*Por Beatriz Evelyn de Jesus Silva, Laís Farias Viana e Nicole Braga de Faria
1.INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO
O dia 17 de agosto de 2023 foi marcado pelo assassinato de Maria Bernadete Pacífico, líder quilombola e ialorixá, de 72 anos, que residia no quilombo Pitanga dos Palmares, localizado na Bahia [1]. Além de líder militante e religiosa, mãe Bernadete, como era chamada, também foi secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial em Simões Filho. A vítima, já havia perdido seu filho Fábio Gabriel Pacífico do Santos, em 2017 e buscava justiça pelo ocorrido[2].
A situação de Bernadete, não pode ser compreendida de forma isolada, ela faz parte de uma tentativa histórica de oprimir, silenciar e dizimar minorias que se apresentam destoantes das expectativas sistêmicas na sociedade brasileira. Além disso, é um exemplo evidente de ausência de políticas públicas de proteção a povos em situação de vulnerabilidade, pois a vítima relatara anteriormente as ameaças e ataques que sofrera, porém não houve nenhum tipo de respaldo a seu favor[3].
É importante ressaltar que a luta quilombola é uma tentativa de preservação de cultura, de direito à terra e de respeito à ancestralidade de indivíduos que tiveram seus direitos negados historicamente. No Brasil, a Lei de Terras de 1850 foi extremamente impactante para a distribuição fundiária e desigualdade social em âmbito nacional. A Lei em questão entrou em vigor pouco depois da Lei Eusébio de Queiroz, que por sua vez, foi uma das primeiras com caráter abolicionista. Nesse contexto, torna-se evidente que o propósito ao criar tal aparato legal foi de impedir que ex-escravizados possuíssem terras[4]. Fator que instigou a organização de espaços como quilombos, como uma tentativa tanto de resistência quanto de acessar um direito previsto em constituição, mas que nem sempre está garantido pragmaticamente.
Hodiernamente, essa configuração territorial se perpetua e, intrinsecamente, as lutas por direitos também. Nesse contexto, a tentativa de deslegitimar movimentos sociais também é um reflexo de políticas estatais voltadas à espoliação de determinados indivíduos. Esse fator pode ser observado na conjuntura atual ao tratar da CPI do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que se configura como uma abordagem voltada a limitar a atuação de um dos movimentos mais influentes em âmbito nacional[5].
A conjuntura em questão é essencial para a compreensão dos ataques à mãe Bernadete e ao seu filho, conhecido como Binho do quilombo. Ele tinha um papel fulcral na luta contra a empresa Naturalle, que havia recebido uma licença municipal para ocupar o terreno de 163 hectares em prol da construção de um aterro. Além disso, o proprietário da empresa é filho do ex-governador da Bahia e poucos dias antes de ser executado, Binho havia participado de um evento para denunciar a instalação do aterro e os impactos que a obra teria para o quilombo. (UZÊDA, 2023)
Bernadete Pacífico lutou por anos na tentativa de descobrir os responsáveis pela morte de seu filho e deu continuidade à luta iniciada por ele contra a empresa, o que a fez receber diversas ameaças. “Em junho de 2022, a líder quilombola relatou em vídeo gravado durante uma audiência no Ministério Público Federal, que sofria “ameaças dia e noite” e cobrou pela investigação da Polícia Federal.” (Halitane Rocha, 2023)
A execução da líder quilombola ocorreu quando estava em sua casa com seus 3 netos, que foram trancados em um quarto enquanto ela recebeu 22 tiros. O ocorrido impactou fortemente na vida de seus familiares e na luta que ela traçava em defesa de seu território. O filho de mãe Bernadete também fez uma declaração sobre o fato no jornal “Brasil de Fato” [6]
“É uma notícia muito grave e triste, é a perda de uma liderança e de uma mulher de terreiro, que tinha sua luta travada no território. Veja, ela perdeu o filho há seis anos defendendo o território […] Para nós, é importante dizer que o governo e o Estado brasileiro façam, de fato, a regularização dos territórios quilombolas. Não podemos continuar perdendo os nossos. O presidente Lula precisa tomar medidas urgente e colocar na rua uma política para o povo quilombola.” (Jurandir, 2023)
2. O PERIGO QUE LIDERANÇAS POLÍTICAS CONTRAMAJORITÁRIAS, COMO MÃE BERNADETE, SOFREM NO BRASIL
A partir do contexto abordado, é importante compreender que, a morte de Mãe Bernadete, assim como a de seu filho, é algo orquestrado politicamente. Sendo assim, reflete a omissão do Estado em face às narrativas políticas em questão, como o conflito fundiário presente na região do quilombo e a disputa que ocorria no local.(LACERDA, Nara)[7]
É evidente que os ativistas e lideranças políticas no Brasil estão sujeitos à repressão. Nesse sentido, o país possui um histórico de violência, enfrentando ativistas e lideranças políticas que atuam em prol de políticas de equidade, sendo exemplos Marielle Franco(vereadora)[8], Paulo Sérgio (líder comunitário)[9], Carlo Antônio dos Santos (líder de assentamento)[10], entre outros, mostrando que, o caso de Mãe Bernadete, não é isolado. Além disso, o Brasil está entre os países que mais mata militantes no mundo, segundo o relatório Global Witness, ficando só atrás de Filipinas e Colômbia[11].
