa dos fatos imputados. Veja trecho do voto do Ministro Alexandre de Moraes quando do recebimento da denúncia contra Davi Alves Torres, réu no INQ nº 4921, relativo aos fatos do 8 de janeiro de 2023:
Em crimes dessa natureza, a individualização detalhada das condutas encontra barreiras intransponíveis pela própria característica coletiva da conduta, não restando dúvidas, contudo, que TODOS contribuem para o resultado, eis que se trata de uma ação conjunta, perpetrada por inúmeros agentes, direcionada ao mesmo fim [7].
Cumpre destacar que esse entendimento não é inovação da Corte, a qual já aplica, há anos, a noção de que as denúncias relativas a crimes multitudinários ou a crimes de autoria coletiva podem imputar genericamente a participação dos investigados. Nesse sentido, é no curso do processo que há a apuração das condutas, as quais devem, na oportunidade do julgamento pela condenação ou não, estarem devidamente delimitadas e individualizadas [8]. No mesmo sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[9].
Sendo assim, doutrina e jurisprudência convergem pela desnecessidade da individualização da conduta na denúncia de crimes multitudinários, sendo na instrução criminal o momento em que se terá tempo e oportunidade para confrontar fatos e provas e atribuir a cada réu sua devida participação [10].
Cabe pontuar que o aceite de uma denúncia geral não é sinônimo do aval para denúncias genéricas, as quais são amplamente rechaçadas pela jurisprudência. Conforme o Ministro Edson Fachin:
Há diferença entre denúncia genérica e geral. Enquanto naquela se aponta fato incerto e imprecisamente descrito, na última há acusação da prática de fato específico atribuído a diversas pessoas, ligadas por circunstâncias comuns, mas sem a indicação minudente da responsabilidade interna e individual dos imputados [11].
Ainda, complementa o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca:
Não se pode confundir a denúncia genérica com a denúncia geral, pois o direito pátrio não admite denúncia genérica, sendo possível, entretanto, nos casos de crimes societários e de autoria coletiva, a denúncia geral, ou seja, aquela que, apesar de não detalhar minudentemente as ações imputadas aos denunciados, demonstra, ainda que de maneira sutil, a ligação entre sua conduta e o fato delitivo [12].
Assim, da análise do recebimento das denúncias relativas ao 8 de janeiro de 2023, apesar das irresignações das defesas, as quais, diga-se, possuem legitimação doutrina, como exposto anteriormente, o que se tem é tão somente o aval para peças acusatórias que, pela própria natureza do crime multitudinário, não podem se dispor a esmiuçar a ilicitude imputada, passando o dever de individualização para a instrução penal.
Ou seja, o STF, ao receber as denúncias gerais, não se exime da individualização das condutas, não cometendo qualquer tipo de autoritarismo ou ilegalidade como alguns ´procuram defender, mas sim posterga a análise da individualização para a instrução criminal, momento em que serão examinados fatos e provas de maneira distinta e específica a cada réu, com o objetivo de um julgamento atento às balizas do processo penal e às garantias constitucionais fundamentais.
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* Graduanda em Direito na Universidade de Brasília. Participante da Equipe de Direito e Processo Penal da Universidade de Brasília.
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Referências
[1] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. II.
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – Parte Geral – Volume I. São Paulo: Saraiva, 7ª Ed. 2002, p. 378-402.
[3] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Vol. I. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011, pgs. 415-450, Capítulo 34, Concurso de pessoas.
[4] BRASIL. Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 13 out. 1941.
[5] HC n. 767.081/SP, relator Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 25/10/2022, DJe de 28/10/2022.
[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – Parte Geral – Volume I. São Paulo: Saraiva, 7ª Ed. 2002, p. 378-402.
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Inquérito Policial nº 4921. Recebimento de denúncia. Relator: ministro Alexandre de Moraes, Sessão Virtual Extraordinária de 3.5.2023 a 8.5.2023, Voto Ministro Relator, pp.14.
[8] Nesse sentido, os julgados HC 73638, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, Julgamento: 30/04/1996, Publicação: 07/06 /1996; HC 75868, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, julgado em 10/02/1998, DJ 06-06-2003; HC 73638, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, julgado em 34/04/1996, DJ 07-06-96; HC 71899, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, julgado em 04 /04/1995, DJ 02-06-95.
[9] Nesse sentido o REsp n. 128.875/RJ, Rel. Min. Anselmo Santiago, Sexta Turma, julgado em 16/12/1997, DJ de 29/6/1998, p. 340; e o RHC n. 74.812/MA, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, relator para acórdão Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 21/11/2017, DJe de 4/12/2017.
[10] BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal – Parte Geral – Volume I. São Paulo: Saraiva, 7ª Ed. 2002, p. 378-402.
[11] HC 118891, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 01/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-209 DIVULG 19-10-2015 PUBLIC 20-10-2015.
[12] RHC 96.738/RS, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 24/04/2018, DJe 07/05/2018.