Por Julia Zucchi Natour*
Em face das discussões fomentadas pelo grupo PET optei por me debruçar sobre a obra Que horas ela volta?¹. Posto isso, mostra-se desejável um resumo sobre o filme. A narrativa apresenta a vida de Val, empregada doméstica, interpretada magistralmente por Regina Casé. Para tanto, a mansão com piscina no Morumbi é o cenário principal. Esta casa é, simultaneamente, o local de trabalho e de moradia de Val, visto que ela “dorme no serviço” em um “quarto de empregada”. Além de Val, neste domicílio habitam outras três pessoas: Bárbara e Carlos, patrões de Val e Fabinho, filho do casal em seus 18 anos de idade. Este último personagem cultiva um afeto mútuo por Val, já que ele esteve sob os cuidados da doméstica desde sua infância. Durante o filme, este carinho entre os dois é evidenciado inúmeras vezes, como quando Fabinho vai dormir junto de Val em seu quartinho e em momentos de brincadeiras infantis remanescentes da criação.
Fora dessa realidade, ao menos no início da história, encontra-se Jéssica, filha de Val. Com o desenrolar do filme, depreende-se que Val deixou Pernambuco e migrou para São Paulo, com o objetivo de ganhar dinheiro e sustentar sua filha, que ficara em seu estado natal sob os cuidados da tia. Nesse plano, cabe ainda destacar a visível mágoa existente entre as duas, efeito da debilitada relação mãe e filha causada pela distância, isto é, pelo inexistente contato pessoal por dez anos e qualquer comunicação durante três anos. Por fim, é importante pontuar que ambos os jovens estão prestando Fuvest, inclusive, é em função disso que Jéssica vem para São Paulo.
Essa realidade é apresentada enquanto Val faz o trabalho doméstico e convive com a família que a emprega. Neste âmbito, vale salientar algumas características dessa relação empregada/patrões. Apesar de Bárbara, a patroa, afirmar com convicção que Val “pertence à família”, expressão muito comum nesse tipo de relação, a doméstica vive sob uma gama de regras, explícitas e implícitas, que contrariam tal constatação. Ao decorrer do filme, essa relação será destrinchada e poderá se observar a perversidade inerente a esta. Desse modo, a chegada da filha pode ser identificada como o momento inaugural desta tensão, visto que a jovem tumultua essa realidade de maneiras diversas, de modo a expor as contradições e os absurdos que permeiam tal relação.
Após inúmeros abalos, o filme termina com uma ruptura. No epílogo, Fabinho vai fazer um intercâmbio de seis meses na Austrália, Val descobre que Jéssica possui um filho e, enfim, a personagem principal pede demissão e aluga uma morada para ela, sua filha e seu neto.
Para iniciar a análise crítica da obra, é interessante examinar os títulos, tanto em português quanto em inglês. Nesta perspectiva, nota-se que a expressão “que horas ela volta?” é proferida duas vezes durante o filme, uma em seu princípio e outra nas cenas finais. A primeira ocorre quando Fabinho, ao acabar a brincadeira na piscina, questiona Val sobre que horas sua mãe, Barbara, chegaria à casa do trabalho. Já a segunda aparição da frase, acontece enquanto Jéssica relata a Val o quão traumatizante foi aguardar o regresso da mãe e que, quando criança, questionava sua tia constantemente sobre a hora que sua mãe voltaria para vê-la. O título em inglês, por sua vez, é “Second mother”, isto é, “Segunda mãe”. Neste caso, as referências são mais implícitas, já que este nome se vincula a devassada controvérsia vivida por Val. Tal personagem era a “segunda mãe” de um garoto enquanto sua própria filha estava sob os cuidados de uma “segunda mãe”, já que a “primeira mãe” (Val) não podia estar presente. Portanto, na conjuntura apresentada, as duas mães são ausentes, porém por razões e de maneiras diferentes. Desse modo, percebe-se que ambos os títulos fornecem elementos essenciais para a plena compreensão da obra cinematográfica.