Diante desses fatos, mostra-se uma realidade, para os ativistas atuantes no Brasil, muito complexa[12]. As comunidades quilombolas, movimentos sociais, as lideranças anti sistêmicas e representativas, são resistência, em meio às rechaças existentes, contra as minorias políticas da sociedade. Assim, mortes, como a da Mãe Bernadete, ficam omissas e as investigações, propositalmente, não demonstram resultado.
Nessa perspectiva, é visível a problemática existente, politicamente, ao enfatizar aos sujeitos, quais políticas prevalecem no sistema brasileiro. Nesse sentido, dentro da política brasileira, há uma tentativa constante de submissão de lideranças e movimentos considerados “subversivos” ao Estado, seja pela violência, ou pelo silenciamento.
Portanto, é viável entender a importância representativa de Mãe Bernadete, por seu legado de resistência e liderança, frente às narrativas de combate às minorias em voga no corpo social.
3. RESISTÊNCIA QUILOMBOLA
“Mulher negra da vida difícil, mas mesmo assim continuo, porque ser quilombola é resistência”. (PACÍFICO,Bernadete).[13]
Associar quilombos à resistência ressalta sua importância fundamental na história do Brasil. Durante o período da escravidão, a luta contra essa instituição assumiu as mais variadas formas, sendo a fuga e a consequente formação de agrupamentos uma estratégia recorrente. Nesse contexto, torna-se inegável que a criação e a persistência dos quilombos transcendiam a reação à opressão escravista; elas representavam principalmente a afirmação da dignidade e da identidade das comunidades negras. Os quilombos simbolizam o ato de resistência contra a violência e contra o apagamento da história de seu povo, colocando em destaque a busca por liberdade e a luta contra a discriminação[14].
Hoje, essa luta expressa um significado bem mais amplo do que aquele originalmente colocado. A escravidão deixou uma herança de muita violência e discriminação contra o povo negro e quilombola, visto que o racismo firmou raízes profundas na história brasileira que perpassam o último século, desde que o país aboliu a instituição, sendo a última nação do Ocidente[15]. Nesse contexto, a abolição recente não representou liberdade plena para os escravizados, já que estes foram deixados à margem da sociedade, a qual perpetuou o processo de violência a partir do preconceito racial. Assim, atualmente, a desigualdade e a violência ainda persistem como meios de ataques à dignidade e à identidade do povo negro, que continua sendo alvo da opressão perpetrada pela escravidão.
Em razão desse cenário, os quilombos também permaneceram, mas incorporando em sua resistência essas discussões mais recentes. A luta seguiu como meio de reconhecer os direitos das pessoas negras, que também se reorganizam e resistem. Encontra-se nos quilombos um refúgio para a preservação da identidade cultural, religiosa, política e social e da memória, importantes objetos de oposição ao apagamento histórico de seu povo e de sua luta.
É notável que a resistência se torna mais evidentemente materializada quando se vivenciam situações de verdadeiro horror, como assassinatos, nos quilombos. O caso da Bernadete Pacífico é mais um exemplo desses ataques diretos contra líderes quilombolas, como tentativa de mitigar o movimento, pois assassinatos promovem impactos enormes nas famílias e nas comunidades. Nos últimos dez anos, pelo menos trinta quilombolas foram vítimas de assassinatos, segundo dados do CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas)[16]. As mortes trágicas revelam a fragilidade à qual os corpos negros estão submetidos no Brasil, país conhecido por mais matar ativistas pela terra, segundo relatório da Global Witness (2022). Esses acontecimentos revelam um profundo retrocesso para o movimento de defesa dos direitos humanos, de tal modo que escancaram a falha do Brasil em proteger os interesses dos povos quilombolas e a violência promovida pelas questões racial, territorial, cultural, religiosa e social. As comunidades quilombolas enfrentam uma luta diária e persistente, não apenas pela preservação de sua identidade, mas também pela própria sobrevivência em meio a um contexto de violência estrutural profundamente enraizado.
Portanto, a resistência dessas comunidades permanece como um símbolo de força e de busca por justiça social, destacando a significativa atuação dos quilombos em assegurar os direitos das pessoas negras, em meio à violência tão intrínseca à história brasileira.
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*Beatriz Evelyn de Jesus Silva: Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membra do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular)
*Laís Farias Viana: Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membra do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular). Membra do Conselho de Representantes da Faculdade de Direito.
*Nicole Braga de Faria: Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membra do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular).
