Por: Samuel Leão Marrara e Giovanna Melgaço Barbosa
- Introdução – A Máquina de Moer História:
“Em relação ao Marco Temporal, ele é uma máquina de moer história… ele acaba com a história, muda toda a história. Para ele, de 5 de outubro de 88 para trás não há mais história, e sim a partir daquele dia” – disse Marcos Sabaru, liderança política indígena, ao contemplar a tese que, embora declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, continua a macular os processos institucionais de garantia dos direitos indígenas, seja no Congresso Nacional ou no próprio STF. Mas antes de tratar desses desafios, deve-se voltar alguns anos para que o Marco Temporal possa ser explicado e desmistificado.
A tese surgiu no âmbito institucional em 2009, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, momento em que foram impostas uma série de condicionantes para a demarcação de terras indígenas, denominadas “salvaguardas institucionais”, dentre as quais encontra-se o marco temporal. Segundo a tese, os povos indígenas somente teriam direito à demarcação das terras se as estivessem ocupando no dia 5 de outubro de 1988, data da proclamação da Constituição Federal. A institucionalização da tese marcou uma época de imensuráveis retrocessos para a luta pelos direitos e territórios dos povos indígenas, até que foi enfim declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento caso do RE-RG 1.017.365 em 2023, que tratava da reivindicação da titularidade da terra do povo Xokleng, em Santa Catarina.
O julgamento, contudo, não cessou o perigo proporcionado pela tese: desde então, fora aprovada pelo Congresso Nacional a Lei nº 14.701/2023, denominada Lei do Marco Temporal, e tramita no Senado Federal a PEC 48/2023, que busca inserir na Constituição a tese, mesmo após ter sido declarada inconstitucional pela Corte Suprema. Além disso, no contexto da aprovação da “Lei do Marco Temporal”, ou Lei do Genocídio Indígena, surge uma nova ameaça aos direitos e à sobrevivência dos povos originários – o Min. Gilmar Mendes decidiu pela criação de uma Câmara de Conciliação que visa negociar os direitos indígenas, já reafirmados anteriormente pelo próprio STF e pela Constituição, e que serve o propósito de favorecer o setor ruralista e permitir o avanço do projeto territorialista e colonial de desalojamento e extermínio das comunidades indígenas em favor da exploração predatória do meio-ambiente.
- Direito Originário e a Teoria do Indigenato:
Preliminarmente, para tratar da tese do Marco temporal, é necessária a compreensão de que o direito dos povos indígenas sobre suas terras é um direito anterior à própria formação do Estado. Essa compreensão decorre do fato de que os povos indígenas já habitavam e utilizavam esses territórios muito antes da formação dos Estados nacionais e da chegada dos colonizadores, ou seja, é um direito fundamental originário, que não pode ser concedido pelo Estado, apenas reconhecido, porque decorre da própria existência e história desses povos e reflete a continuidade da relação cultural, espiritual e material dos povos indígenas com seus territórios, sendo indispensável para a preservação de sua identidade e modos de vida.
O caráter originário é explicitado no Art. 231 da Constituição Federal, que reconhece aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, assim como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. O dispositivo ainda destaca que essas terras são inalienáveis e indisponíveis, e que os direitos sobre elas são imprescritíveis. Dessa forma, a simples consciência do art. 231 da Constituição denuncia a irracionalidade da tese que pretende utilizar o dia 5 de outubro de 1988 como marco temporal para a delimitação dos territórios indígenas, uma vez que a própria Constituição reconhece o direito dos povos indígenas às suas terras como um direito originário, anterior a esse marco.
Como mencionado anteriormente, a tese que atualmente se encontra em negociação, já foi previamente declarada inconstitucional pelo STF em 2023, no julgamento caso do RE-RG 1.017.365, ocasião em que o voto do Min. Edson Fachin se destacou como de grande relevância para compreensão do caráter originário dos direitos indígenas. “A posse permanente das terras de ocupação tradicional indígena independe da conclusão ou mesmo da realização da demarcação administrativa dessas terras, é direito originário das comunidades indígenas, sendo apenas reconhecimento, mas não constituído pelo ordenamento jurídico” afirmou o ministro que, em defesa dos direitos dos povos indígenas, foi adverso à tese que manifestamente fere a Carta Magna. Além disso, destacou que “A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988, porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal;”, assim, de acordo com o ministro, se depreende da própria Constituição que os direitos territoriais originários dos povos indígenas preexistem a sua promulgação.
Outra compreensão imprescindível para a análise da tese em questão é a teoria do indigenato: “o indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem”, nas palavras do professor José Afonso da Silva. É a teoria adotada pela Constituição Federal, demonstrando a flagrante contradição por parte da tese do marco temporal, que adota a “Teoria Do Fato Indígena”, vista como “útil para encerrar os graves conflitos fundiários entre índios e não-índios pelo País”. Contudo, de acordo com o Min. Edson Fachin, a “Teoria Do Fato Indígena” não se justifica: “não depreendo da Constituição nenhuma fratura em relação à tutela dos direitos territoriais indígenas, porquanto a simples apropriação dessas terras por parte de particulares, incentivada ou não pelos entes públicos, jamais foi permitida pelos textos constitucionais”. Em última análise, é inequívoco que a tese do Marco Temporal compromete não apenas a integridade da Constituição, mas também os direitos indígenas e a qualidade de vida das comunidades afetadas.
