Por Aurora Neves*
No que tange a conceituação de ciências forenses, existem diversos ramos do conhecimento utilizados no interesse da justiça, inclusive científicos. Especialistas de tais âmbitos podem utilizar sua área de atuação a fim de tentar esclarecer um acontecimento e, se tratando dessa atividade para fins judiciais, ou seja, a compreensão de uma ocorrência relacionada a um caso judicial, tem-se então a perícia criminal. Todavia, em cada área pericial essa ferramenta científica-judicial apresenta diferentes desdobramentos e a especialidade a ser analisada a seguir é a da perícia na rede mundial de computadores.
A natureza jurídica da Internet
De início, faz-se importante analisar os desdobramentos da legislação no meio digital, na medida em que a perícia trata-se de um meio estatal para a aplicação do ordenamento jurídico. Neste aspecto, materialidade, dinâmica e autoria do crime são buscados pelos peritos, inclusive os especialistas no meio virtual. Todavia, com a utilização de servidores conhecidos por não deixar os supracitados registros, como a Dark Web, Deep Web e o Navegador Tor, a perícia se vê com menor potencial de atuação, haja vista que criminosos manejam esses recursos de ocultação. Ainda, cabe salientar que tais ferramentas foram originalmente idealizadas com viés de libertarianismo, como uma forma de contrariar qualquer censura estatal possível mediante servidores com atribuição de causalidade¹, e não necessariamente para a prática ilícita.
Todavia, a dificuldade pericial não se restringe à análise apenas desses servidores “ocultos”, e sim de toda a Internet, haja vista que (i) a natureza desta permite um acesso livre e facilitado de usuários aos ambientes virtuais nos quais estão ou possam estar rastros do delito, o que possibilita a alteração do virtual locus delicti. Outrossim, (ii) garante-se interações múltiplas entre os internautas, o que permite o compartilhamento de informações cuja posse poderia ser atribuída aos criminosos, mas que se apresenta como de posse de diversos usuários, dificultando o nexo causal na investigação judicial. Ademais, (iii) verifica-se diversas origens geográficas dos instrumentos digitais e dos indivíduos, o que fomenta uma complexa mistura de legislações nacionais aplicáveis aos delitos; e, sobretudo, (iv) a incompletude de legislação capaz de controlá-la de forma integral.
James Boyle, inclusive, mostra uma visão histórica acerca das interações aparentemente conflituosas entre Internet e Legislação, as quais estavam presentes nas percepções sociais. Todavia, como solução para tal questão, era proposto o uso de técnicas controladoras a fim de afastar o poder estatal da liberdade encontrada no virtual, acreditando-se que, pela técnica, as influências no meio digital seriam neutras. Todavia, a crença de neutralidade no meio técnico é ingênua e infundada, na medida em que a tecnologia reflete as normas de seus criadores e consequentemente sua ideologia. Dessa forma, a compatibilidade entre regimento estatal e os mecanismos de auto-regulação das redes se mostra como um interessante caminho para amenizar tal situação².
Outrossim, a rede mundial de computadores e tudo que nela está se configura como bens digitais, os quais são imateriais. Todavia, sua especificidade jurídica não está inteiramente na legislação, mas apenas na doutrina, visto que, por exemplo, a classificação de bens imateriais não está disposta no Livro II do Código Civil brasileiro, o qual foi escrito voltado à materialidade dos bens suscetíveis.
A Computação Forense e suas Peculiaridades no Direito
Ainda sobre o mundo digital, cabe expressar sua amplitude tal qual a diversidade de crimes que podem ser praticados nele. Como exemplo disso, tem-se vazamento de dados, difamação, uso da internet como meio comunicacional para realização de crime não-digital, pornografia, propagação de notícias falsas, golpes, invasões de contas bancárias, compras e vendas de materiais ilegais: todos com a necessidade da atuação de um perito cibernético para fins investigatórios.
Nesse contexto, a perícia deve ser feita com base em procedimentos científicos das ciências forenses, os quais seguem a metodologia científica adequada – conforme sua autonomia técnica assim a considerar – se baseando em vestígios deixados no local de crime ou que tenham relação com o caso, mesmo que ausentes desta localidade. Se tratando de vestígio digital, então, ele é toda informação transmitida ou armazenada digitalmente, que tenha ou possa ter ligação ao caso judicial analisado³.
A respeito da perícia, a Lei 13964/2019, mais conhecida como Pacote Anticrime, defende em seu Art. 158 que: “§3º Vestígio é todo objeto ou material bruto, visível ou latente, constatado ou recolhido, que se relaciona à infração penal”⁴. Entretanto, na Internet, não há objeto ou material bruto, pois os dados digitais, como sites, mídias e mensagens, se apresentam como bens imateriais, o que mostra que os resquícios de condutas ilícitas devem ser analisados de maneira digital, e não apenas fisicamente. Todavia, o acesso a eles pelo perito é dificultado pela criptografia, além de outras características do mundo virtual⁵.
