Desafios para a efetivação do direito à moradia

Análise comparativa entre Brasil e Colômbia

Por Anderson Henrique Vieira[1], Penélope Rafaela Josué Dias[2]Naomí Menezes Pegado[3]Ruth Araújo Quintino Furtado[4]

Com o surgimento das denominadas Constituições Cidadãs – como a Constituição de Weimar de 1919 na Alemanha e a Constituição Mexicana de 1917 -, as consequentes mudanças nos paradigmas sociais, políticos e culturais trazidos com o fim da 2ª guerra mundial e o intenso crescimento urbano verificado no século XX, houve também mudanças no tratamento e na proteção dos direitos individuais por parte do Estado.

No que diz respeito à mudanças na previsão jurídica do direito à moradia, ressalta-se que este, a princípio, é reconhecido e reafirmado como um direito humano básico por diversos tratados e pactos provenientes de órgãos e negociações internacionais para, somente em um segundo do momento, ser gradativamente admitido e incorporado aos ordenamentos jurídicos dos Estados soberanos (Reis, 2013). Nesse sentido, um dos primeiros documentos com impacto internacional a tratar do direito à moradia foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, conforme a redação do Artigo 25 que estabelece:

“Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego”.

Além disso, o comentário Geral nº 4 da ONU elenca sete componentes essenciais de uma moradia adequada, sendo eles: segurança jurídica de posse; disponibilidade de serviços, materiais, equipamentos e infraestrutura; custo acessível; habitabilidade; acessibilidade; localização e adequação cultural. A partir da análise destes elementos elencados como indispensáveis, depreende-se que o direito à moradia não pode (ou deve) ser reduzido tão somente à um abrigo que não vai além de um telhado sobre a cabeça, bem como não deve ser considerado uma mera mercadoria que simplesmente se adapta às mudanças do mercado.

Nesse sentido, por mais que o direito à moradia já se encontrasse substancialiazado em diversas declarações e documentos internacionais, é só no ano 2000, com a aprovação da EC 26/2000, que passa, de fato, a integrar o rol de direitos sociais do art. 6º da CF/88. Ainda assim, mais de 20 anos depois, a efetivação dessa prerrogativa continua a enfrentar sérios problemas, posto à ausência de interação entre políticas públicas urbanísticas e habitacionais adequadas, dificultando ainda mais a chamada “democratização das cidades”.

Portanto, com o fito de perfazer um diálogo comparativo entre a proteção do direito à moradia no Brasil com o quadro internacional, evidencia-se algumas importantes decisões do Tribunal Constitucional da Colômbia, posto que ambos os países perpassam quase que conjuntamente por um período de transição jurídico-social, compartilhando, de tal modo, similaridades importantes não somente do ponto de vista jurídico-normativo, mas também no que diz respeito à realidade fática-urbanística nacional.

Assim, vários são os paralelos possíveis que podem ser feitos com o intuito de justificar e ilustrar a referida aproximação para este “estudo comparativo”. A princípio, destaca-se, por exemplo, o fato de que a Colômbia foi um dos primeiros países da América Latina a materializar a noção de função social da propriedade em nível infraconstitucional e constitucional, através da primeira lei latino-americana de contribuição de melhorias (Lei 25 de 1921) e com a Constituição de 1930. Nesse mesmo período o Brasil também realiza um fugaz debate acerca dos termos jurídico-normativo da função social da propriedade e a insere, pela primeira vez, na Constituição Federal de 1934; posteriormente, a Colômbia aprova a Lei 9 de 1989 que consolida sua política urbana, ao passo que o Brasil o faz por meio da inserção dos arts. 182 e 183 na Constituição Federal de 1988 (regulamentados, respectivamente pela Lei 13.111 de 2016 e pela Lei Nº 10.257 de 2001). Posteriormente, já no ano de 1997 a Colômbia aprova a Lei 388 que em muito se assemelha ao Estatuto da Cidade aprovado no Brasil em 2001 ao elencar como princípios a função social e ecológica da propriedade; a prevalência do interesse geral sobre o individual e a distribuição equitativa de ônus e benefícios. Esta consonância jurídico-social no que diz respeito à abordagem do direito à moradia enquanto direito fundamental entre o Brasil e a Colômbia revela um ambiente propício para uma análise comparativa da efetivação e defesa de tal direito.

Desse modo, destaca-se algumas importantes decisões do Tribunal Constitucional da Colômbia – mais alta autoridade judicial na Colômbia, responsável por verificar a conformidade das leis em relação à sua Constituição – objetivando compreender, a partir de uma perspectiva comparativa com o Brasil., de que forma o país reconhece e dispõe desse direito.

T-239/16 – TEMA: DIREITO À HABITAÇÃO DIGNA E À DIGNIDADE HUMANA. VIOLAÇÃO POR RECUSA DE ADEQUAÇÃO OU RESTRIÇÃO DE MORADIA A IDOSO EM SITUAÇÃO DE DEFICIÊNCIA.
RESUMO: O ator tem mais de oitenta anos, encontra-se numa situação de deficiência que o obriga a usar uma cadeira de rodas, sofre de diversas patologias e é vítima de deslocação forçada. Depois de ter sido escolhido como beneficiário do subsídio habitacional em espécie concedido pelo Governo Nacional, foi-lhe atribuído um apartamento situado no quinto andar de um edifício que não dispõe de elevadores nem rampas que permitam o acesso ao imóvel. Pelo exposto, apresentou diversas petições perante as entidades demandadas a fim de requerer a cedência de um apartamento no 1º andar do empreendimento de que era beneficiário, mas esta reclamação foi indeferida sob o fundamento de que a distribuição foi feita por sorteio e ele não comunicou sua situação à entidade em tempo hábil. Tópicos relacionados a: 1º. O direito à dignidade humana. 2º. O direito à moradia. 3º. O direito à proteção das pessoas com deficiência e, 4º. O idoso como sujeito de proteção constitucional especial. O amparo solicitado é CONCEDIDO e a ré é condenada a reatribuir casa à peticionária em condições mínimas de habitabilidade, adaptabilidade, acessibilidade e economia. É feito um pedido a várias instituições, para que as referidas condições para pessoas com deficiência sejam incluídas nos projetos habitacionais.