- Mesa de Negociação dos Direitos Indígenas:
No dia 5 de agosto de 2024 foi realizada a primeira audiência da Câmara de Conciliação regida pelo Min. Gilmar Mendes, inaugurando um novo período de perseguição e violência institucional contra os povos indígenas e seus direitos estabelecidos. O Ministro determinou a criação da Câmara por ocorrência de ações do PL, PP e Republicanos que visam manter a validade da Lei nº 14.701/2023 (Lei do Marco Temporal), mesmo após a declaração da inconstitucionalidade da tese pelo plenário do Supremo Tribunal Federal. Logo na primeira reunião já foram evidenciadas inúmeras contradições acerca do mérito da “conciliação”, a começar pela definição de regras arbitrárias, a presença de conhecidos agentes políticos ruralistas e anti-indígenas e a disposição do STF de relativizar sua própria autoridade ao negociar os parâmetros de uma tese já declarada inconstitucional pelo próprio tribunal.
Em relação às regras do procedimento, destaca-se a determinação de que as decisões da câmara serão tomadas por maioria, e não por consenso. Nas palavras do Prof. Dr. Marcelo Neves, “uma decisão por maioria implica que o processo não é conciliatório. É um processo decisório de caráter político, de certa maneira, na medida em que vai se discutir qual a maioria prevalece”. Ademais, a evidente disparidade de tratamento se manifestou mais intensamente na ocasião em que a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), entidade representativa reconhecida pelo próprio STF, se retirou da conciliação por considerá-la uma “farsa” e um “ataque à vida dos povos indígenas”. O Min. Gilmar Mendes, contudo, determinou imediatamente o prosseguimento da conciliação em despeito da saída dos representantes indígenas, que foram substituídos por indicações do Ministério dos Povos Indígenas. Acerca dessa substituição, entende o Prof. Dr. Marcelo Neves que “um órgão oficial não pode substituir uma entidade representativa dos interesses dos povos indígenas”, configurando um “casuísmo, evidentemente para enfraquecer a demanda dos povos indígenas pela afirmação dos seus direitos”.
Em adição às regras arbitrárias e a substituição dos representantes reconhecidos dos povos indígenas, as audiências vêm sendo marcadas pela presença de agentes políticos dedicados ao avanço do setor ruralista sobre as terras indígenas, como a ex-ministra da Agricultura do governo Bolsonaro, Tereza Cristina (PP-MS), e os deputados da Frente Parlamentar da Agropecuária Pedro Lupion (PP-PR) e Lucio Mosquini (MDB-RO). Diante dessas incongruências, dentre diversas outras, verifica-se que a Câmara de Conciliação é uma verdadeira armadilha para os povos indígenas, convidados a “debater” com seus próprios algozes em uma perspectiva de relativização dos seus direitos, sendo coagidos a indenizar os invasores de suas terras demarcadas com base em uma tese jurídica inconstitucional, afastada pelo próprio Tribunal que a utiliza como fundamento para “negociação”. E ainda o fazem sem seus representantes, que se retiraram do procedimento por entenderem não haver “garantias de proteção suficiente, pressupostos sólidos de não retrocessos e, tampouco, garantia de um acordo que resguarde a autonomia da vontade dos povos indígenas”.
- Conclusão – Horizonte de Desafios:
A análise realizada evidencia que a utilização do marco de 5 de outubro de 1988 para limitar os direitos territoriais indígenas é uma violação direta da Constituição Federal. A declaração de inconstitucionalidade da tese pelo STF em 2023 reforça a anterioridade dos direitos dos povos indígenas às suas terras em relação ao próprio Estado brasileiro. No entanto, a reabertura das discussões através da criação da Câmara de Conciliação sob o Min. Gilmar Mendes, com o objetivo de negociar a aplicação da Lei do Marco Temporal, representa um novo desrespeito aos povos indígenas. A saída da APIB, a ausência de representantes legítimos dos povos indígenas, e a presença de figuras políticas representantes do interesse do setor ruralista demonstram um desequilíbrio de poder, colocando em negociação direitos previamente garantidos e priorizando os interesses políticos e econômicos da bancada ruralista. Essa situação cria um cenário de incerteza, demonstrando o risco constante enfrentado pelos povos indígenas na luta por seus direitos, vistos como negociáveis e descartáveis, frequentemente ameaçados por interesses externos, exigindo vigilância contínua e mobilização para garantir a manutenção das proteções constitucionais. Nas palavras de Samela Sataré Mawé, “O Brasil é terra indígena, mas o futuro dos povos indígenas do Brasil está em jogo com o marco temporal.”
Os Autores:
Samuel Leão Marrara: Graduando em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) da Faculdade de Direito da UnB.
Giovanna Melgaço Barbosa: Graduanda em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membra do projeto de extensão AJUP Roberto Lyra Filho (Assessoria Jurídica Universitária Popular) da Faculdade de Direito da UnB.
Referências Bibliográficas:
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