Tais vestígios cibernéticos podem ser encontrados em objetos físicos tecnológicos, como HDs, pendrives e cartões de memória, o que gera um hibridismo do ambiente de atuação da computação forense. Outros “exemplos de locais em que podem ser encontrados […] são: os sistemas de arquivos, arquivos de log, espaços não utilizados no dispositivo de armazenagem, arquivos temporários, área de swap, setor de boot, memória, periféricos, comportamento de processos etc”⁶.
Nesse sentido, o tratamento solicitado pelo Código de Processo Penal (incluído pelo Pacote Anticrime) acerca do local do delito também é incompatível com a realidade virtual, o que mostra o empecilho de aplicar de forma denotativa o expresso pela lei. Vê-se, no Art. 158-A e 158-B do Código, que é solicitado isolamento, preservação e descrição detalhada do local de crime. Porém, tais ações são intangíveis, na medida em que o acesso a sites, suas páginas, contas em redes sociais e IPs podem ser facilmente adentradas por entendedores da área; ou, pior, a dificuldade investigativa pode advir da amplitude gerada pelos conteúdos digitais, por exemplo por compartilhamentos, o que atrapalha a delimitação acima referida. Além disso, a hospedagem de sites em países diversos – prática comum de criminosos brasileiros – exemplifica a gama de locais que podem ser encontrados os dados relacionados à crimes da tipagem aqui discutida. Por fim, a definição e, por conseguinte, limitação do local de infração digital é complexa e com alto grau de obstáculos.
Outrossim, o recorte do local de crime implica na cadeia de custódia, ou seja, o resguardo do vestígio para que ele seja analisado pelo perito sem alterações. Entretanto, com a facilidade de acesso digital, o controle de adulteração dos vestígios é, então, diminuído, o que modifica tanto o conteúdo da possível prova, por meio de interferência de outros internautas no vestígio analisado, como também a localização digital do material caracterizado como possível prova.
Consequentemente, a cadeia de custódia virtual tem materialização de causalidade diversa da de objetos físicos, e pode acarretar sua utilização como instrumento de incriminação de indivíduo inocente mesmo que seja feita corretamente, na medida em que o meio digital apresenta ferramentas para despistar vestígios e autoria. A fim de elucidações, este último caso pode ser exemplificado como o uso de IPs diferentes dos originais de fábrica dos aparelhos, que levam o perito a relacionar a autoria do crime à máquinas divergentes das realmente utilizadas para praticar o delito⁷.
Além disso, no Brasil, a cadeia de custódia relativa a vestígios materiais apresenta falhas na sua fidedignidade, diante da insuficiência orçamentária para assegurar o manuseio, transporte e armazenamento corretos durante toda a avaliação pericial. No caso da perícia digital, todavia, pode-se dizer que tal incompletude de eficiência na cadeia de custódia em crimes da e na Internet é dada, além das deficiências financeiras, pelas próprias características do meio virtual e a parcial capacidade pericial de lidar com sua maleabilidade.
Por fim, na medida em que os vestígios, o local de crime, a cadeia de custódia e o nexo causal, na perícia digital, são questões de difícil e até mesmo impossíveis de delimitação absolutamente integral, tem-se evidentes desafios na ciência forense em questão (PECK, 2016). Dessa maneira, conceitos essenciais para a realização de uma perícia completa se mostram desafiados pela magnitude de modificação do mundo virtual sobre possíveis provas criminais.
Mudanças na Legislação e seus desdobramentos na Perícia Digital
Apesar de não haver respaldo legal específico para a área digital da perícia, tampouco o recente Pacote Anticrime não ter se debruçado sobre tal assunto de uma maneira atualizada, percebe-se modificação de algumas leis para haver a penalização de crimes cibernéticos. Como exemplo tem-se (i) a Lei 13.441/2017, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente para possibilitar a infiltração de agentes de polícia na Internet com o objetivo de averiguar crimes sexuais contra menores de idade e (ii) a Lei 14.155/2021, a qual tipifica a violação de dispositivo informático e furto e estelionato os quais utilizaram-se do meio digital para a ocorrência do ilícito. Por fim, mesmo que de forma lenta e parcial, alguns dispositivos legais realizam a tentativa de se modernizar perante a nova realidade criminal-virtual.
Além disso, a atuação do perito, na medida em que compõe a leitura, análise e coleta de dados virtuais, inclusive pessoais, protegidos pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), não necessita de conformidade com tal legislação, de acordo com seu Artigo 4º⁸. Assim, a privacidade dos dados envolvidos nos crimes deve ter especial cuidado por parte do perito, mas não é expressamente regulada por este dispositivo legal. Apesar disso, a criação da Lei em questão se mostra como relevante para a atuação pericial, na medida em que assegura um direito de proteção de dados aos usuários, além da alegação de atribuições às empresas digitais.