A decisão, ao retratar o caso de um idoso portador de deficiência, reforça, logo no início, a conexão intrínseca que existe entre possuir uma habitação adequada e viver com dignidade. Ainda reforça a necessidade de uma proteção constitucional especial no que diz respeito ao julgamento de casos de pessoas com deficiência, bem como de pessoas idosas. Além disso, a ementa do último julgado nos remete ao Comentário nº 4 da ONU – já explicitado anteriormente – que elenca a acessibilidade como um dos requisitos indispensáveis para a configuração real de uma moradia digna. No caso em tela, o demandante foi escolhido como beneficiário do subsídio habitacional oferecido pelo Governo, mas o apartamento que lhe foi dado ficava no 5º andar e não possuía elevador ou rampa, impossibilitando o acesso até sua nova casa. Ante o exposto, depreende-se que de nada adianta a criação de vários programas de habitação se estes não forem feitos levando em consideração os diversos aspectos necessários para uma moradia adequada, bem como as particularidades de cada indivíduo que se busca beneficiar com este tipo de política.

Por mais que as decisões do Tribunal Constitucional da Colômbia analisadas sejam julgadas procedentes e o direito à moradia adequada seja “efetivamente” garantido, o que nos cabe analisar é porque tais questões ainda precisam ser levadas para as mãos do judiciário, quando estão precisamente previstas na lei, ou melhor, na própria Constituição? Este é um ponto de encontro entre a realidade fática brasileira e a colombiana: por mais que o direito à moradia seja garantido, ele, muitas vezes, não é efetivado e por este motivo, constantemente se faz necessário entrar na máquina judiciária, posto que não se obtém sucesso através da via administrativa, para esperar por um sentença que condene à efetivação de um direito que, a princípio, nunca deveria ter sido violado – isto quando a condenação é, ao menos, favorável.

Nas palavras de Meda e Bernadi:

Não se trata somente de uma violação a determinadas pessoas que estão em idêntica realidade, mas sim da maculação constante de todo um quadro político, econômico e social que envolve muitos indivíduos de diferentes idades que se vêem atingidos por condições subumanas de vida (2016, p. 289).

A falta de comunicabilidade entre agentes públicos para garantir uma moradia adequada ainda é um problema no Brasil, onde as decisões do judiciário, em regra, se restringem a emitir uma “solução” e “reparação” específica para cada caso concreto, que geralmente não passa de uma prestação pecuniária, deixando ir embora a chance de conectá-lo com outros direitos fundamentais e de agir em conjunto com demais agentes sociais.

Portanto, depreende-se que o processo irregular de urbanização, produziu uma estratificação social que passou a ser refletida nos centros urbanos, formando verdadeiros “guetos habitacionais”, caracterizados por construções irregulares habitadas por moradores que, ao longo da história brasileira, foram colocados à margem da sociedade. Tudo isso reflete diretamente na tomada de decisões do judiciário, que pode agir de maneira isolada, ou pode se conectar com a Administração Pública a fim de garantir Políticas Habitacionais produtivas e igualitárias, a fim de promover a justiça social, compensar desigualdades históricas e garantir a efetivação do direito à moradia, adequando assentamentos irregulares ao ideal de uma cidade sustentável.[5]


[1] Advogado. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba com período de cotutela na Universidade Nacional da Colômbia sede Medellín.

[2] Graduanda em Direito pela UFCG e membro do LPCCJS.

[3] Graduanda em Direito pela UFCG e membro do LPCCJS.

[4] Graduanda em Direito pela UFCG e membro do LPCCJS.


Referências

[5] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 30 abr. 2023.

BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da politica urbana e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 11 jul. 2001. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 29 abr. 2023.

Brasil. (2013). Direito à Moradia Adequada. Brasília, DF: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

MEDA, Ana Paula; BERNARDI, Renato. DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA E A SENTENÇA T-025/2004 DA CORTE CONSTITUCIONAL DA COLÔMBIA:: estado de coisas inconstitucional no brasil. Revista de Direito Sociais e Políticas Públicas, Brasília, p. 280-299, jun. 2016.

NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Justiça, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 29 abr. 2023.

NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Adotado pela Assembleia das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966 e em vigor em 3 de janeiro de 1976. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Justiça, 1992. Disponível em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/pacto_internacional.pdf. Acesso em: 02 mai. 2023.

REIS, J. E. DE A. Direito ao ambiente e o direito à moradia: colisão e ponderação de direitos fundamentais. Revista do Direito, v. 41, p. 65 – 88, 30 nov. 2013.

VALLE, Vanice Regina Lírio do; GOUVÊA, Carina Barbosa. Direito à moradia no Brasil e na Colômbia: uma perspectiva comparativa em favor de um construtivismo judicial. In: XXIII Encontro Nacional do CONPEDI, 2014, Florianópolis. Direitos sociais e políticas públicas I:XXIII Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: CONPEDI, 2014, pg. 219-245.00

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