A partir dessa narrativa, abordam-se temas latentes na realidade brasileira como a desigualdade social, o racismo estrutural e o sexismo. Com base nisso, pretende-se acrescentar os conceitos analíticos de colonialidade e interseccionalidade, de modo a auxiliar a compreensão do fenômeno explorado pelo filme. Cabe ressaltar que a narrativa é contada através da perspectiva de Val, ou seja, de uma mulher negra, metodologia defendida por Lélia de Almeida. Isso é evidenciado na cena em que Val serve petiscos em uma festa na casa da família que a emprega. Nesse episódio, a câmera se dispõe atrás da doméstica e a segue enquanto ela adentra e permeia aquela realidade a qual não pertence, porém está inserida.
Posto isso, nota-se que as empregadas domésticas são sujeitos essenciais para compreender a dinâmica da sociedade brasileira, já que, apesar de serem de classes mais baixas e sujeitas a várias opressões, elas transitam nas elites. Justamente por essas mulheres serem expostas constantemente às contradições da estrutura brasileira, elas devem ser colocadas no centro das discussões sobre o Brasil, seus defeitos e suas potencialidades.
Nesta perspectiva, vale explorar a chave de leitura através da qual se abordará os temas denunciados pela obra. O prisma adotado conjuga as noções de colonialidade e interseccionalidade. A escolha da primeira lente analítica se justifica pelo fato de que o sujeito social “empregada doméstica” é um evidente resquício da colonização, ou seja, um aspecto da colonialidade, tanto do poder quanto do ser. Além disso, o pensar interseccional é imperativo, visto que, estamos a tratar de uma mulher negra nordestina. Neste diapasão, não se trata de somar as opressões raciais as de classe e gênero, mas sim de compreender tal opressão como singular e fundante da sociedade brasileira. Com essa lente de leitura construída podemos analisar de fato o filme, sem isolar os diferentes recortes, pois, segundo a lógica interseccional, as violências podem ser mais bem compreendidas quando expostas e analisadas em rede.
A partir disso, a primeira problemática que pode ser identificada no filme é a disparidade econômica existente entre os patrões e Val. Essa desigualdade é ilustrada pela dicotomia entre casa grande, literalmente e subjetivamente, preenchida por janelas, luz, suítes, piscina etc., e o quarto de empregada, barulhento, quente e minúsculo. Essa oposição pode ser interpretada como um sintoma da colonialidade, já que reproduz a lógica casa grande/senzala.
Inserido nesse contexto, percebe-se ainda que alguns espaços, como a piscina, não podem ser ocupados por Val e sua filha. Nesse âmbito, cabe considerar o episódio em que Jéssica é jogada na piscina por Fabinho. Nesta ocasião, instala-se uma tensão que é resolvida com o esvaziamento da piscina sob a justificativa de D. Barbara de que ela havia visto um rato na água. Com isso, depreende-se que na casa impera um acordo tácito que prevê as regras de comportamento da empregada doméstica neste ambiente que não a pertence. Em outras palavras, além da imposição de um controle externo, nota-se também uma autocensura por parte da doméstica. Para confirmar esse fenômeno, deve-se considerar a cena em que Jéssica questiona a mãe sobre onde ela aprendera o que fazer e o que não fazer na casa da família, em resposta a isso Val constata “a pessoa já nasce sabendo”. Dessa maneira, compreende-se que tal opressão está internalizada em Val, o que é um sintoma da colonialidade do ser.
Articulado a esse quadro, percebe-se que as opressões e violências buscam ser mascaradas, ou seja, apesar da latente desarmonia, tenta-se tornar a presença da doméstica menos desconfortável através de certos mecanismos. Dentre estes está a externalização de desculpas, por parte de Val, de modo a evitar a violação de regras implícitas ao convívio. Isso se materializa na explicação de Val a filha sobre como impedir a entrada na piscina de maneira sutil, segundo Val deve-se inventar uma desculpa como “não tenho biquíni”. Somado a esse exemplo, tem-se a afirmação: “quando eles oferecem alguma coisa que é deles é só porque têm certeza que a gente vai dizer não”, proferida por Val direcionada a Jéssica com o objetivo de adequar o comportamento da filha aos padrões esperados.
