Por Lorena de Castro dos Anjos
O “pedido de uniformização de interpretação de lei federal” (PUIL) é uma espécie de recurso próprio previsto dentro da estrutura dos Juizados Especiais Federais.
A Lei n. 10.259/2001, que dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, em seu artigo 14 e parágrafos seguintes, dispõe que caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando houver divergência entre decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei.
Assim, a uniformização da interpretação da lei deve considerar a jurisprudência dominante, observando o posicionamento considerado predominante pelos tribunais e aplicando seu teor.
A discussão sobre a jurisprudência dominante deve ser contextualizada no panorama que tem marcado o Direito Processual Civil brasileiro nos últimos anos, especialmente desde a implementação do Código de Processo Civil de 2015. Esse cenário reflete a adoção de um modelo de precedentes judiciais com uma eficácia vinculante, seguindo uma abordagem semelhante àquela historicamente presente no sistema de common law [1].
Nesse contexto, conforme exposto pelo professor Marco Aurélio Serau Jr. [2], a jurisprudência deixou de ser meramente persuasiva e, ao se estabelecer os julgamentos dos Tribunais dentro de certos parâmetros (a exemplo dos julgamentos de recursos repetitivos ou de Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas), a tese jurídica fixada possuirá o condão de vincular os demais órgãos judiciários. Tendo isso em vista, o art. 926, do CPC preceituou que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.
Desse modo, o CPC de 2015 se preocupou em trazer maior segurança jurídica e coerência ao direito, mediante a instituição de um sistema de precedentes e da obrigação de mantê-los uniformizados. Importa dizer também que a ideia de uniformização da interpretação da jurisprudência vale tanto para a jurisdição ordinária como para os microssistemas processuais, como é o caso dos Juizados Especiais Federais.
Consoante o entendimento doutrinário, a jurisprudência dominante é caracterizada quando há diversos julgados tratando da mesma matéria nos tribunais, com uma quantidade significativa de decisões em diferentes direções [3]. Contudo, quando é possível a constatação de que um dos entendimentos é mais aplicado?
Por essa razão, a expressão “jurisprudência dominante” ainda é alvo de críticas por parte dos autores, a exemplo de Luiz Rodrigues Wambier [4], que a identifica como uma expressão absolutamente fluida, indeterminada, sendo difícil para a parte recorrente quantificar a jurisprudência a ponto de saber, com desejável grau de probabilidade de acerto, se trata ou não de dominante.
Até o momento, identificar a jurisprudência dominante de um tribunal continua sendo uma tarefa desafiadora para os profissionais do direito, uma vez que os tribunais ainda não adotaram uma política suficientemente transparente para determinar de maneira objetiva qual é a sua jurisprudência dominante.
Nesse sentido, uma das abordagens empregadas para determinar a jurisprudência dominante consiste na observação do artigo 927 do CPC. Este dispositivo delimita de maneira específica os precedentes que os tribunais devem seguir, oferecendo assim critérios claros para identificar o que seria considerado como a jurisprudência predominante a ser seguida.
Logo, a “jurisprudência dominante” seria representada pelas: I – decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Esse era o entendimento firmado pelo STJ para a aplicação do instituto da uniformização. Anteriormente, o colegiado havia limitado o conceito de jurisprudência dominante aos precedentes firmados pelo STJ em IRDR instaurado nas ações originárias da corte, em IAC, em recursos repetitivos ou súmulas e, ainda, em julgamentos da Corte Especial, como preceituado pelo CPC.
No entanto, em recente decisão para delinear os parâmetros para a admissibilidade do pedido de uniformização de interpretação de lei federal (Puil), a Primeira Seção do STJ estabeleceu como jurisprudência dominante da corte não apenas as situações elencadas no artigo 927 do CPC, mas também as decisões proferidas em embargos de divergência e nos julgamentos de outros Puils pelo referido tribunal superior [5].