Nesse sentido, caso tais pessoas físicas ou jurídicas necessitem de amparo judicial acerca dos atributos da lei aqui discutida, a perícia cibernética tem uma função eminente na investigação do caso. Dessa maneira, “procedimentos claros de perícia digital em dados serão úteis para, a exemplo, demonstrar a inexistência de violação (fakeleaks) a dados ou mesmo a culpa exclusiva do titular dos dados, como estabelece o art. 43 da norma brasileira”⁹.
Ademais, além de ampliar a possibilidade de atuação pericial, a LGPD reconhece que o meio jurídico não é a única forma de controle da internet. Afinal, ela compreende a liberdade individual dos internautas em ter contratos de adesão com empresas digitais e, consequentemente, consentir com as regras de tais negócios jurídicos – as quais também são exercidas conforme liberdade comercial – acerca do tratamento de seus dados pessoais no âmbito virtual. Dessa maneira, tal norma exemplifica a tentativa de equilíbrio e mutualismo entre uma regulação estatal e uma técnica-digital, como uma “solução para problema sob exame [que] exige um arranjo mais cuidadoso que combine o aprimoramento tanto da legislação como da autorregulação das plataformas”, conforme diz Ana Frazão consoantemente à compatibilidade proposta outrora por J. Boyle¹⁰.
Paralelamente, se o Direito e as demais normatividades presentes na Internet necessitam de interação, a perícia digital, por se inserir em ambos os âmbitos, precisa do mesmo comportamento. Tal atividade já ocorre, a título exemplificativo, com os peritos oficiais no ramo digital realizarem o uso de ferramentas, métodos e serviços desenvolvidos por setores privados que podem facilitar o exame pericial. Contudo, em contrapartida, seus representantes não estão presentes no corpo oficial de peritos estatais. Nesse sentido, a interconectividade entre o setor privado e tais funcionários públicos se mostra com significativa importância à atualização da perícia para com as inovações tecnológicas existentes e, consequentemente, sua efetividade.
Conclusão
A complexidade da Internet, de sua relação híbrida com o Direito e da sua veloz capacidade de modernização são todas refletidas na perícia digital, na medida em que esta atua no meio informacional aqui discutido. As regiões afetadas pelos tentáculos da rede mundial de computadores são evidentes, o que garante uma gama de debates no âmbito analítico da investigação pericial cibernética. Aqui, apenas tentou-se levantar uma série de questionamentos e desdobramentos gerados por tais pontos, não sendo o objetivo cessar qualquer discussão, mas sim abordá-las e sugerí-las.
Ainda, é perceptível as expressivas problemáticas relacionadas à Internet no que tange à sua relação com o âmbito jurídico. Isso porque, apesar de incompleto e difícil o controle estatal e, portanto, pericial dos meios virtuais, não significa dizer a desnecessidade de sua existência ou que ela seja completamente ineficiente. Na verdade, percebe-se interessante uma atualização do Código de Processo Penal, da perícia criminal e de tudo que tange o direito a fim de englobar o estudo de casos criminais digitais.
Outrossim, é imprescindível que, além de modificações legais, haja também das técnicas, no caso da atuação pericial, a fim de (i) aumentar sua capacidade intelectiva perante o amplo mundo virtual, (ii) implementar na Internet a legislação e, sobretudo, com isso, (iii) possibilitar a criação de um nexo causal efetivo, evitando, assim, condenações errôneas e aumentando a resolução de crimes.
Por fim, “Como delimitar o local de crime na Internet?”, “Como assegurar a cadeia de custódia?” “Como identificar quais são os vestígios desses delitos?” são perguntas essenciais para a perícia ser realizada com respaldo jurídico e científico, mas como visto, têm significativas limitações para serem respondidas no que tange a análise de crimes na internet. Desse modo, o uso desse instrumento de investigação e averiguação factual deve ser feito com cuidado; sua análise pelo judiciário, mais ainda e, principalmente, que as dúvidas sejam impulsos para o avanço técnico desse importante ramo da Perícia Criminal. Afinal, a invasão digital no cotidiano humano se dá de forma absurdamente crescente, assim como a necessidade de resolução de crimes praticados na Internet.
* Graduando em Direito pela Universidade de Brasília. Membro do Programa de Educação Tutorial do curso de Direito da UnB, do Grupo de Estudo em Constituição, Empresa e Mercado (GECEM/UnB), do Grupo de Estudo em Seguridade Social (GPSS-UnB) e cofundadora da Liga Acadêmica de Direito Empresarial da FD-UnB.
[1] BOYLE, 2017.
[2] BOYLE, 2017.
[3] SOARES, 2021.
[4] BRASIL, 2019.
[5] BRASIL, 2020.
[6] PECK, 2016, p. 280.
[7] FIORILLO, 2016.
[8] BRASIL, 2018.
[9] MILAGRE, 2019.
[10] FRAZÃO, 2021.
Referências
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