1)UZÊDA, André. Mãe Bernadete e Binho do quilombo lutavam contra empresa de filho de governador da Bahia antes de serem mortos. Intercept Brasil, [s.l], 30, agosto de 2023. Disponível em: < https://www.intercept.com.br/2023/08/30/mae-bernadete-e-binho-do-quilombo-lutavam-contra-empresa-de-filho-de-ex-governador-da-bahia-antes-de-serem-mortos/>. Acesso em : 31/08/23
2)ROCHA, Halitane. Mãe Bernadete e Binho do quilombo lutavam contra filho de ex-governador da Bahia em defesa da comunidade quilombola. Mundo Negro. [s.l]. 30, agosto de 2023. Disponível em:<https://mundonegro.inf.br/mae-bernadete-e-binho-do-quilombo-lutava-contra-filho-de-ex-governador-da-bahia-em-defesa-da-comunidade-quilombola/>. Acesso em : 31/08/23
3)COELHO, Rodrigo Durão. “Ela morreu na frente dos dois netos” lamenta filho de Mãe Bernadete. Brasil de Fato. São Paulo, 18, agosto de 2023. Disponível em:<https://www.brasildefato.com.br/2023/08/18/ela-morreu-na-frente-dos-dois-netos-lamenta-filho-de-mae-bernadete>. Direitos Humanos. Acesso em : 29/08/23
4)Há 170 anos, Lei de Terras oficializou opção do Brasil pelos latifúndios. Senado Federal, 2020. Disponível em:<https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/ha-170-anos-lei-de-terras-desprezou-camponeses-e-oficializou-apoio-do-brasil-aos-latifundios> Acesso em: 30/08/23
5)Em 5 pontos, entenda a CPI do MST na Câmara. Folha de São Paulo, São Paulo, 20, maio de 2023. Política. Disponível em:<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/04/em-5-pontos-entenda-a-cpi-do-mst-na-camara.shtml> Acesso em: 30/08/23
6)COELHO, Rodrigo Durão. “Ela morreu na frente dos dois netos” lamenta filho de Mãe Bernadete. Brasil de Fato. São Paulo, 18, agosto de 2023. Disponível em:<https://www.brasildefato.com.br/2023/08/18/ela-morreu-na-frente-dos-dois-netos-lamenta-filho-de-mae-bernadete>. Direitos Humanos. Acesso em : 29/08/23
7) LACERDA, Nara. “Território onde vivia Mãe Bernadete na Bahia é alvo de exploração e ataques desde o período colonial”. Brasil de Fato, 2023. Disponível em <https://www.brasildefato.com.br/2023/08/19/territorio-onde-vivia-mae-bernadete-na-bahia-e-alvo-de-exploracao-e-ataques-desde-o-periodo-colonial>
8)LUCENA, Vínicius. “Assassinato de Marielle e Anderson permanece sem solução”. Jornal da USP, 2018. Disponível em <https://jornal.usp.br/atualidades/assassinato-de-marielle-e-anderson-permanece-sem-solucao/>
9)PINA, Rute. “Lideranças em Barcarena (PA) temem perseguições após 2º assassinato em 3 meses”. Brasil de Fato, 2018. Disponível em <https://www.brasildefato.com.br/2018/03/12/liderancas-em-barcarena-pa-temem-perseguicoes-apos-2o-assassinato-em-3-meses/>
10)PINA, Rute. “Lideranças em Barcarena (PA) temem perseguições após 2º assassinato em 3 meses”. Brasil de Fato, 2018. Disponível em <https://www.brasildefato.com.br/2018/03/12/liderancas-em-barcarena-pa-temem-perseguicoes-apos-2o-assassinato-em-3-meses/>
11)BETIM, Felipe.” Brasil é o terceiro país mais letal do mundo para ativistas ambientais, só atrás de Filipinas e Colômbia”. El País, 2020. Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-28/brasil-e-o-terceiro-pais-mais-letal-do-mundo-para-ativistas-ambientais-so-atras-de-filipinas-e-colombia.html>
12)CONECTAS. Brasil é o país que mais mata ativistas pela terra, de acordo com relatório da Global Witness. 11 out. 2022. Disponível em: https://www.conectas.org/noticias/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-ativistas-pela-terra-de-acordo-com-relatorio-da-global-witness/. Acesso em: 02 set. 2023.]
13)https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-legado-de-bernadete-pacifico-a-ialorixa-e-lider-quilombola-assassinada-na-bahia/
14)RÁMON, Paula. Comunidades quilombolas: identidade forjada através da resistência. National Geographic Brasil, 21 mar. 2022. Disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/historia/2022/03/comunidades-quilombolas-identidade-forjada-atraves-da-resistencia. Acesso em: 02 set. 2023.
15)SCHWARTZ, Stuart B. Mocambos, Quilombos e Palmares: A Resistência Escrava no Brasil Colonial. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 17, n. 9 especial, p. 61-88, 1987. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ee/article/view/157408/152768. Acesso em: 02 set. 2023.
16)Como relevante meio de reforçar a memória e a resistência, a CONAQ nomeou as vítimas, de tal forma a manter sua luta viva e atuante, em http://conaq.org.br/noticias/violencia-e-impunidade-pelo-menos-30-quilombolas-foram-assassinados-nos-ultimos-10-anos/