Encaixado nesse painel, observa-se ainda sinais de preconceito linguístico. Isso ocorre em momentos em que a variante linguística de Val e de sua filha é ressaltada como diferente e, de certa forma, inferior. As personagens pernambucanas pronunciam “vice”, “mainha” e muitos outros marcadores linguísticos que diferenciam o português falado por elas do usado pelos seus patrões brancos e paulistas. A respeito disso, cabe refletir sobre o conceito de “pretoguês”, cunhado por Lélia de Almeida. Segundo esta pensadora, o português é intensamente permeado por linguagens provenientes da África, sendo que os falantes negros manifestam mais intensamente esse traço linguístico. Dessa forma, ao julgar tal modo de falar como “errado”, desconsidera-se a gramática da qual faz parte, ou seja, se no português formal identificam-se “erros”, a partir do pretoguês percebe-se que estes são apenas traços da africanidade.
Após a exposição de tantos aspectos da obra (e da realidade brasileira), cabe apontar aquele que é o cerne da narrativa: o papel da mulher negra na sociedade. Se até então a colonialidade era a principal ferramenta analítica, agora a interseccionalidade sobrepõe-se. Neste plano, Lélia de Almeida expõe que “os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito. A nomeação vai depender da situação em que somos vistas.” Essa dicotomia a partir da qual se concebe a mulher negra é representada no filme respectivamente por Jéssica e Val.
Posto isso, pode-se significar a chegada de Jéssica a casa. Através da relação do patrão com a jovem nota-se a face “mulata” da dicotomia. No decorrer da narrativa o espectador percebe uma crescente tensão entre Carlos e Jéssica que culmina no assédio da filha da doméstica pelo patrão. Apesar de este acontecimento ter sido breve e facilmente inibido por Jéssica, é importante ressaltá-lo, já que tem o potencial de demonstrar a ótica sexual sob a qual se vê as mulheres negras.
Em seguida, convém examinar o outro ângulo da dicotomia mulata/doméstica. A princípio cabe apresentar a opinião de Lélia de Almeida a respeito do tema: “Quanto a doméstica, ela nada mais é do que a mucama permitida, a da prestação de bens e serviços, ou seja, o burro de carga que carrega sua própria família e a dos outros nas costas.” Somado isso à figura da mãe-preta, compreende-se o papel social da mulher negra doméstica na sociedade brasileira. Segundo Lélia de Almeida, “Ela [a mulher negra], simplesmente, é a mãe. É isso mesmo, é a mãe. Porque a branca, na verdade, é a outra.”² Esse fenômeno descrito pela pensadora é manifestado constantemente no filme. A partir dessa perspectiva, vale retomar o título em inglês e ressignificá-lo: na verdade, a segunda mãe de Fabinho é Bárbara e Val exerce o papel de mãe de fato.
Para finalizar com certa esperança, deve-se atentar ao desajuste de Jéssica com a realidade da mãe. Incluem-se ainda as inúmeras falas e questionamentos da jovem, para então depreender-se que, diferentemente de Val, Jéssica não internalizou as opressões coloniais. Nesse âmbito, destaca-se o fato de Jéssica estar prestando vestibular para ingressar na Universidade. Como a própria jovem constata um professor de sua escola a estimulou a ler, estudar e pensar criticamente, o que a teria levado a reavaliar a realidade e questionar as estruturas da sociedade. Desse modo, percebe-se que a educação tem um papel central na desconstrução das mazelas brasileiras e na emancipação individual e coletiva de seus cidadãos.
Portanto, conclui-se que o filme Que horas ela volta? é um objeto de estudo extremamente frutífero e complexo, já que abrange inúmeros aspectos da vida brasileira. Além disso, por dispor no centro da narrativa uma empregada doméstica, a obra proporciona uma ampla e virtuosa perspectiva da conjuntura exposta.
* Graduanda em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil. Membro do Programa de Educação Tutorial do curso de Direito da Universidade de Brasília e da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho (AJUP-RLF).
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[1] QUE HORAS ELA VOLTA? Direção: Anna Muylaert. Produção: Fabiano Gullane, Caio Gullane, Débora Ivanov, Anna Muylaer. Brasil. 2015
[2] Gonzalez, Lélia (1983). “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: Silva, Luiz Antônio Machado et alii. Movimentos sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília, ANPOCS, p. 223-44. (Ciências Sociais Hoje, 2.).