Dessa forma, quanto à necessidade de que a decisão contestada no Puil esteja em oposição à súmula ou à jurisprudência predominante do STJ, o relator adotou a posição expressa no voto da ministra Regina Helena Costa, segundo a qual não seria adequado restringir a definição de jurisprudência predominante apenas aos precedentes mencionados no artigo 927, inciso III, do Código de Processo Civil de 2015 (IRDR, IAC e recursos repetitivos).
Confira-se o trecho do voto Min. Regina Helena, que foi voto-condutor nesse tocante:
Não obstante, a adoção de tal fundamentação, em meu sentir, inviabilizaria, pela Turma Nacional de Uniformização, a análise de possível violação a entendimentos firmados em Embargos de Divergência pela Corte Especial e pela Primeira Seção, bem como às teses fixadas no julgamento dos Pedidos de Uniformização de Lei Federal, hipóteses nas quais, induvidosamente, se pode extrair a jurisprudência dominante ou mesmo uniforme para além do IRDR, do IAC e dos recursos especiais repetitivos. [6]
A partir dessa decisão, a corte teve como objetivo elastecer o conceito de jurisprudência dominante, superando o entendimento anterior firmado no AgInt no PUIL 1.799/DF (também de relatoria do Ministro Sérgio Kukina, Primeira Seção, DJe de 7/10/22), e garantindo um rol maior de decisões as quais precisam ser observadas para a aplicação do direito e a uniformização da lei federal.
Ademais, o ministro Paulo Sérgio Domingues destacou que o alcance da decisão vai valer para os Juizados, mas também para nós e para as instâncias ordinárias da Justiça comum, “a mensagem que passaremos será a mesma”.
Para os autores e ministros da própria Corte, a decisão representa um avanço técnico importantíssimo. O ministro Mauro Campbell, que liderou a Turma Nacional de Uniformização (TNU) no período de 2016 a 2018, compartilhou que encontrou um acervo de 38 mil processos, dos quais 70% contrariavam a jurisprudência consolidada pelo STJ há muitos anos.
“Esse é um trabalho pedagógico de disciplina judiciária que temos aqui. Nós não desafiamos o Supremo Tribunal Federal. E o juiz e o juizado têm de ter a mesma função social, e não criar uma ilusão, como acontecia quando cheguei à TNU”, comentou Campbell.
Conclui-se que, atualmente, existem diversas interpretações para a expressão “jurisprudência dominante”, sendo o entendimento mais aplicado até o momento aquele destacado pelo CPC e pela própria Constituição, consistindo decisões proferidas nos casos mencionados nos incisos I a V do artigo 927.
Contudo, é evidente a natureza ainda indefinida e variada do conceito, e certo de que as decisões, sobretudo aquelas emanadas pelos tribunais superiores responsáveis pela uniformização dos precedentes, vão aos poucos emoldurando esse conceito e trazendo maior segurança jurídica e coerência ao judiciário, sendo o precedente inaugurado pela 1ª Turma apenas o início desse processo.
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* Graduanda de direito pela Universidade de Brasília (UnB), membro da Liga Acadêmica de Processo Civil da Universidade de Brasília (LAPROC).
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REFERÊNCIAS
[1] DONOSO, Denis; SERAU JR., Marco Aurélio. Manual dos Recursos Cíveis – Teoria e Prática, 8º ed., Salvador: Juspodivm, 2022, p. 134.
[2] THEODORO JÚNIOR, Humberto et al. Novo CPC: fundamentos e sistematização: Lei 13.105, de 16-03-2015. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
[3] “Jurisprudência dominante é aquela que predomina na orientação da Corte, ainda que exista outra orientação igualmente ponderável em contrário.” – MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo, São Paulo: RT, 2009.
[4] WAMBIER, Luiz Rodrigues. Uma proposta em torno do conceito de jurisprudência
dominante. Revista de Processo, v.100.
[6] Superior Tribunal de Justiça – STJ – Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei nº 825 – RS (2018/0131584-1); Relator Ministro Sérgio Kukina.